Cinco dias depois de anunciar que estava curado do coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro disse que sentiu fraquezas e que passou a tomar antibióticos para combater uma infecção no pulmão.
"Também, depois de 20 dias em casa, a gente pega outros problemas. Peguei mofo no pulmão", brincou Bolsonaro em uma de suas lives na internet, na quinta-feira.
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Mas o problema pulmonar de Bolsonaro levanta um debate sobre quando um paciente pode ser considerado "recuperado" ou não da COVID-19.
Mesmo que o paciente seja declarado livre da doença, o que se tem observado é que o coronavírus pode provocar sequelas e outros problemas de saúde.
O rótulo de "paciente recuperado" que aparece em diversas estatísticas oficiais sugere que a pessoa conseguiu voltar à sua vida normal sem transtornos, mas isso pode ser enganoso.
Estudos recentes mostram que ainda é preciso investigar mais profundamente quem se recuperou totalmente da doença — e quem segue vivendo com sequelas da COVID-19.
Problemas cardíacos
Dois novos estudos publicados nesta semana revelam um lado assustador da recuperação do coronavírus.
Ambos foram feitos com pacientes na Alemanha e publicados pela revista científica Journal of the American Medical Association (Jama).
O primeiro deles, com 100 pacientes que tiveram coronavírus, mostrou que 78% apresentaram algum tipo de anomalia no coração mais de dois meses depois de se recuperarem da COVID-19. Boa parte dos doentes (67%) tiveram uma forma branda da doença e sequer foram hospitalizados.
Mas em 60% dos casos, foi detectada uma inflamação no coração cerca de 70 dias depois.
O preocupante nesse estudo é que os pacientes analisados eram considerados saudáveis e com idade média de 49 anos. Outra fonte de preocupação é que muitos desses problemas cardíacos aconteceram de forma silenciosa.
Os pacientes não apresentaram sintomas externos, e as deficiências no coração foram detectadas apenas com ressonância magnética e exames de sangue.
"Nós não queremos gerar ainda mais ansiedade mas sim incitar outros pesquisadores a examinarem cuidadosamente os dados existentes e que serão coletados para confirmar ou negar nossas descobertas", escreveram os pesquisadores Clyde Yancy e Gregg Fonarow, que assinam um artigo na revista.
A segunda pesquisa envolveu a autópsia de 39 vítimas de COVID-19. Em 24 delas (61%), foi detectada a presença do coronavírus no coração. Os cientistas dizem que isso indica que é preciso investigar mais profundamente o potencial dano que o Sars-CoV-2 pode causar no coração.
Há ainda inúmeros relatos de pessoas que desenvolveram diferentes sintomas após contrair a doença, como problemas pulmonares e perda de paladar e olfato.
Cientistas também pesquisam sobre o efeito que o coronavírus pode ter no cérebro, como inflamação, e na maior incidência de coágulos do sangue, que podem causar derrames.
'Mofo no pulmão'
Problemas respiratórios, como o relatado por Bolsonaro, estão entre as sequelas analisadas por alguns cientistas.
No começo de julho, a revista Jama publicou outra pesquisa com 143 recuperados de COVID-19 na Itália feita pela Policlínica Gemelli, de Roma.
Dois meses depois da doença, apenas 12,6% dos pacientes disseram estar completamente recuperados, sem nenhum sintoma.
Os outros 87,4% reclamaram de pelo menos algum problema. Entre os sintomas relatados, estão fadiga (53,1%), falta de ar (43,4%), dor nas juntas (27.3%) e dor no peito (21,7%).
Para 44,1%, houve uma piora na qualidade de vida.
Como a COVID-19 é uma doença nova, ainda não se conseguiu estudar quanto tempo leva para se recuperar dela e quais podem ser as implicações de longo prazo.
Os autores do estudo ressaltaram a importância de se acompanhar pacientes recuperados mesmo meses depois da doença.
