O relator especial da ONU pelo direito à moradia, Balakrishnan Rajagopal, repreendeu o Brasil por não impedir o despejo de milhares de moradores durante a pandemia. Para ele, é uma contradição que é colocar pessoas na rua ao mesmo tempo em que a recomendação de saúde é manter distanciamento e permanecer em casa.
"É uma incoerência. As pessoas estão recebendo a ordem de ficar em casa, mas não há casa para se ficar", disse Rajagopal à BBC Brasil.
"O ministério da Saúde pediu que as pessoas ficassem em casa se tivessem sintomas, e que lavassem as mãos e mantivessem distanciamento social para prevenir o contágio. Mas, ao mesmo tempo, milhares de famílias estão sendo despejadas, fazendo com que seja impossível para elas obedecer às recomendações", afirmou.
O relator da ONU, Rajagopal, enfatizou que o país precisa suspender imediatamente todas as ações de despejo e lamentou a decisão do presidente Jair Bolsonaro de vetar esforços do Congresso nesse sentido.
Bolsonaro sancionou em junho o projeto de lei 14.010/2020, que trata das medidas emergenciais de resposta à pandemia, mas o artigo 9º, que suspendia a expulsão de inquilinos até 30 de outubro, foi vetado por ele.
Na assinatura, Bolsonaro argumentou discordância do artigo por ser "um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de aluguéis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio".
Resposta
Procurado pela reportagem, o MIDH, ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, respondeu às críticas da ONU com a promessa de que está trabalhando para lançar um programa. O projeto se chama "Moradia Primeiro", mas o MIDH não informou quando ele entrará em vigor.
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A manifestação de Rajagopal é resposta à denúncia feita no dia 20 de junho por diversos movimentos civis do Brasil ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.
O documento submetido elenca inúmeras supostas violações ocorridas desde o começo da pandemia e estima que, somente no Estado de São Paulo, mais de duas mil famílias tenham perdido suas moradias nos últimos três meses.
Relatora especial da ONU para o direito a moradia entre 2008 e 2014, a professora de Arquitetura da USP Raquel Rolnik foi uma das organizadoras do documento e reforça a crítica. "É um escândalo o que está acontecendo", diz.
"A suspensão temporária de despejos durante a pandemia, ou mesmo a possibilidade de renegociação de pagamentos de aluguéis e de prestações da casa própria estão sendo adotadas como medidas de proteção social em diversos países. Aqui no Brasil não apenas não foram adotadas essas medidas, como também tem acontecido reintegrações de posse, remoções e despejos", destacou.
Aumento da pobreza, aumento de moradores de rua
Em relatório divulgado na quinta-feira, a ONU avalia o estrago econômico causado pela pandemia na América do Sul e estima que a situação de pobreza extrema passe a ser a realidade de 28 milhões de latino-americanos até o final de 2020, ou 15,5% da população da região.
Somente no Brasil, a covid-19 fez a taxa de pobreza extrema aumentar de 5% no ano passado, para 9,5% este ano.
Para a ONU, situação de pobreza extrema é quando um indivíduo tem de sobreviver com renda inferior a R$ 358 (US$ 67). Uma situação de pobreza é quando a renda é menos que R$ 747 (US$ 140) ao mês.
O levantamento estima ainda que mais do que um quarto da população brasileira, ou 26,4%, seja obrigado a viver com menos de R$ 747 ao mês em 2020. A razão disso é a queda drástica na atividade econômica.
É projetada uma contração de 9,1% do PIB da região na América Latina, um recuo que eleva a taxa de desemprego de 8,1% para 13,5%, resultando em aumento da desigualdade social como um todo.
O aprofundamento do abismo social que divide pobres e ricos fica ainda mais evidente na questão da falta de moradia, explica Rolnik. "Já estamos observando muito claramente um aumento na população de rua nas cidades brasileiras", constata.
Ela avalia que, na primeira década dos anos 2000, houve uma supervalorização dos imóveis, seguida da crise econômica de 2016, o que gerou inadimplência dos aluguéis e financiamentos. Isso deu início a uma "explosão" nas moradias informais e na indigência, problemas que agora se agravam ainda mais com o impacto da pandemia.
"Boa parte dessas pessoas que estão nas ocupações são famílias que habitam lá simplesmente porque não conseguiram pagar algo melhor, por causa da ausência de políticas habitacionais e de proteção social", diz.
A pesquisadora Talita Gonsales, do Observatório de Remoções do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Universidade de São Paulo, alerta que o despejo das famílias de classe média e média-baixa é preocupante também porque seu avanço é silencioso.
"Diferente das remoções coletivas, que costumam sair na imprensa, essa é uma situação individualizada, difícil de mapear", diz.
O último levantamento feito pelo observatório que contabilizou despejos particulares é anterior à pandemia. Ele estimava que, entre 2012 e 2018, ocorreram mais de 129 mil despejos, 19 mil processos de reintegração de posse e cerca de 9,5 mil desapropriações, somente na região metropolitana de São Paulo.
Despejos coletivos
Coautor da denuncia à ONU, Benedito Barbosa da União dos Movimentos por Moradia em São Paulo (UMMSP) destaca o recrudescimento das remoções forçadas de populações carentes após o começo da pandemia.
"Foram pelo menos doze casos de remoções no Estado de São Paulo, desde março. Aproximadamente duas mil famílias atingidas", diz.
A denúncia contabiliza ainda dois casos de remoção extrajudicial por agentes privados, três casos de remoções extrajudiciais promovidas por agentes dos poderes municipais, e duas remoções judiciais por agentes privados.
"O governo e a Justiça dizem que estão retirando as ocupações para acabar com a aglomeração, mas deixam as pessoas na rua. Não faz sentido. É desculpa pra expulsar os mais vulneráveis por interesses imobiliários. Chamamos isso de influências indevidas", argumenta.
A UMMSP e outras organizações fizeram manifestação em frente à prefeitura de São Paulo nesta semana reivindicando abrigo aos moradores sem teto e vítimas de despejos.
Agora, o movimento e outros parceiros se organizam nacionalmente para lançar a campanha "Despejo Zero" nas próximas semanas. O objetivo é pressionar as autoridades nacionais a suspender todas as remoções imediatamente e aprovar legislação que assegure o direito à moradia para a população.
De acordo com Rolnik, o país está órfão de políticas públicas desde a suspensão do programa "Minha casa, minha vida" porque não há iniciativas a nível municipal e estadual que supram as necessidades habitacionais da população brasileira.
Também integrante da campanha "Despejo Zero", ela espera conseguir influenciar o Congresso a pautar os diversos projetos de lei que preveem proteção aos inquilinos e ocupantes de moradias em meio à onda de covid-19.
"O Brasil já traz de anos o problema da moradia consigo, mas a pandemia destacou ainda mais as consequências infelizes de não se ter uma política de moradia adequada" lamentou Rajagopal da ONU.
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