No início de 2020, a publicitária Julia Franco vivia a sua fase mais saudável dos últimos anos. Ela havia abandonado o vício em cigarro e fazia aulas de balé, paixão de infância que tinha retomado recentemente.
O avanço do novo coronavírus no Brasil mudou a rotina dela. Julia, de 31 anos, passou a fazer as aulas de balé online e começou a trabalhar em esquema de home office.
Sem doenças pré-existentes, ela acreditava que caso fosse infectada pelo coronavírus, desenvolveria quadro leve, semelhante a uma gripe.
Em meados de maio, Julia começou a sentir cansaço extremo, tosse seca constante, febre, perda de olfato e teve dificuldades para respirar. Após passar por um exame, descobriu que estava com a COVID-19.
Os efeitos da doença a surpreenderam, por se considerar uma pessoa jovem e saudável. "Não achava que fosse me sentir tão mal", relata à BBC News Brasil. Uma das maiores dificuldades, ela conta, era o sentimento de que o coração "sairia pela boca". "Nunca tive qualquer problema cardíaco, nem tenho histórico disso na família. Mas esse foi um dos meus principais sintomas", diz.
No início de junho, um novo exame apontou que Julia havia se recuperado da COVID-19. O problema no coração, porém, continuou.
Agora, ela faz tratamento específico para o problema cardíaco. O temor da publicitária é que essa situação perdure ao longo da vida.
"Não sei como vai ser daqui para frente. É um vírus muito novo, ninguém sabe as possíveis sequelas. Ainda há muita coisa que os especialistas desconhecem sobre esse vírus", desabafa a publicitária.
O caso de Julia demonstra que o coronavírus, que já infectou mais de 4 milhões de brasileiros, pode deixar complicações sérias.
As consequências da COVID-19 podem ser sentidas em diferentes partes do corpo. Enquanto a publicitária teve problemas no coração, há outras situações, por exemplo, de dificuldades neurológicas, nos pulmões ou nos rins.
A infecção pelo vírus
Julia afirma que não sabe como contraiu o coronavírus. "Desde março, estou em casa. Sempre usei máscaras ao sair. Mas devo ter sido infectada quando fui à farmácia ou ao mercado", diz a publicitária, que mora em São Paulo (SP).
Os primeiros sintomas surgiram após uma aula de balé online. Ela sentiu dores intensas no corpo. "Parecia que eu havia pegado uma gripe bem forte. Estava ofegante. No dia seguinte, comecei a ter tosse seca, não sentia o cheiro de nada e fiquei com febre", relata.
Ela procurou ajuda médica, foi aconselhada a permanecer isolada e fez o exame RT-PCR, que investiga a presença de material genético do vírus, o RNA. O primeiro resultado deu um falso negativo para a COVID-19. "Como eu estava com muitos sintomas, a médica pediu para que eu repetisse o exame. O segundo, então, deu positivo", diz.
O cansaço extremo e os batimentos cardíacos acelerados eram os sintomas que mais incomodavam a publicitária. "No início, o meu coração acelerava somente quando eu fazia algum esforço. Depois, se tornou uma situação constante", diz.
Ela conta que passava grande parte do dia deitada e sempre estava cansada. "Eu tive dificuldades até para levantar um copo d'água", detalha.
As tomografias apontaram que os pulmões da publicitária, que ela acreditava que seriam os órgãos mais prejudicados pela COVID-19, não foram gravemente afetados pela doença.
Para especialistas, a COVID-19 deve ser considerada uma doença sistêmica, não apenas respiratória, porque pode afetar diferentes órgãos.
"A COVID-19 tem preferência pela região pulmonar, mas a reação inflamatória que ela causa pode acometer diferentes áreas do organismo. Ainda não se sabe, ao certo, as causas disso", explica a cardiologista Thalita Merluzzi, que acompanha Julia desde que a publicitária teve os primeiros sintomas.
Os cientistas investigam se os danos a diferentes órgãos são causados diretamente pelo vírus ou por fatores indiretos ligados à doença. Estudos apontam que uma possibilidade, por exemplo, é que a "tempestade inflamatória" que o sistema imunológico gera para tentar combater o vírus, inundando o organismo de citocinas, lesione esses órgãos. Parte também pode ser uma consequência da própria infecção.
Recuperada do coronavírus
Apesar das dificuldades, Julia não precisou ser internada. Ela fez acompanhamento à distância com a médica e tomou medicamentos apenas para amenizar sintomas como febre e tosse.
No início de junho, um novo exame da publicitária deu negativo para a COVID-19. A partir de então, ela acreditava que as dificuldades de saúde cessariam em algumas semanas. No entanto, os problemas no coração continuaram.
Estudos e a observação clínica de profissionais apontam possíveis sequelas que podem ser deixadas pelo coronavírus. Conforme relatado em reportagem da BBC News Brasil de 12 de agosto, ainda não se sabe se essas complicações são temporárias ou perenes.
