Jornal Estado de Minas

'Se minha mãe pegar covid-19, não sei se terei leito para interná-la', diz médico sobre caos na saúde em Manaus

"Pensa no pior cenário possível. A situação aqui está dez vezes pior."

Essa foi a resposta que o médico Daniel Fonseca deu à reportagem da BBC News Brasil na terça-feira (12/01), quando perguntado sobre o atual estágio da pandemia em Manaus.



Diretor técnico do Grupo Samel, organização que controla cinco hospitais e centros médicos particulares da capital amazonense, Fonseca antecipou em alguns dias um cenário que estava prestes a eclodir: o colapso total do sistema de saúde manauara.

"Se minha própria mãe pegar covid-19, eu não sei se terei um leito para interná-la", conta.

Nas últimas horas, relatos de falta de oxigênio nos hospitais começaram a circular pelas redes sociais. Diversos veículos de imprensa confirmaram a situação desesperadora em muitos dos hospitais da cidade.

Os cilindros com esse gás são essenciais para manter e estabilizar os pacientes com covid-19 grave - além de pacientes com outras enfermidades. Sem esse insumo básico, muitos indivíduos hospitalizados vão acabar morrendo.

Nos últimos dias, a BBC News Brasil conversou com profissionais da saúde que atuam na linha de frente da pandemia em Manaus. Os relatos revelam a dor, o cansaço e a desesperança de quem precisa lidar com uma demanda que só cresce e parece não ter fim.



Falta de tempo e ameaças

Das dezenas de médicos, fisioterapeutas, enfermeiros e auxiliares de enfermagem contatados pela reportagem, a maioria preferiu não se manifestar.

Foram dois os motivos principais para a recusa. Primeiro, uma absoluta falta de tempo para outra coisa que não seja o trabalho.

"Estou dormindo apenas quatro horas por dia, quando durmo", contou, por meio de mensagem de texto, o pneumologista David Luniere, que atua em Manaus.

"Além disso, nós enfrentamos a precarização do nosso trabalho. Há contratações sendo feitas por salários baixíssimos. Existe um projeto de exploração de mão de obra em curso", aponta Darlisom Sousa Ferreira, presidente da Associação Brasileira de Enfermagem - Seção Amazonas.



"Nós vivemos num cenário de exposição e com alto risco às nossas próprias vidas. Não queremos aplausos. Queremos reconhecimento, trabalho digno e melhores condições", completa o especialista, que também é professor da Universidade do Estado do Amazonas.

A segunda razão para a recusa em conversar com a imprensa envolve um medo de se expor e correr o risco de perder o emprego ou até ser perseguido.

"O pessoal que atua na linha de frente não está autorizado a falar. Eles sofrem ameaças de demissão caso isso aconteça", revelou Claudia* (nome fictício), por meio de mensagem nas redes sociais.

Os relatos revelam dor, cansaço e desesperança (foto: Reuters)

Sentimentos ambíguos

Ao longo dos últimos meses, o enfermeiro Júlio Cézar Fagundes trabalhou em diversas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) de Manaus.

Ele admite que a pandemia mexeu com o próprio distanciamento profissional exigido na relação com os pacientes.



"Eu não posso me envolver sentimentalmente no processo de morte de outra pessoa. Só que, com esse grande número de casos, isso é praticamente impossível. Comecei a ter medo, dor, desesperança e cansaço", conta Fagundes, que também é professor no Centro de Ensino Literatus.

"O problema não é nem o cansaço físico. O pior é o cansaço mental, de ficar pensando no rosto do paciente, nas últimas palavras que ele me disse antes de ser intubado", continua.

Fagundes diz que, momentos antes da intubação muitas vezes inevitável, a maioria dos indivíduos com covid-19 mostra medo e não quer passar pelo procedimento. Outros simplesmente pedem para avisar aos seus familiares o quanto os amam.

Se por um lado a sensação é de completo desespero, por outro, os profissionais da saúde também relatam um sentimento de união, garra e força, mesmo diante de todas as adversidades.

"Estamos colocando a vida dos pacientes em primeiro lugar", afirma Fagundes.



"Sinto que há uma compreensão geral entre médicos, fisioterapeutas, enfermeiros e toda a equipe que não é hora de desanimar ou desistir. Tem muita gente precisando do nosso esforço agora", aponta a médica Uildeia Galvão, que trabalha no Pronto-Socorro 28 de Agosto, na capital do Amazonas.