A fadiga parece ser um dos sintomas mais recorrentes. Uma das condições estudadas se chama encefalomielite miálgica, que é popularmente conhecida como fadiga crônica.
Há anos cientistas estudam se essa fadiga crônica está relacionada com infecções virais. A observância desses casos em ex-pacientes de COVID-19 reforçaria essa tese.
A síndrome de fadiga crônica é uma condição debilitante de longo prazo no qual a pessoa afetada sente uma série de sintomas. O mais importante deles é um esgotamento que não melhora com repouso ou sono e que afeta os pacientes em todos os aspectos da sua rotina.
Outros sintomas comuns são dor, falta de clareza mental e problemas de memória e de sono. Pacientes com esse problema não conseguem mais ter uma vida normal, com uma rotina de trabalho, e acabam desenvolvendo problemas de saúde emocional, como baixa auto-estima.
A BBC relatou o caso de um escocês de 28 anos que teve COVID-19 e passou 12 semanas com fadiga crônica. Antes de contrair o coronavírus, Callum O'Dwyer estava em forma e tinha boa saúde, sem nenhuma doença pré-existente.
No entanto, depois de lutar durante cinco semanas contra os principais sintomas da doença, ele não teve mais condições de morar sozinho e precisou voltar para a casa dos pais.
Há ainda um problema adicional: os assintomáticos. Em tese, mesmo quem teve coronavírus e não apresentou sintomas da doença poderia desenvolver complicações posteriores, como problemas respiratórios ou inflamação cardíaca. Mas ainda não há estudos suficientes sobre esses casos.
Estatísticas incompletas
Todas essas sequelas da COVID-19 não aparecem nas estatísticas oficiais.
Pacientes que seguem sofrendo com problemas relacionados à doença são classificados oficialmente como "pacientes recuperados" — um amplo guarda-chuva que abriga todo mundo que não sucumbiu à doença.
Essa categoria de "paciente recuperado" aparece em diversas estatísticas oficiais.
No portal do governo federal, é a estatística que tem com maior destaque: 1,8 milhões de pacientes recuperados — em um universo de 2,6 milhões casos confirmados neste ano.
No mundo, são 10 milhões de recuperados entre 17 milhões de casos confirmados, segundo a universidade americana Johns Hopkins.
Mas não há uma distinção entre quem voltou à sua vida normal e quem precisa conviver com sequelas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como recuperados aqueles que tiveram dois resultados negativos para Sars-CoV-2 com pelo menos um dia de intervalo. Para os casos leves, a OMS estima que o tempo entre o início da infecção e a recuperação dure até 14 dias.
Mas o Brasil, assim como vários outros países, não segue exatamente esse critério por não haver testes suficientes em escala.
No Brasil, os recuperados incluem pessoas que foram hospitalizadas e receberam alta e também os casos leves em que não houve registro de hospitalização ou de óbito nos últimos 14 dias. Por esse último critério, o presidente Bolsonaro deve entrar nesta estatística de recuperados.
O problema da recuperação incompleta provocou uma mudança nas políticas públicas de saúde em outros lugares, como na Inglaterra.
O NHS England, sistema de saúde da Inglaterra, vai lançar um portal especial chamado "Sua recuperação da COVID-19" dedicado apenas às pessoas que estão sofrendo com sequelas de longo prazo da doença. Segundo o sistema, há "dezenas de milhares de pessoas" nesta condição na Inglaterra.
O governo britânico pretende investir 8,4 milhões de libras (R$ 56 milhões) em novos estudos sobre os efeitos de longo prazo da COVID-19.
Nos Estados Unidos, pessoas que tiveram COVID-19 têm se mobilizado para enfrentar juntas a difícil tarefa de se recuperar.
Uma sobrevivente do coronavírus criou o Survivor Corps, em que pacientes recuperados — mas que sofrem com sequelas — relatam seu dia-a-dia em formato de diário. O grupo também ajuda cientistas a encontrarem voluntários para participarem de novos estudos sobre os efeitos de longo prazo do coronavírus.
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