Enfermeiro em um hospital no norte da França, Fabien sofreu traumatismo craniano após ser violentamente agredido por pedir a um cliente de um café que usasse máscara.
Brigas por esse motivo vêm ocorrendo em comércios e transportes do país e têm causado preocupações quanto a movimentos radicais contra o uso do equipamento de proteção. Esses grupos vêm ganhando força nas redes sociais e também disseminam notícias falsas sobre a pandemia do novo coronavirus.
O enfermeiro que sofreu traumatismo craniano trabalhou por meses com pacientes de covid-19 e afirma ter visto pessoas morrerem da doença. Em entrevistas a TVs francesas, Fabien, que preferiu não revelar o sobrenome, disse que seu agressor entrou em um café com a mão sobre a boca dizendo que estava usando máscara.
O uso do equipamento de proteção é obrigatório para circular em restaurantes e bares na França e só pode ser retirado quando a pessoa estiver sentada à mesa, o que não era o caso desse cliente.
"Eu lhe disse que não era para rir da covid-19, que é uma doença perigosa e que pessoas morrem disso", contou o enfermeiro. A discussão sobre o uso da máscara terminou com Fabien tomando um forte soco no rosto que o fez cair e bater a cabeça no chão, provocando hemorragia cerebral.
"Durante todo o confinamento, a população francesa aplaudiu os profissionais da área de saúde às 20 horas. Nós gostaríamos de ser respeitados. Para isso, é preciso agir para controlar a pandemia e uma forma de fazer isso é usar máscara", ressalta o enfermeiro.
Uma pessoa já morreu na França por exigir que alguém utilizasse máscara: um motorista de ônibus em Bayonne, no sudoeste, faleceu em julho após ser agredido por um grupo de passageiros que se recusou a usar a proteção, obrigatória nos transportes e em todos os locais públicos fechados.
As tensões têm se multiplicado em diferentes localidades do país. Recentemente, um pai foi espancado com barras de ferro, na frente dos filhos, por vários homens em uma lavanderia automática na periferia de Paris após pedir a um deles para colocar uma máscara. Em Le Havre, na Normandia, uma jovem deu tapas e arrancou cabelos de uma funcionária dos correios que também cobrou o uso do equipamento.
As agressões e movimentos antimáscaras na França se ampliam ao mesmo tempo em que as autoridades vêm reforçando a obrigatoriedade do equipamento em diferentes locais. Após o fim do confinamento, em meados de maio, houve um relaxamento de parte da população, sobretudo a mais jovem, em relação às medidas de proteção contra a pandemia.
Desde o início de agosto, mais de 300 cidades, como Paris, tornaram obrigatório o uso de máscaras também em algumas áreas públicas ao ar livre, como parques e ruas de comércio movimentadas.
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Movimentos antimáscaras começaram a aparecer em manifestações contra o confinamento nos Estados Unidos e depois se espalharam por países como Alemanha, Canadá, Reino Unido e França, onde começam a se expandir nas redes sociais e já reúnem algumas milhares de pessoas.
Franceses que integram grupos antimáscaras no Facebook publicam selfies sem o equipamento em lojas, contam, como se fosse uma competição, que conseguiram ficar tantos minutos sem o item de proteção em um comércio antes que alguém interviesse ou divulgam fotos com outros acessórios que cobrem o rosto, mas são totalmente ineficazes para combater a pandemia de covid-19.
A multa pela não utilização de máscaras é de 135 euros (cerca de R$ 900).
Argumentos
Os militantes contra o uso de máscaras têm um ponto em comum: eles reivindicam seu direito à liberdade e se recusam a usar o que chamam de "focinheiras." Para eles, as pessoas que respeitam as regras são "carneirinhos" que precisariam ser despertados para a realidade. As autoridades, ao tornar o uso obrigatório, visariam controlar a população com um pensamento único que deve ser acatado por todos, alegam.
"Quando a máscara é imposta, somos privados do nosso corpo, do nosso livre arbítrio", diz Angélique, que integra um desses grupos nas redes sociais. "Não à escravização e à ditadura sanitária", diz outro internauta.
Para o sociólogo David Le Breton, a recusa de alguns de usar máscara é um novo sinal do individualismo crescente. "O paradoxo é que a liberdade defendida pelos antimáscaras é, na realidade, a liberdade de contaminar os outros. É o produto de um desengajamento cívico, uma das marcas do individualismo contemporâneo", afirma.
Vários opositores também contestam a eficácia das máscaras para conter a propagação do novo coronavírus, considerando que elas são "inúteis" ou supostamente perigosas. Inúmeras informações falsas sobre esses equipamentos de proteção individual circulam nesses grupos.
