"Para nós que trabalhamos com costura, a pandemia chegou forte. Todas as oficinas ficaram sem serviço, tivemos que procurar outras coisas para poder ter uma renda, porque, para o boliviano, o aluguel é sempre mais pesado, é mais caro."
"A entrada de pedidos de roupas diminuiu muito, praticamente foi a zero, porque não tinha lojas abertas. Tivemos que focar em máscaras e aventais, mas é um trabalho que requer mais esforço."
"Eles estavam pagando 30, 20, até 10 centavos por máscara. Ficou bem complicado mesmo. Para ter um bom rendimento para sua casa, é preciso fazer muito. Trabalhamos umas 14 a 16 horas por dia para tirar algum dinheiro."
O relato é de Aracely Merida, de 38 anos, boliviana e moradora de São Paulo há 15 anos. Mãe de três filhos, ela e o marido trabalham juntos com costura, numa oficina que é também a casa da família.
A realidade de Merida é a de muitos imigrantes que trabalham com costura na cidade de São Paulo durante a pandemia, aponta estudo da organização não-governamental britânica Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos (Business and Human Rights Resource Centre), lançado nesta quinta-feira (3/12).
9 em cada 10 tiveram perda de renda
Segundo a pesquisa, 87% desses trabalhadores sentiu uma mudança drástica em seus rendimentos em meio à crise. Entre os entrevistados, 42% relataram que ficaram sem renda, enquanto 45% disseram que sua renda diminuiu consideravelmente.
O estudo ouviu 146 imigrantes, em sua maioria mulheres bolivianas, com idades entre 17 e 65 anos, moradoras de São Paulo ou região metropolitana, entre os dias 21 de julho e 16 de setembro de 2020. A pesquisa foi realizada por meio de formulário online, com a ajuda do Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante).
Conforme o levantamento, 87% das respondentes não contam com contratos formais de trabalho, incluindo trabalhadoras com vínculos informais (47%) e aquelas que trabalham como autônomas (40%). Apenas 12% trabalhavam com carteira assinada.
Cerca de 34% dessas profissionais relatavam ter renda mensal até R$ 522,50 - a metade de um salário mínimo - e 40% até R$ 1.045.
No momento da entrevista, 56% estavam recebendo o auxílio emergencial, enquanto 8% chegaram a receber, mas tiveram o benefício cortado, e 20% solicitaram e não receberam.
Fome e máscaras
Com a perda de renda na pandemia, 61% disseram ter passado por dificuldades para se alimentar e 93% das que mandavam dinheiro para familiares em seu país de origem não conseguiram mais fazer essas transferências.
"Muitas passaram fome, tiveram dificuldade em ter dinheiro suficiente para comprar comida", conta Marina Novaes, pesquisadora e representante no Brasil do Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos. "Com isso, tiveram que se submeter a costurar máscaras, a preços super baixos e sob jornadas exaustivas."
Segundo Novaes, o poder dessas trabalhadoras para negociar os preços das peças que costuram é muito baixo.
"É questão de necessidade, era necessário sobreviver e ter algum tipo de trabalho. Se o dono da oficina não concorda com o valor pago pela peça, a pessoa que ia fazer o pedido simplesmente passa para outro dono de oficina."
"Compramos as máscaras por R$ 5 ou R$ 10 e isso nos parece um preço razoável. Mas, por trás disso, temos relatos de pessoas que costuraram máscaras a 5 centavos."
Segundo a pesquisa, 84% das trabalhadoras costuraram máscaras durante a pandemia. E mais de três em cada quatro entrevistadas (78%) afirmaram que os preços pagos pelos pedidos diminuíram ao longo da crise.
Viver para trabalhar
Das entrevistadas, 89% moram no mesmo local onde costuram, como Merida. 56% têm filhos em idade escolar e, destes, 30% não tinham acesso à internet para acompanhar as atividades de educação à distância.
"São pessoas que já têm jornadas exaustivas e, morando no mesmo local onde se trabalha, isso não tem limite", diz Novaes. "Com a pandemia, a situação domiciliar se agravou, já que antes as crianças passavam um período na escola e agora passaram a estar também todo o tempo em casa, muitas delas, sem a estrutura adequada para acompanhar as aulas online."
Nesse cenário de dificuldades, a pesquisa também perguntou às trabalhadoras sobre sua saúde mental e bem-estar. 82% disseram ter sentido medo, 41% tristeza, 36% desespero e 34% sofreram com estresse e ansiedade.
Com relação à COVID-19, cerca de 5% disseram ter pegado a doença e 19% conheciam alguém que se infectou, enquanto 17% conheciam alguém que morreu devido à enfermidade.
Retorno lento à normalidade
Enquanto 91% das trabalhadoras relataram que os pedidos pararam totalmente no início da pandemia, 47% afirmam que, agora, os pedidos estão voltando aos poucos.
"Como todos os bolivianos, ficamos no perrengue, atrasando contas, atrasando pagamentos, até o aluguel ficou atrasado. Mas, graças a Deus, estamos indo, pagando aos poucos", conta Merida.
"Agora já voltou a costura de roupas, mas ainda é pouca. É bem devagar, porque há toda uma incerteza do que vai acontecer daqui para frente. As pessoas que fazem os pedidos estão com receio de dar mais serviço e ficar com estoque."
Como recomendações, para que a realidade das costureiras imigrantes seja melhor à frente, os pesquisadores sugerem ao poder público mapear as populações migrantes e incluí-las na rede pública de proteção social. Também pedem a definição de políticas de combate à exploração do trabalho e intensificação da fiscalização.
Para as empresas, a recomendação é mapear cadeias de suprimentos, realizar a devida diligência para identificar, prevenir e mitigar riscos negativos em suas cadeias produtivas, e garantir aos trabalhadores a liberdade de se organizar.
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