Desde o início de 2020, o governo chinês se viu diante de dois grandes desafios: uma doença causada por um coronavírus desconhecido que se espalhava pela população, e a onda de vozes online tentando contar ao mundo o que estava acontecendo no país.
Ao final deste ano, segundo o que se pode observar na mídia estatal chinesa, parece que ambos estão sob controle.
Kerry Allen e Zhaoyin Feng, da BBC, apresentam neste texto um panorama da barreira de informação erguida ao longo do ano em paralelo às barreiras sanitárias, mostrando como os censores tiveram de trabalhar mais do que nunca para suprimir informações negativas, como alguns cidadãos conseguiram burlar o chamado Grande Firewall da China e, finalmente, como a máquina de propaganda do governo conseguiu reescrever a narrativa da pandemia.
Mensagens escapando à censura
No começo do ano, milhares de mensagens pipocaram nas redes sociais chinesas questionando se os governos locais estariam encobrindo a chegada de um vírus semelhante ao da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) em 2013.
Censores do governo até se esforçaram rotineiramente para silenciar mensagens desfavoráveis às autoridades em redes como o Weibo, mas o volume era tão grande que muitas permaneceram visíveis.
Depois, quando Pequim arquitetou uma estratégia de comunicação mais robusta, estes relatos foram abafados.
Entretanto, em janeiro e fevereiro, diversos veículos de comunicação aproveitaram as lacunas que o governo não conseguiu tampar para publicar apurações contundentes, amplamente compartilhadas nas redes sociais.
Dedos apontaram culpados em várias direções.
Em meados de janeiro, o presidente, Xi Jinping, repentinamente passou a ser uma figura ausente na mídia chinesa e das vistas do público. Houve algumas especulações de que ele estava evitando ser responsabilizado pelo surto.
Dentro de uma semana, porém, as coisas mudaram consideravelmente. Funcionários de alto escalão começaram a avisar governos locais que "estariam para sempre pregados no pilar da vergonha histórica" se escondessem informações sobre casos de covid-19 em suas regiões.
Na mídia estatal e nas redes sociais, a culpa foi deslocada em direção a Wuhan, onde surgiram os primeiros casos da nova doença. Jornais como Beijing News publicaram artigos extraordinariamente críticos, fazendo perguntas como: "Por que Wuhan não trouxe informações a público mais cedo?"
Jinping então reapareceu no início de fevereiro, buscando representar confiança e força no processo de recuperação da China.
Censura (e solidariedade) em torno de um médico
Ao longo do tempo, ficou evidente que uma voz silenciada gerou muito barulho.
O médico Li Wenliang ficou conhecido em todo o mundo como o "informante" que tentou alertar colegas sobre o aparecimento de um vírus semelhante ao Sars.
Ele morreu em 7 de fevereiro da nova doença sobre a qual tentou alertar, depois de ter sido investigado por "perturbar a ordem social" ao "fazer alegações falsas".
Mais de um milhão de internautas deixaram homenagens no perfil de Li no Weibo após sua morte, que muitos chamaram de "Muro das Lamentações" da China.
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No entanto, postagens eram sistematicamente apagadas, frustrando internautas. Por isso, eles buscaram alternativas para continuar com as homenagens, usando emojis, escrita chinesa antiga e até código Morse.
Também surgiu uma tendência no Facebook e no popular aplicativo de mensagens WeChat: usuários escrevendo em suas máscaras frases como "Não posso" e "Não entendo". Elas estavam fazendo referência a frases de policiais no interrogatório do médico, que foi perguntado "Você pode fazer?" e "Você entende?" sobre a necessidade de parar de "fazer alegações falsas".
Sumiço de jornalistas na China, e visibilidade no exterior
Embora as autoridades tenham reconhecido Li Wenliang como um "mártir", vários ativistas notáveis podem ficar de fora da história oficial da covid-19 no país.
No surto de Wuhan, vários jornalistas tiveram um impacto notável internacionalmente, contornando o Grande Firewall da China para divulgar o que estava acontecendo na cidade.
