Como resultado das medidas de prevenção e controle impostas pela pandemia do novo coronavírus, muitos pacientes que sofrem com problemas oftalmológicos tiveram seus atendimentos, exames, tratamentos e cirurgias eletivas (não urgentes) adiados.
Caso da psicóloga Eliane Oldrini, de 62 anos, moradora do Rio de Janeiro. Diagnosticada há quatro anos com catarata, doença que provoca a perda de transparência do cristalino (lente natural responsável por garantir foco e nitidez) — e que figura como a maior causa de cegueira tratável no mundo —, ela fez a primeira operação, no olho esquerdo, em dezembro de 2019.
A no direito seria em março deste ano, mas foi cancelada.
"Me ligaram do hospital, alguns dias antes da data marcada, avisando que o procedimento seria adiado por causa da COVID-19, e dizendo que eu deveria aguardar um novo contato", relata.
"O problema é que nesse tempo minha visão piorou muito. Tenho sentido muita dificuldade para ler, assistir televisão e até para realizar algumas tarefas do dia a dia. Por causa disso, não estou nem saindo de casa. Tudo o que é preciso fazer na rua, meu marido é quem faz", acrescenta.
Situação parecida vive a professora Queila Maria Vieira Pereira, de 53 anos. Portadora de glaucoma, neuropatia crônica e degenerativa do nervo óptico (estrutura que envia as imagens do olho para o cérebro), e de alta miopia (25 graus no olho esquerdo e 17 no direito), ela tinha consulta e exame marcados também para março; ambos foram suspensos.
"Como o glaucoma estabilizou, eu já estava na fase de manutenção, com avaliações a cada quatro meses, mais ou menos. A última foi em novembro. Agora já se passaram oito meses e não sei quando serei atendida."
Moradora de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, Queila manteve o tratamento em casa e, durante todo esse período, tem conversado por telefone com o médico responsável por seu caso, mas, mesmo assim, revela ter sentido uma piora.
"Tenho apenas 10% da visão no olho esquerdo e cerca de 70% no direito. Nas últimas semanas parece que ficou tudo mais embaçado, está mais difícil para enxergar, certamente meu quadro se agravou. Eu corro o sério risco de ficar cega, e é muito angustiante não poder fazer o acompanhamento que preciso", desabafa.
A jornalista e doutoranda da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roni Filgueiras, de 57 anos, é outra paciente que está sofrendo com os impactos da pandemia.
"Sou míope desde os 13 anos, com sete graus em cada olho, e em 2015 também fui diagnosticada com presbiopia. Costumo passar pelo oftalmologista uma vez por ano, e deveria ter ido em abril, mas devido à COVID-19 cancelaram todos os atendimentos eletivos e eu fiquei à deriva."
Com a visão sobrecarregada por trabalhos e pesquisas, Roni, assim como Eliane e Queila, acredita que sua condição piorou durante a quarentena. "Já aumentei a resolução da tela do computador algumas vezes para consegui ler, agora está em 150%. Meus olhos também estão lacrimejando demais. Preciso muito de uma consulta, mas, infelizmente, não consigo marcar."
- Impacto da pandemia causará mais mortes por Aids, tuberculose e malária, indica estudo
- Coronavírus: falta de pré-natal e vacinas matará milhares de mães e crianças, alerta relatório
Cancelamentos de consultas e medo são prejudiciais para os olhos
Para se ter uma ideia do tamanho da queda, em se tratando apenas de catarata, o Sistema Único de Saúde (SUS) realizou 148,8 mil procedimentos cirúrgicos ambulatoriais e 12,8 mil cirurgias com internações hospitalares entre janeiro e maio de 2020, 83,8 mil e 10,8 mil a menos, respectivamente, que no mesmo período do ano passado, quando foram feitos 232,6 mil e 23,6 mil.
Em relação às consultas oftalmológicas, também de janeiro a maio deste ano, foram 2,5 milhões — em 2019, totalizaram 3,9 milhões e em 2018, 3,6 milhões.
O Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) ainda não tem um dado oficial, indicando o quanto atendimentos, exames e cirurgias tiveram de queda no país.
Apesar disso, Cristiano Caixeta, vice-presidente da entidade e chefe do setor de Glaucoma do Departamento de Oftalmologia da Santa Casa de São Paulo, garante que foi algo bastante expressivo, sobretudo nos serviços públicos.
"A redução foi significativa, e maior em abril e maio. Por um lado, tivemos, enquanto necessário e por recomendação dos órgãos de saúde, a suspensão dos procedimentos eletivos. Por outro, as pessoas, por medo de se contaminarem com o coronavírus, deixaram de procurar o médico em vários momentos importantes", avalia.
Diante desse cenário, são muitas as preocupações, segundo o especialista, com destaque para os pacientes portadores de patologias crônicas (glaucoma, retinopatias e degenerações maculares, por exemplo), que, se não tratadas corretamente, podem levar à perda irreversível da visão.
