Jornal Estado de Minas

10 anos em 10 meses: como cientistas de Oxford criaram em tempo recorde um novo modelo de vacina contra o coronavírus

Os cientistas que desenvolvem a vacina de Oxford contra o Sars-Cov-2 (o vírus que causa a covid-19) conseguiram fazer em 10 meses um trabalho normalmente demora 10 anos. Isso sem cortar caminhos no projeto, nos testes e na fabricação da vacina.

Feita em parceria com a farmacêutica AstraZeneca, a vacina ainda não está disponível para o público, mas tudo indica que as próximas etapas até que isso aconteça serão tão rápidas quanto as que já foram feitas. Trata-se da terceira vacina em desenvolvimento contra o coronavírus (junto com as da Pfizer e Moderna) a apresentar resultados animadores na prevenção da covid-19 nas últimas semanas. Mas a vacina de Oxford usa uma abordagem completamente diferente das demais.



Ao mesmo tempo, a rapidez no desenvolvimento levou muitas pessoas a se perguntarem se é possível confiar na segurança da vacina de Oxford — que publicou seus primeiros resultados nesta segunda-feira (23/11) mostrando que é altamente eficaz em imunizar o corpo contra a covid-19.

O desenvolvimento em tempo recorde foi possível graças a muitos anos de pesquisa de de cientistas, cujo conhecimento acumulado possibilitou uma resposta rápida ao novo desafio.

Mas também dependeu de muito trabalho intensivo nos últimos dez meses, injeção de grandes quantias de dinheiro no projeto, talento científico e também de um pouco de sorte. Entenda mais a seguir:

Acúmulo de conhecimento

O maior equívoco sobre a vacina é achar que o trabalho começou no início da pandemia — na verdade, foi antes.

O maior surto de ebola do mundo, em 2014-2016, foi uma catástrofe. A resposta foi muito lenta e cerca de 11 mil pessoas morreram.

"O mundo deveria ter se saído melhor", diz a professora Sarah Gilbert, a idealizadora da vacina Oxford.



Nas análises que a comunidade científica e de saúde fez após o episódio, surgiu um plano de como enfrentar o próximo grande problema. No final de uma lista de ameaças conhecidas estava a "doença X" — nome sinistro de uma nova infecção até então desconhecida que pegaria o mundo de surpresa.

O Instituto Jenner da Universidade de Oxford — batizado em homenagem ao cientista que realizou a primeira vacinação em 1796 e agora lar de alguns dos maiores especialistas do mundo — projetou uma estratégia para derrotar o inimigo desconhecido.

"Estávamos planejando como podemos desenvolver uma vacina no menor tempo possível", diz Gilbert. "Não tínhamos concluído o plano, mas nos saímos muito bem."

A tecnologia central

A peça central do plano era um tipo revolucionário de vacina chamado de "plug and play" (algo como conectar e ligar, em inglês). Ela possui duas características altamente desejáveis para enfrentar o desconhecido: é rápida e flexível.



As vacinas convencionais — incluindo todo o programa de imunização infantil — usam uma forma morta ou enfraquecida do vírus original, ou injetam fragmentos dele no corpo, para que nosso sistema imunológico aprenda a combater a doença antes que ela seja uma ameaça. Mas esse tipo de vacina demora muito para ser desenvolvida.

Em vez disso, os pesquisadores de Oxford construíram o ChAdOx1 - ou Chimpanzee Adenovirus Oxford One.

Os cientistas pegaram um vírus do resfriado comum que infectou chimpanzés e o desenvolveram para se tornar o bloco de construção de uma vacina contra quase tudo.

Antes mesmo da pandemia da covid, 330 pessoas haviam recebido vacinas baseadas na ChAdOx1 para doenças que vão desde gripe ao vírus da zika, de câncer de próstata à chikungunya.

As partículas que são capazes de estimular o corpo a produzir anticorpos (que atacam os vírus) são chamadas de antígenos. A ChAdOx1 é um tipo de antígeno que os pesquisadores modificam para produzir diferentes anticorpos.



O vírus dos chimpanzés é geneticamente modificado para não causar infecção nas pessoas. Ele pode então ser modificado novamente para conter os esquemas genéticos de tudo o que você deseja treinar o sistema imunológico para atacar.

