A enfermeira brasileira Áurea de Souza, de 38 anos, chegou à Inglaterra em 2006 "sem falar uma palavra" em inglês. Quatorze anos depois, é gerente-geral de um asilo no sudeste de Londres, administra uma equipe de dezenas de profissionais e supervisiona o atendimento de 52 idosos.
Agora, a brasileira e seus colegas estão entre as primeiras pessoas elegíveis à recém-aprovada vacina contra o coronavírus, que começa a ser aplicada no Reino Unido na terça-feira (08/12).
Em entrevista à BBC News Brasil por telefone, ela oscila entre otimismo e cautela sobre a tão esperada fórmula que pode frear a pandemia que já matou mais de 1,5 milhão de pessoas.
"No começo eu fiquei um pouco apreensiva, porque pensei: 'Como é que acharam uma solução tão rápida para um vírus tão novo?'. A gente fica com um pouco de medo", diz a brasileira.
"Mas eu acredito que essa é a nova forma de viver, não vai ter para onde correr. E, também, se é para os meus velhinhos terem oportunidade de ver a família... Porque é muito difícil para eles", ela continua, citando a tristeza dos idosos que, depois de meses totalmente isolados, hoje só podem ver parentes através de barreiras de acrílico em uma sala especial.
"Até agora, desde março, nenhum dos meus velhinhos pode dar um abraço na família", conta a brasileira. "Estamos pensando positivo. Porque sofremos muito e a gente não pode continuar assim."
Na semana passada, o Reino Unido se tornou o primeiro país do mundo ocidental a aprovar uma vacina contra o novo coronavírus para uso generalizado na população.
Segundo o órgão regulatório britânico MHRA, a vacina Pfizer/BioNTech, que oferece até 95% de proteção contra a covid-19, é segura. Com o sinal verde, o país já encomendou 40 milhões de doses dessa vacina - o suficiente para vacinar 20 milhões de pessoas.
Segundo o cronograma do governo, os primeiros a receberem doses serão funcionários e residentes de casas de repouso e asilos, pessoas com mais de 80 anos e funcionários da linha de frente do sistema de saúde pública.
Áurea de Souza, seus colegas e os pacientes estão no topo desta lista.
"Acho que esse vai ser o único jeito de o país voltar ao normal", ela diz.
'Me mudei para o asilo'
O surgimento da pandemia exigiu mudanças na rotina de muita gente. Mas, para quem trabalha em asilos, a transformação foi brutal.
"A gente teve que tomar medidas drásticas. Eu me mudei para o asilo. Por três meses, fiquei morando aqui dentro", conta Souza, que em 18 de março decidiu fechar para parentes e visitantes as portas da casa St. Augustine, onde trabalha, a cerca de uma hora de carro de Londres.
A decisão se manteve até meados de junho, quando uma estrutura que permitisse a segurança dos idosos havia sido finalmente desenhada.
"Era tudo muito novo. Faltavam equipamentos de proteção individual, máscaras. Foi um momento muito difícil. Se alguém tivesse sintomas, não tinha como testar", lembra.
Há seis meses, depois de duras críticas sobre a alta incidência de mortes e a maneira como lidou com casas de repouso, o governo do Reino Unido aumentou o envio de verbas, máscaras, luvas e medicamentos, e adotou uma política de testagem semanal para todos os funcionários.
"É obrigatório. É uma maneira de controlar o risco de infecção. E os idosos são testados a cada 28 dias", conta a brasileira.
Ela explica que a decisão de se mudar para o local de trabalho visava minimizar a chance de transmissão da doença para os idosos.
"A pressão que os asilos estão vivendo no momento é muito grande, muitas vezes as famílias não entendem", diz. "Se houver um surto aqui dentro, a responsabilidade é minha."
'Não consigo dormir'
Meses depois, o medo de contaminar os residentes ainda persegue a brasileira.
"É uma responsabilidade muito grande, às vezes vou para casa e não consigo nem dormir. A gente fica sempre pensando no covid-19. Todo dia a gente vem trabalhar com medo, porque não sabe o que vai acontecer. Mas a gente põe a fé e a mão no coração e vem trabalhar", ela diz.
A enfermeira, natural do Espírito Santo, tinha viagem marcada para o Brasil para comemorar o casamento do irmão. Tudo foi cancelado.
"Eu tenho muito receio. Não saio. Não viajei para o Brasil, para lugar nenhum, e não sei quando vou poder ir, porque a gente tem medo de trazer infecção para o asilo. Mesmo sendo testado toda semana, isso não quer dizer que não podemos pegar o vírus."
Durante a entrevista, ela se lembra de rotinas banais que hoje se tornaram memórias distantes.
"A vida que eu tinha antigamente, sair, dançar, me encontrar com outras pessoas, não existe mais. É asilo, casa e shopping para comprar o essencial."
A vacina recém-aprovada no Reino Unido é mais rápida de todos os tempos a ir do conceito à realidade - ela levou apenas 10 meses para seguir os mesmos passos de desenvolvimento que normalmente duram uma década.
Embora a vacinação esteja prestes a começar no país, as pessoas ainda precisarão permanecer vigilantes e seguir as regras para impedir a propagação do coronavírus, dizem especialistas.
Isso significa manter o distanciamento social e o uso de máscaras, testar pessoas que podem ter o vírus e pedir que se isolem em caso de risco de contaminação.