"Essas doenças necessitam de um acompanhamento mais de perto e, muitas vezes, o tratamento tem de ser feito nas clínicas, com a aplicação do medicamento pelo oftalmologista. Quando há interrupção, tudo o que foi feito até então acaba comprometido e as chances de agravamento aumentam consideravelmente", comenta.
"Além disso, muitos casos de cegueira são possíveis de serem evitados se diagnosticados e cuidados precocemente", complementa o especialista.
Caio Regatieri, professor adjunto do Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), revela que o centro hospitalar mantido pela instituição, o Hospital São Paulo, registrou queda de 75% no número de pacientes entre abril e junho, na comparação com a média histórica do mesmo período dos últimos dez anos.
"Percebemos dois movimentos: as pessoas buscaram menos atendimento e, as que buscaram, fizeram isso tardiamente, mesmo tendo um problema grave, como descolamento de retina. Com medo de sair de casa, elas acabaram esperando para ver se melhorava. Agora, com os serviços voltando a funcionar, já atendi alguns pacientes que tiveram uma progressão de suas doenças."
Em nota, o Ministério da Saúde diz o seguinte: "Objetivando a minimização de circulação de pessoas em ambiente hospitalar, orientou no início da pandemia que consultas, exames ou cirurgias cuja necessidade não fossem fundamentadas em casos de urgência e emergência fossem postergadas".
Ressalta ainda que "a avaliação do risco-benefício de se realizar o procedimento eletivo tem sido definida pela equipe médica assistencial, em alinhamento com as diretivas vigentes adotadas pelo estabelecimento, de acordo com as recomendações das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, as quais têm autonomia para definir as estratégias mais adequadas de atendimento à população de sua área de abrangência, a partir das características da rede de saúde disponível no território. E essa avaliação deve levar em consideração o risco-benefício coletivo, e não o individual".
Aposta na telemedicina e retomada dos atendimentos
Para que a população não ficasse totalmente desassistida durante a quarentena, além de incentivar a manutenção dos procedimentos oftalmológicos de urgência e que a população buscasse ajuda quando realmente necessário, o CBO lançou em abril o programa Brasil que Enxerga, tendo como uma de suas principais ações a realização de teleorientações gratuitas por oftalmologistas voluntários.
"Dentre os que usaram o serviço, 98% disseram que tiveram suas dúvidas sanadas", pontua Caixeta, adicionando que, por dia, foram realizados, entre 45 e 60 atendimentos virtuais.
Com a sua clínica particular fechada desde abril, assim como a do hospital, Regatieri também manteve o contato com os pacientes por meio da telemedicina. Nesse sentido, desenvolveu uma plataforma própria, batizada de VideoMedic, e, de maio para cá, fez mais de 150 atendimentos.
Agora, com o enfrentamento do coronavírus entrando em uma nova fase, os serviços de saúde começam a retomar gradativamente suas atividades — mas a normalização deve ocorrer apenas em alguns meses.
"Sabemos que ainda tem muita gente com receio de ir aos consultórios e hospitais, mas é fundamental que entendam que estamos trabalhando de forma responsável e com toda segurança. O CBO, inclusive, elaborou o 'Manual de boas condutas para a retomada das atividades eletivas em oftalmologia em tempos de COVID-19', com normas rígidas para profissionais e pacientes", aponta o vice-presidente da entidade.
"É preciso se proteger neste momento, claro, mas quem tem doença oftalmológica, ainda mais crônica, tem de buscar atendimento. Não se pode negligenciar o tratamento, pois as consequências são muito graves", completa Regatieri.
Prevalência de cegueira e deficiência visual
Globalmente, pelo menos 2,2 bilhões de pessoas têm deficiência visual ou cegueira, sendo que um bilhão desses casos poderiam ter sido evitados ou ainda não foram tratados. Os dados dão da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Por aqui, como consta no documento "As Condições da Saúde Ocular no Brasil 2019", elaborado pelo CBO, a cegueira atinge 1.577.016 brasileiros, o equivalente a 0,75% da população, sendo que cerca de 74,8% dos casos são preveníveis ou curáveis.
As principais causas do problema, no mundo, são catarata, glaucoma e degeneração macular relacionada à idade (DMRI). Quando se trata de deficiência visual, no topo do ranking estão erros de refração (miopia, astigmatismo, hipermetropia e presbiopia) não corrigidos, catarata e DMRI.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Leia mais sobre a COVID-19
- Vacinas contra COVID-19 usadas no Brasil e suas diferenças
- Minas Gerais tem 10 vacinas em pesquisa nas universidades
- Entenda as regras de proteção contra as novas cepas
- Como funciona o 'passaporte de vacinação'?
- Os protocolos para a volta às aulas em BH
- Pandemia, epidemia e endemia. Entenda a diferença
- Quais os sintomas do coronavírus?