ChAdOx1 é, em essência, um carteiro sofisticado e microscópico. Tudo o que os cientistas precisam fazer é mudar a encomenda.

1 de janeiro

Enquanto grande parte do mundo estava dormindo após a véspera de Ano Novo, Sara Gilbert notou relatos de uma "pneumonia viral" em Wuhan, na China. Em duas semanas, os cientistas identificaram o vírus responsável e começaram a suspeitar que ele pudesse se espalhar e ser transmitido de pessoa para pessoa (até então a suspeita era de que as pessoas haviam contraído o vírus direto de animais).

"Estávamos nos planejando para a doença X e pensei que poderia ser ela chegando", afirma Gilbert.

Mas naquele momento, a equipe não sabia o quão importante seu trabalho se tornaria. Tudo começou como um teste de quão rápido eles conseguiriam agir e como uma demonstração da tecnologia ChAdOx1.



"Achei que poderia também acabar sendo apenas um projeto, nós faríamos a vacina e o vírus desapareceria. Mas não aconteceu."

Questão de sorte

Parece estranho, mas, de certo modo, foi uma 'sorte' que a pandemia tenha sido causada por um coronavírus e não outro tipo de vírus.

Essa família de vírus já havia tentado pular de animais para pessoas duas vezes nos últimos 20 anos — com a epidemia de Sars em 2002 e com a de Mers em 2012, ambos causados por um tipo de coronavírus.

Isso significava que os cientistas conheciam a biologia dessa família de vírus, como ela se comportava e sua fraqueza — a "proteína da espícula" (os 'espinhos' que formam a 'coroa' do coronavírus).

"Tivemos uma grande vantagem inicial", diz o professor Andrew Pollard, principal pesquisador da equipe da vacina de Oxford.

A proteína da espícula é a chave que o vírus usa para abrir a porta de entrada nas células do nosso corpo. Se uma vacina pudesse treinar o sistema imunológico para atacar a espícula, a equipe sabia que tinha chances de ter sucesso.



E como os pesquisadores já haviam desenvolvido uma vacina para Mers a partir da ChAdOx1, a equipe de Oxford não estava começando do zero.

"Se este fosse um vírus completamente desconhecido, estaríamos em uma posição muito diferente", diz Pollard.

Também foi uma "sorte" que os coronavírus causassem infecções de curto prazo. Isso significa que o corpo é capaz de derrotar o vírus sozinho e uma vacina só precisa explorar esse processo natural.

Se fosse uma infecção crônica ou de longo prazo que o corpo não conseguisse vencer — como o HIV —, é improvável que uma vacina pudesse funcionar.

Os pesquisadores também contaram com o conhecimento e o trabalho de outros cientistas no mundo. Em 11 de janeiro, pesquisadores chineses publicaram e compartilharam com o mundo o código genético completo do coronavírus. A equipe agora tinha o que precisava para fazer uma vacina para a covid-19.



Tudo o que faltava fazer era inserir as instruções genéticas da proteína da espícula no ChAdOx1.

Muito investimento

Fazer uma vacina é um processo muito caro. Apesar do financiamento da universidade, diz Pollard, "a primeira parte foi muito dolorosa. Houve um período em que não tínhamos nenhum dinheiro".

A equipe acabou tendo uma vantagem crucial sobre outros grupos ao redor do mundo. No hospital da Universidade de Oxford fica a própria fábrica de vacinas da instituição.

"Podíamos dizer: 'pare tudo e faça esta vacina'", explicar Pollard. Foi o suficiente para começar, mas não para fazer as milhares de doses necessárias para testes maiores.

"Conseguir dinheiro foi minha principal atividade até abril; apenas tentar persuadir as pessoas a financiar o projeto", diz Gilbert.

Mas à medida que a pandemia avançou no mundo e países começaram a fazer lockdowns e quarentenas, os cientistas foram conseguindo mais financiamento.



A produção da vacina foi transferida para uma instalação na Itália e o dinheiro ajudou a resolver problemas que, de outra forma, teriam atrasado os testes, incluindo o pesadelo logístico do confinamento da Europa.

"À certa altura tivemos que fretar um avião: a vacina estava na Itália e tínhamos testes clínicos aqui na manhã seguinte", diz Gilbert.

Testes consecutivos

Os pesquisadores não podem começar a aplicar uma vacina experimental às pessoas até que tenham certeza de que ela tem um padrão de qualidade alto o suficiente.