"A máscara nos priva da maior parte do nosso oxigênio. Por isso, ela pode nos matar", afirma Maxime Nicolle, uma figura conhecida do movimento dos coletes amarelos, protestos que surgiram no final de 2018 na França, muitos deles violentos, com reivindicações sociais.
A informação de que as máscaras podem provocar a morte é falsa, desmentida com veemência por médicos e pesquisadores. Nicolle, que utiliza o pseudônimo FlyRider, é bastante ativo nas redes sociais contra a utilização do equipamento de proteção e outras medidas adotadas para lutar contra a pandemia, que ele estima ser uma "farsa".
Parte dos militantes antimáscaras, os mais radicais, é adepta de teorias conspiratórias, mais difundidas nos meios de extrema direita e entre os que se dizem antissistema e contra as vacinas.
"Quando você coloca uma máscara, você se torna intelectualmente vulnerável, perde a identidade e se torna uma presa ideal para as potências ocultas e transumanistas (movimento para transformar a condição humana a partir do uso da ciência e da tecnologia) que querem te destruir em nome da nova ordem mundial", alega um internauta desses grupos.
"Primeiro são as máscaras e em seguida as vacinas que terão um nano chip controlado pela 5G" diz outra militante francesa.
"O movimento antimáscara é heterogêneo, formado por pessoas que não têm a mesma preocupação em relação ao item de proteção e nem o mesmo discurso contra o seu uso", diz Tristan Mendès France, especialista em culturas digitais.
"Há adeptos de teorias do complô, independentemente de sua tonalidade ideológica, e pessoas que têm uma agenda ideológica, mais ligada à extrema-direita, que são contra o governo e o presidente Emmanuel Macron", completa Mendès France.
"Os antimáscaras estão mais presentes entre os eleitores de partidos de extrema direita ou de extrema esquerda. Há, nessa atitude, uma maneira de desobedecer a um governo que eles não aprovam ou de expressar uma relação de desconfiança mais ampla em relação ao Estado e à autoridade em geral", afirma Jocelyn Raude, professor de psicologia social na Escola de Altos Estudos em Saúde Pública da França.
Entre os grupos de defensores do professor Didier Raoult - infectologista francês que fez polêmicos estudos sobre a hidroxicloroquina, medicamento que segundo Raoult seria eficaz no tratamento da covid-19 - há inúmeras pessoas contra o uso obrigatório de máscaras e também contra as vacinas. O virologista atraiu muitos adeptos de teorias do complô. Uma pesquisa do Instituto Jean-Jaurès sobre o perfil dos "fãs" de Raoult revelou que 20% deles votaram, na última eleição presidencial, em 2017, em François Fillon, candidato mais radical da direita tradicional (partido que governou o país diversas vezes), 18% votou em Jean-Luc Mélénchon, da França Insubmissa, o mais votado da extrema esquerda, e 17% optou por Marine Le Pen, da extrema direita.
"É um sintoma do descrédito da palavra científica e da palavra das autoridades. Hoje, são as máscaras. Amanhã, serão as vacinas", prossegue.
Na Alemanha, uma manifestação de antimáscaras com partidos de extrema direita, como o AfD (Alternativa para a Alemanha), e movimentos de extrema esquerda reuniu 15 mil pessoas, segundo a polícia.
Sinais confusos do governo sobre as máscaras
Para alguns, o discurso contraditório do governo francês em relação ao uso das máscaras contribuiu para alimentar confusões e rejeição em relação ao equipamento.
No início do confinamento no país, em março, o governo dizia que elas não eram necessárias para a população e deveriam ser reservadas apenas ao pessoal de saúde. Muitos interpretaram isso como uma maneira de driblar a falta do produto, que começou a ser atenuada apenas em meados de maio.
O primeiro-ministro da época, Edouard Philippe, chegou a dizer que as máscaras "não serviam para nada" no caso de pessoas não contaminadas. Depois, o governo mudou radicalmente seu discurso. Com o aumento recente do número de casos na França, que levou o governo a dizer, na terça-feira (11/8), que "a epidemia evolui na má direção", o objetivo agora é ampliar ao máximo seu uso em áreas públicas ao ar livre, afirmou o novo premiê, Jean Castex.
Apesar de boa parte dos franceses achar que o governo "mentiu" em relação às máscaras, segundo pesquisas, a grande maioria (85%) apoia sua utilização em locais fechados e também abertos (64%).
O movimento antimáscaras no país ainda é algo marginal, mas vem se expandido e tenta se estruturar com diferentes ações, como petições contra a obrigatoriedade do uso do item, iniciativas de boicote de lojas e apelos para a desobediência civil. Manifestações também estariam previstas, mas não há data definida e não se sabe se elas atraíram um número expressivo de participantes.
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