Jornal Estado de Minas

FORA DE CONTROLE

COVID-19: as lições que Brasil pode aprender com segunda onda de casos na Europa


A primeira onda de COVID-19 na Europa começou a tomar forma a partir do início de março de 2020 e atingiu seu pico durante o mês de abril. Em maio, a situação já parecia estar mais estabilizada, com uma queda importante no número de casos e mortes pela infecção provocada pelo Sars-CoV-2, o coronavírus responsável pela pandemia atual.



Mais recentemente, porém, a situação fugiu novamente do controle e o continente acumula números cada vez mais alarmantes: nos últimos 14 dias, a França, por exemplo, confirmou 421.799 novos casos e 2.193 mortes pela enfermidade.

Os dados são do Centro Europeu de Controle e Prevenção de Doenças.

Na França, a taxa de acometidos e de óbitos por 100 mil habitantes no período de duas semanas chega a ser pior que das nações que lideram o ranking geral da pandemia, como Estados Unidos, Índia e Brasil.

O panorama da COVID-19 também está preocupante em outros países da região, como Reino Unido, Rússia, Holanda, Espanha, Bélgica, Itália e República Tcheca.

Os únicos locais em que os números permanecem relativamente controlados até o momento são Alemanha, Grécia, Noruega e Finlândia.



O crescimento gerou uma série de reações de governos e autoridades públicas: para conter a transmissão do vírus, medidas como toques de recolher, volta das aulas à distância e fechamento de bares, restaurantes e lojas foram anunciadas por governos nos últimos dias.

Os especialistas divergem se o que a Europa está vivendo é mesmo uma segunda onda ou apenas uma continuação da primeira, uma vez que os casos e mortes diminuíram, mas nunca cessaram.

Definições à parte, quais foram os motivos por trás dessa guinada?

Retorno ao (novo) normal

"Com a chegada do verão, os abalos econômicos e a queda na transmissão do vírus entre a comunidade, houve uma enorme pressão para que as coisas voltassem a funcionar como antes por lá", analisa o médico Airton Stein, professor titular de saúde coletiva da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.

Em vários países, as aulas presenciais em escolas e universidades foram retomadas. Restaurantes e bares passaram a funcionar regularmente. Com o clima ameno, muitos europeus decidiram sair de casa e viajar.

O fato de esta segunda onda atingir principalmente os mais jovens é, inclusive, um indicativo de que a reabertura das atividades teve um papel decisivo neste processo — afinal, trata-se da faixa etária que predomina nas escolas e costuma estar em viagens ou eventos sociais com mais frequência.



Jovens em Paris; casos nesta faixa etária indicam que reabertura das atividades teve papel decisivo na segunda onda (foto: REUTERS/Charles Platiau)

Evento programado?

Um novo aumento do número de casos e mortes por COVID-19 era algo que os cientistas já esperavam — e que pode acontecer em boa parte do mundo se algumas medidas não forem tomadas.

O primeiro motivo para isso é o fato de que uma parcela significativa da população parece ainda não ter tido contato com o vírus. Em alguns países europeus, estima-se que a soroprevalência (a porcentagem de pessoas que apresentam anticorpos contra o Sars-CoV-2) esteja abaixo dos 15%. Na prática, isso significaria que os 85% restantes ainda estão vulneráveis à COVID-19.

Vale ponderar que essa soroprevalência e o papel dela na pandemia ainda é muito incerta. Não se sabe, por exemplo, quanto tempo dura uma eventual imunidade contra a COVID-19 ou se todos os acometidos geram uma resposta parecida do sistema de defesa.



Um segundo aspecto que influencia nessa questão é a sazonalidade do vírus. Ao que parece, ele sobrevive mais tempo no inverno e se aproveita do fato de as pessoas ficarem aglomeradas em locais fechados quando a temperatura despenca, o que facilita a transmissão do patógeno. O continente europeu está agora no outono e a temperatura vai cair ainda mais a partir de dezembro, com a chegada do inverno.

Outro fator que contribui bastante para a segunda onda é a maior disponibilidade de métodos de diagnóstico. "Quando a pandemia começou, os países estavam despreparados. Muitos casos estavam ocorrendo, mas eles não foram registrados por falta de estrutura. Sete meses depois e com mais testes em mãos, é possível detectar um número maior de pacientes", explica o virologista Anderson Brito, pesquisador na Escola de Saúde Pública da Universidade Yale, nos Estados Unidos.

Um dos indicadores de que a situação estava piorando na Europa foi justamente a quantidade de testes com resultados positivos: atualmente, entre 4 e 9% dos exames feitos para a COVID-19 por lá confirmam o diagnóstico (antes, esse índice ficava próximo de 1%). O número crescente ligou o sinal de alerta das autoridades sanitárias locais.



Uma boa notícia?


Reino Unido enfrenta segunda onda de casos de covid-19 desde o fim de setembro (foto: PA Media)

Se há algo de positivo a ser destacado da atual experiência europeia até o momento é o fato de a taxa de mortalidade estar mais baixa durante essa segunda onda.

Dados do Centro de Pesquisa e Auditoria em Cuidados Intensivos do Reino Unido revelam que a taxa de pacientes com COVID-19 que morreram em até 28 dias após a internação caiu de 39% do início da pandemia a agosto para 27% a partir de setembro.

Mas esses achados iniciais precisam ser olhados com muita precaução. "A literatura nos mostra que o tempo entre a pessoa se infectar pelo coronavírus e precisar de internação é de uma semana. Da hospitalização até morrer, pode levar mais cinco semanas. E ainda há a demora entre o óbito e a notificação do caso para as autoridades", pondera o médico Marcio Sommer Bittencourt, do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiologia do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo.