Em todas as fases do processo de fabricação, eles precisam garantir que a vacina não esteja contaminada com outros vírus ou bactérias. No passado, esse era um processo demorado.

(foto: Reuters)

Mas como os cientistas já tinham se planejado para tornar o processo mais ágil, conseguiram iniciar os testes cerca de dois meses antes do que seria o esperado.

Depois que os testes em animais mostraram que a vacina era segura, os pesquisadores puderam começar os testes em humanos em 23 de abril.



Desde então, a vacina Oxford passou por todos os estágios de testes que normalmente seriam realizados para uma vacina.

Existe um roteiro para os testes clínicos:

- Fase 1: a vacina é testada em um pequeno número de pessoas para verificar-se se é segura

- Fase 2: testes de segurança em mais pessoas são feitos e os pesquisadores procuram os sinais de que a vacina está produzindo a resposta necessária do corpo

- Fase 3: a fase crítica em que a vacina é aplicada em milhares de pessoas para garantir que ela realmente consegue proteger a população

A vacina Oxford passou por cada um desses estágios, incluindo a aplicação em 30 mil voluntários no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil na fase três. E a equipe tem tantos dados quanto qualquer outro desenvolvimento de vacina, mas sem que tivessem sido necessários anos de espera entre cada fase.

Agilidade na burocracia

O médico Mark Toshner, que esteve envolvido nos testes da vacina em Cambridge, disse que a ideia de que normalmente se demora 10 anos para testar uma vacina é muito enganosa.

"Na maioria das vezes, é um tempo em que nada acontece entre as diferentes fases", afirma.

Ele diz que o mais demorado é o processo de fazer solicitações de investimento e autorizações, receber negativas, redigi-las novamente e obter aprovação para fazer o teste. Também são demorados a negociação com fabricantes de vacinas e o processo de tentar recrutar pessoas suficientes para participar. Tudo isso faz com que possa levar anos para passar de uma fase para a próxima.



"O processo é longo, não porque precisa ser e não por uma questão de segurança, mas por causa do mundo real (fora da academia)", diz Toshner.

No processo da vacina de Oxford, a segurança não foi sacrificada. Em vez disso, o esforço científico inédito para fazer os testes acontecerem, a multidão de pessoas dispostas a participar e, é claro, o investimento de muito dinheiro evitaram os atrasos habituais.

Isso não significa que problemas não surgirão no futuro. Normalmente, os efeitos colaterais das vacinas aparecem no momento em que são administradas ou alguns meses depois.

É possível que problemas mais raros possam surgir quando milhões de pessoas são imunizadas, mas isso é verdade para todas as vacinas que já foram desenvolvidas.

Quando a vacina será distribuída para a população?

Os planos de aprovação regulatória e fabricação da vacina também foram dramaticamente acelerados.

O Reino Unido já tem 4 milhões de doses da vacina prontas para serem aplicadas, e outras 96 milhões para serem entregues.



A equipe de Oxford fez parceria com a gigante farmacêutica AstraZeneca, e a fabricação da vacina começou muito antes de os resultados aparecerem. Na época, foi uma aposta, mas valeu a pena.

As agências reguladoras, que normalmente esperariam até que os testes fossem concluídos, também participaram desde o início.

A agência reguladora de medicamentos e produtos de saúde no Reino Unido tem conduzido "análises contínuas" da segurança, padrões de fabricação e eficácia da vacina Oxford. Isso significa que uma decisão sobre se a vacina pode ser usada virá mais cedo.

No Brasil, a Fiocruz negociou um acordo com a AstraZeneca para a compra de lotes e transferência de tecnologia, o que permitiria a produção da vacina no Brasil no início de 2021.

O acordo prevê a entrega de 15 milhões de doses até dezembro de 2020 e outros 15 milhões até janeiro de 2021. Esse montante seria suficiente para imunizar 15% da população brasileira. Em seguida, seriam produzidas mais de 70 milhões de doses, com custo unitário em torno de R$ 12.

Mas a distribuição no Brasil depende ainda de uma análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e não há prazo determinado para esse aval.

Ambos os países estão concluindo o planejamento de distribuição da vacina na população. Idosos e profissionais de saúde devem receber as primeiras doses disponíveis.


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