'Triste pelo Brasil'
Enquanto os britânicos começam a experimentar a imunização contra o novo coronavírus, o Brasil ainda não tem uma política nacional clara de vacinação.
A Pfizer, farmacêutica responsável pela vacina que será aplicada no asilo comandado por Souza na Inglaterra, também deve fornecer até 600 milhões de doses para os EUA, outras 200 milhões para a União Europeia, 120 milhões para o Japão e 60 milhões para países latino-americanos - conta que não inclui o Brasil.
"Fico triste pelo Brasil porque eles não têm o suporte que nós temos", diz Áurea de Souza. "Eu gostaria muito que o nosso Brasil tivesse um tipo de governo assim, que se importasse também com as pessoas. O Brasil sofre por isso, porque os políticos não se importam tanto com os brasileiros", avalia.
"Falei com a minha mãe, por favor, olha só essa politicagem no Brasil. Ninguém está usando a máscara, tem esse acúmulo de gente. Eu digo a ela 'fica em casa, não fica muito na rua, se misturando', entende? Esse vírus é sério, e acho que no Brasil muitos não estão levando isso a sério."
Segundo o ministério da Saúde, pessoas com 75 anos ou mais, profissionais de saúde e indígenas serão os primeiros a ser vacinados contra a covid-19 a partir de março. Não há perspectiva de vacinar toda a população até o fim de 2021, nem vacina registrada no pais.
Nos últimos meses, o Brasil anunciou a compra de doses atrelada à transferência de tecnologia da candidata à vacina desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford, na Inglaterra.
O governo do estado de São Paulo fez uma parceria entre o Instituto Butantan e a chinesa Sinovac para testar e fabricar CoronaVac. Já o Paraná anunciou que produzirá o imunizante Sputnik V, desenvolvido na Rússia.
O Brasil também aderiu ao Covax, um consórcio da Organização Mundial da Saúde (OMS) para custeio e distribuição das futuras vacinas aos países mais pobres. Isso pode garantir que uma parcela da população tenha acesso às doses ao longo de 2021.
Todos esses acordos, no entanto, dependem do resultado dos estudos clínicos de fase 3 e da aprovação da Anvisa.
Na tarde desta segunda-feira, pelo Twitter, o presidente Jair Bolsonaro disse que "ofertará a vacina a todos, gratuita e não obrigatória", mas não informou datas, laboratórios, nem de que forma acontecerá a distribuição.
Trajetória
Desde que chegou à Inglaterra, há 14 anos, a brasileira trabalhou em 7 lares de idosos.
"Hoje eu sou responsável geral pelo asilo. Sou responsável pelos funcionários, pelo bem-estar e segurança dos residentes. Meu trabalho é ser transparente também. Se houver um erro de medicação, erros, meu trabalho é reportar. É corrigir. É proteger os meus velhinhos de abusos. Meu trabalho é manter a segurança, manter as equipes treinadas. É entregar o melhor cuidado", diz Souza à reportagem.
Em 2006, sem falar inglês, ela recebeu uma série de "nãos" em centros de emprego.
"Foi muito difícil pra mim, eu chorava bastante", lembra.
A virada aconteceu depois que ela se inscreveu para um trabalho pela internet, usando uma ferramenta online de tradução.
"Na entrevista, a única coisa que eu conseguia falar era que trabalhei em farmácia no Brasil por 6 anos e em hospital também", lembra.
A chefe do asilo resolveu apostar na brasileira e ofereceu um trabalho integral como enfermeira.
"No começo, eu não sabia falar nada. Eu pensava 'Meu Deus, o que vou fazer?. Aí decidi usar minha experiência. Um dia uma velhinha me pediu um pedaço de 'toast', e eu não sabia o que era. Eu estava toda perdida, sabia que tinha gente me olhando, porque eu estava no primeiro dia."
A brasileira prossegue, sorrindo. "Aí eu comecei a cantar para a velhinha aquela música "You Are My Sunshine". Ela me viu cantar, viu que eu estava com um problema de comunicação e veio me ajudar e me mostrou que "toast" era torrada, pão. Eu pensei 'é com esses velhinhos que eu preciso ficar' (para aprender)", disse.
Seis meses depois, Áurea de Souza seria escolhida a melhor cuidadora do ano no asilo em que trabalhava.
Hoje, mesmo em um cargo de chefia, a brasileira continua próxima dos residentes.
"Quando eu me mudei para o asilo, comecei a fazer festas, porque sou muito apaixonada pelo meu trabalho. Os meus velhos estavam tristes, então comecei a fazer carnaval, um monte de coisa para alegrar", diz.
O que a mantém otimista?
"A fé. Eu poderia ter largado tudo e ido para o Brasil, mas eu amo muito esse trabalho. Cheguei aqui muito nova, comecei (na Inglaterra) cuidando de velhinhos. Para mim é uma história, eu amo muito o que faço, não é por dinheiro."
A vacina que começará a ser distribuída para profissionais como a brasileira é administrada em duas injeções, com 21 dias de intervalo, sendo a segunda dose um reforço.
Segundo o cronograma de vacinação do Reino Unido, a imunização em massa de pessoas com mais de 50 anos, bem como de pessoas mais jovens com comorbidades, deve acontecer à medida que mais estoques se tornam disponíveis no primeiro semestre de 2021.
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