Portanto, se os casos de COVID-19 na Europa estão começando a subir nas últimas semanas, é possível que o efeito disso sobre a mortalidade só venha a ser conhecido a partir de meados de novembro ou dezembro.

A maior disponibilidade de testes também têm influência sobre a taxa de óbitos. Um exemplo prático: no início da pandemia, havia um número muito limitado de kits para realizar a detecção da COVID-19. Eles eram, portanto, destinados aos casos mais graves, com sintomas preocupantes.

Se determinada cidade lá no início da pandemia tinha 100 indivíduos infectados, os hospitais e postos de saúde só tinham capacidade para testar dez deles. Vamos supor que, desses que foram diagnosticados, dois morriam. A taxa de mortalidade ficava, então, em 20%.



Imagine que esse mesmo local agora consegue fazer um número bem maior de testes e é capaz de detectar 100 pessoas com coronavírus. Se, neste grupo, duas delas morrem, a taxa de mortalidade despenca para 2%.

Além dessas questões, vale citar ainda que a experiência acumulada dos últimos meses serviu de aprendizado para os profissionais de saúde. "Hoje sabemos melhor como manejar os casos graves e isso permite um prognóstico mais favorável", concorda Stein, que também atua como médico de família e comunidade do Grupo Hospitalar Conceição, na capital gaúcha.

Houve também um tempo para que os hospitais se organizassem, construíssem novas estruturas e treinassem profissionais de saúde para trabalhar na terapia intensiva. Isso evita filas de espera e garante um melhor tratamento aos pacientes que precisam dos cuidados.

Dá para se preparar?


Especialista aponta que curvas de cidades brasileiras como Manaus lembram padrão da Europa, enquanto outros municípios seguiram tendência diferente (foto: Reuters)

Se compararmos as curvas da COVID-19 na Europa e no Brasil, é possível reparar que estamos alguns meses atrasados nos eventos: nosso país chegou a um pico a partir de maio ou junho de 2020, quando a situação começava a ser controlada do outro lado do Atlântico.



Não é possível, porém, fazer comparações precisas entre lugares tão distintos. Cada pedaço do Brasil teve comportamentos epidêmicos próprios.

"As curvas que aconteceram em cidades como Manaus, Belém e São Luís lembram muito o que ocorreu na Europa, enquanto outros lugares do país tiveram curvas longas e achatadas ao longo de um período de tempo", analisa Bittencourt.

Mas, guardadas as devidas particularidades, será que o Brasil tem algo a aprender com essa segunda onda na Europa para evitar ou minimizar os danos?

"O vírus depende da proximidade entre duas pessoas para continuar circulando. Portanto, as medidas de distanciamento físico, o uso de máscaras e a lavagem de mãos continuam importantíssimas", destaca Brito.

Ao mesmo tempo, as autoridades de saúde pública precisam reforçar as medidas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para conter a pandemia. Uma dessas políticas está na criação de um amplo programa de testagem. "Só assim conseguimos detectar os casos, especialmente os assintomáticos, e isolá-los pelos próximos 14 dias", diz Stein.



Nessa mesma linha, outra ação que faz a diferença é o rastreamento de contatos. Na prática, isso significa ir atrás e informar rapidamente os indivíduos que estiveram próximos a alguém infectado pelo coronavírus de que eles também precisam fazer o teste e, se for o caso, obedecer uma quarentena.

Dificuldades pelo caminho

De acordo com os especialistas ouvidos para essa reportagem, o Brasil apresenta falhas nesse momento de preparação para conter uma eventual segunda onda da COVID-19.

"Um aspecto preocupante é uma diminuição do número de testes distribuídos pelo Ministério da Saúde durante o mês de setembro", aponta Stein.

Com a atual tendência de queda nos números de casos e mortes, esse é justamente o momento de ampliar o diagnóstico, pois fica mais fácil acompanhar o avanço do coronavírus pelo país e tomar as medidas necessárias citadas acima: isolar e rastrear possíveis contatos.



De acordo com os dados disponibilizados no site do próprio Ministério da Saúde, até o momento, o Brasil realizou 15,5 milhões testes para detectar a COVID-19. Desses, apenas 7,5 milhões eram exames de PCR, que detectam o vírus ativo, com capacidade de ser transmitido para outros indivíduos.

Os 8 milhões restantes, que representam mais da metade do total informado pela pasta, são os testes rápidos. Eles apenas constatam se a pessoa já teve contato com o Sars-CoV-2 no passado, mas não têm o poder de avaliar se o coronavírus está circulando naquele momento pelo organismo.

Com apenas a informação do teste rápido, de nada adianta fazer o isolamento ou o rastreamento de contatos: como a doença possivelmente já passou (muitas vezes sem dar sinal algum), o paciente pode ter transmitido o vírus para muitas pessoas com quem interagiu.



O Brasil ainda tem um tempo para fazer a lição de casa e estar mais preparado para uma eventual segunda onda. Se esse fenômeno vai se concretizar, isso se relaciona a uma série de variáveis.

"Não é possível ter certeza, pois isso depende de coisas que a gente não sabe e também de intervenções que podemos colocar em prática. A gente vai se preparar? Ou vai deixar rolar? Qual vai ser o status de desenvolvimento de remédios ou vacinas daqui a alguns meses? Não sabemos tudo o que vai acontecer, mas podemos tomar as decisões adequadas para este momento", analisa Bittencourt.


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