Como chegou até aqui?

Manaus foi uma das cidades do mundo mais acometidas pela pandemia de covid-19 no primeiro semestre de 2020.

Fotos com os hospitais e os cemitérios da cidade lotados rodaram o mundo.

Porém, com o passar do tempo, as curvas de novos casos e mortes pela doença começaram a cair — embora nunca tenham zerado completamente.

"Junto a isso, lá em agosto tivemos a massiva divulgação de um estudo científico que anunciava que Manaus havia alcançado a imunidade de rebanho", relembra o epidemiologista Jesem Orellana, da FioCruz Amazônia.



Com isso, a população voltou às ruas e os cuidados com uso de máscara, lavagem de mãos e distanciamento físico foram aos poucos sendo deixados para trás.

"Se nós tivéssemos reduzido a curva de contágio drasticamente nos meses de setembro e outubro, provavelmente não estaríamos vivendo uma situação tão problemática agora", completa Orellana.

Para fechar 2020, ainda tivemos eleições municipais e as festas de final de ano. Esses eventos causaram grandes aglomerações, criando o cenário perfeito para transmissão do coronavírus.

"Foi uma sucessão de acontecimentos, com um aumento gradativo de casos e internações. Nós estamos sofrendo agora pelo que aconteceu há 15 ou 20 dias", analisa Marcellus Campêlo, secretário de Estado da Saúde do Amazonas

Na tarde de hoje (14/01), o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), anunciou medidas mais restritivas, como toque de recolher e fechamento de todos os estabelecimentos comerciais (menos as farmácias) entre 19h e 6h.

Um ingrediente extra

Diversos especialistas observam que essa nova explosão de casos na cidade de Manaus parece ter algumas características diferentes do ocorrido no primeiro semestre de 2020.

"A gente recebe agora famílias inteiras com comprometimento pulmonar que necessitam de internação de uma só vez. Há também um alto número de pacientes jovens acometidos", diz Galvão.



Fonseca também nota esse fenômeno. "Parece que o vírus começou a se comportar de forma completamente diferente. Não tenho dados científicos para corroborar isso, mas dá a sensação que ele está mais transmissível".

Na última quarta-feira, um grupo de pesquisadores de dez instituições nacionais e internacionais confirmou a circulação de uma nova linhagem de coronavírus em Manaus.

Essa cepa foi detectada em 13 amostras de pacientes com covid-19 coletadas durante o mês de dezembro.

O que chamou a atenção dos especialistas foram mutações nos genes da espícula, a estrutura que fica na superfície do vírus e permite que ele invada nossas células.

No entanto, ainda não é possível cravar que a observação de uma maior virulência feita pelos profissionais da linha de frente esteja relacionada a essa versão atualizada do coronavírus encontrada nos experimentos.

Mas o fato de as duas informações aparecerem no mesmo momento gera curiosidade e precisará ser investigada mais a fundo nos próximos dias.



"Parece que o vírus começou a se comportar de forma completamente diferente. Não tenho dados científicos para corroborar isso, mas dá a sensação que ele está mais transmissível" (foto: Reuters)

O que fazer agora?

Com uma demanda por oxigênio e outros suprimentos que parece não ter fim, Manaus precisa urgente da ajuda de outras cidades, estados e, claro, do Governo Federal.

Nas últimas horas, 235 pacientes começaram a ser transferidos para hospitais de Goiás, Piauí, Maranhão, Brasília, Paraíba e Rio Grande do Norte.

"Ao longo de 2020, nós conseguimos ampliar a capacidade da rede de saúde com a criação de novos leitos e unidades de UTI. Mas o aumento dos números pressiona demais o sistema", analisa Campêlo.

Enquanto ações emergenciais são tomadas, os especialistas também dizem que a população pode e deve contribuir.

"Em primeiro lugar, é importante que as pessoas fiquem em casa e só procurem o pronto-socorro caso estejam com algum sintoma mais grave", orienta Fonseca.

"Também vale reforçar as orientações para lidar com esse inimigo invisível. Todos precisamos nos conscientizar de que é hora de fazer isolamento social e tomar todas as medidas de prevenção, como uso de máscaras e limpeza das mãos", complementa Ferreira.

De acordo com os últimos números do boletim do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), o Estado do Amazonas contabiliza até o momento 219.544 casos e 5.879 mortes por covid-19.


Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!