Já se sabe, por exemplo, que alguns sintomas podem persistir não apenas entre aqueles que tiveram casos mais graves da doença e que, além de danos nos pulmões, o Sars-CoV-2 (nome oficial do coronavírus) pode afetar o coração, os rins, o intestino, o sistema vascular e até o cérebro.
Há diversos relatos de complicações deixadas pela COVID-19 no coração. Um estudo recente, feito na Alemanha, apontou que entre 100 pacientes recuperados, 78% apresentaram algum tipo de anomalia no coração mais de dois meses após a alta. Boa parte (67%) tivera uma forma branda da doença e sequer havia sido hospitalizada.
"Como a COVID-19 causa alteração sistêmica, é esperado que o paciente fique com a frequência cardíaca mais alta (até mesmo um tempo após a recuperação, em alguns casos). Mas o caso da Júlia foi diferente, porque houve um aumento de forma desproporcional da frequência cardíaca", explica Thalita Merluzzi.
Por permanecer com taquicardia, cansaço extremo e intensa falta de ar, Julia continuou sendo acompanhada pela cardiologista. Após diversas avaliações, a publicitária foi diagnosticada com pericardite, um processo inflamatório na membrana que recobre e protege o coração. O problema, segundo Merluzzi, foi causado pelo coronavírus.
"Há vários casos de pericardite entre pessoas em estágio grave com a COVID-19. Mas isso não é comum, como no caso da Julia, quando o paciente não desenvolve um quadro grave da COVID", explica a cardiologista.
As dificuldades
Em razão da pericardite, Julia teve dificuldades para fazer atividades simples que envolvessem esforço físico, como subir e descer escadas. Ela, que acreditava que as coisas melhorariam logo após a COVID-19, ficou frustrada com a situação.
A publicitária não tem histórico de problemas cardíacos na família. Desde outubro passado, abandonou o cigarro. Ela acredita que dificilmente teria problemas de coração se não fosse a COVID-19. "Eu era completamente saudável", diz.
Uma das situações que mais entristecem Julia é o fato de não conseguir retomar as aulas de balé. Ela fez a atividade durante a infância e a adolescência, mas parou aos 16 anos. No ano passado, retomou a prática.
"Estava muito feliz por voltar a fazer balé. Era uma conquista. Durante a quarentena, arrumei a minha casa para fazer as aulas online e estava me preparando para um teste, porque queria dar aulas de balé, que é um sonho antigo", diz Julia.
Ela, que até maio costumava fazer aulas de 1h30 de balé, ainda não conseguiu retomar a atividade. "Por volta de junho, não conseguia fazer nada. Hoje, faço uns cinco ou 10 minutos, mexo um pouco o corpo e paro, porque sinto o coração disparar e falta de ar", lamenta.
As próprias emoções também se tornaram problemas para Julia, após a COVID-19. Ela conta que quando está muito nervosa ou ansiosa, sente o coração bater de modo acelerado. "Nesses momentos, tenho que parar, colocar o oxímetro (aparelho que mede a saturação de oxigênio no sangue e a frequência cardíaca). Se o batimento estiver muito forte, preciso tomar remédio para controlar", diz.
"O meu medo é ficar refém do oxímetro e dos remédios para o coração durante a minha vida toda", desabafa a publicitária, que passou a tomar dois tipos de remédios duas vezes por dia, em razão do problema cardíaco.
Julia tem melhorado aos poucos desde junho, quando iniciou o tratamento para o problema no coração. "Já consigo fazer algumas atividades. Me sinto mais disposta do que semanas atrás. Mas estou recomeçando aos poucos. Não posso fazer esforços. Se eu conseguir voltar a ser como antes, ainda vai levar certo tempo."
A cardiologista Thalita Merluzzi afirma que os casos de pericardite, geralmente, têm cura. "A pessoa pode ter a doença apenas uma vez e nunca mais", afirma. Segundo ela, são poucos os casos em que se torna um problema crônico.
Em relação à pericardite causada pela doença do coronavírus, a médica comenta que ainda não é possível dizer se é um problema irreversível, assim como outras complicações que podem ser originadas pela COVID-19. "Não temos uma resposta, porque é um tema que ainda está sendo estudado", diz a cardiologista.
No fim deste mês, Julia deve passar por novos exames. Caso o coração dela tenha se recuperado, a publicitária deve suspender o tratamento da pericardite. "Tudo isso assusta. O meu maior medo é ter algum dano cardíaco que me impeça de ser mãe, pois tenho muita vontade de ter um filho."
"Toda essa situação mostra que o quanto é ilusória a ideia de que temos o controle sobre algo. Do dia para a noite, os planos e a rotina mudam. É preciso se adaptar", afirma Julia.
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