Neste grupo, estão pessoas como Chen Qiushi, Fang Bin e Zhang Zhan. Elas acumularam centenas de milhares de visualizações no YouTube com vídeos que, segundo eles, mostravam uma imagem verdadeira do que estava acontecendo em Wuhan.
No entanto, isso teve um custo. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) observa que, em Wuhan, as autoridades "prenderam vários jornalistas por uma cobertura que ameaçava a narrativa oficial sobre a resposta de Pequim (à covid-19)".
Segundo o CPJ, três ainda estão na prisão. E como o YouTube é bloqueado na China, poucos no país sabem de seu impacto.
Um caso intrigante que levantou várias dúvidas foi o do jornalista Li Zehua, desaparecido em fevereiro após postar um vídeo no YouTube dizendo que estava sendo perseguido em seu carro pela polícia.
Ele ficou sumido por dois meses, até postar um vídeo afirmando que estava cooperando com as autoridades e de quarentena.
Desde então, não houve novos vídeos, e muitos sugerem que ele pode ter sido forçado a publicar o vídeo afirmando que estava bem.
Protestos de universitários
Desde março, a China apostou na imagem da superação do coronavírus mas para isso precisou abafar ecos de descontentamento, principalmente entre os jovens.
O governo do país enfatizou que deseja evitar outro bloqueio rigoroso ao estilo de Wuhan, entretanto, o jornal South China Morning Post relata que muitas universidades continuaram com "bloqueios generalizados do campus".
Em agosto, muitos alunos voltaram para uma sala de aula física pela primeira vez, mas isso veio acompanhado de reclamações de problemas no uso de internet e no horário de banho, racionadas por universidades por conta do súbito excesso de atividade.
A raiva e a insatisfação entre os jovens fizeram com que muitos passassem a usar mídias sociais menos conhecidas que as tradicionais, de forma a compartilhar suas reclamações.
Preocupação com as futuras versões da história
Nos últimos meses, a China tem buscado pintar um quadro excessivamente otimista sobre a pandemia.
Muitos chineses estão preocupados com as narrativas pós-covid.
A autora chinesa Fang Fang recebeu muitos elogios no início do ano por documentar sua vida em Wuhan e dar uma rara amostra dos medos e motivações dos moradores da cidade onde a covid-19 surgiu.
Entretanto, seu diário online a tornou alvo de fervorosos nacionalistas chineses, que a acusam de tentar difamar o país e promover uma "narrativa apocalíptica".
A mídia estatal tem procurado promover outros livros, inclusive de expatriados, para reforçar a mensagem otimista do governo sobre a gestão da pandemia pelas autoridades.
Entretanto, algumas produções patrocinadas pela mídia estatal têm gerado críticas, como a série Heróis na Rota do Perigo, "baseada em histórias da vida real" de trabalhadores da linha de frente da pandemia. Ela foi acusada de minimizar o papel das mulheres na luta contra o coronavírus.
Dedo apontado para os EUA
Além de dizer a seus próprios cidadãos que, apesar de algumas derrotas, ganhou a guerra contra a covid-19, a China também quer dizer o mesmo ao mundo.
Para isso, ela busca se desvincular das origens do coronavírus e promover a ideia de que seu sucesso na gestão da pandemia significa que seu modelo político é mais bem-sucedido do que o do Ocidente.
Isso foi desde desestimular o uso de termos como "o coronavírus de Wuhan", que chegou a ser usado pela própria mídia chinesa no início, a fazer insinuações de que o coronavírus pode ter surgido no Ocidente.
Ao longo do ano, veículos de comunicação do país não perderam a oportunidade de apontar falhas e problemas na gestão da pandemia nos Estados Unidos e no Reino Unido, entre outros países.
Por isso, é comum internautas chineses chamarem o patógeno causador da covid-19 de "vírus da América" ou "vírus de Trump".
Se há uma mensagem que a China quer levar para 2021, é a de que o país está fechando um ano difícil com unidade e prosperidade, enquanto outros países devem esperar por mais conflitos e instabilidade.
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