O presidente Jair Bolsonaro, é o único líder político da História a desencorajar a vacinação, afirma o historiador francês Laurent-Henri Vignaud, autor do livro Antivax - Resistência às vacinas do século 18 aos dias de hoje e professor da Universidade de Borgogne.
"É possível que Bolsonaro seja um exemplo único. Não saberia citar outro", disse à BBC News Brasil o historiador, que retraçou em seu livro a história dos movimentos antivacinas desde o desenvolvimento do primeiro imunizante, contra a varíola, realizado pelo médico inglês Edward Jenner em 1796.
Após uma queda nas pesquisas de opinião, Bolsonaro mudou o tom de seu discurso em relação às vacinas contra covid-19, mas passou meses, durante a pandemia, fazendo abertamente comentãrios que desestimulavam a imunização criando dúvidas em relação a sua eficácia para combater a COVID-19, que já matou mais de 226 mil pessoas no país.
Além de destacar que a vacina seria perigosa, o presidente brasileiro questionou sua eficácia em diversas ocasiões e chegou a criticar a pressa para comprar o imunizante contra o novo coronavírus. Ele descartou a possibilidade de tomá-lo.
Apesar dos progressos científicos desde as descobertas do inglês Jenner e do francês Louis Pasteur — que criou no final do século 19 a primeira vacina humana com vírus atenuado, a anti-rábica — movimentos contrários à imunização perduram e ganharam força na atual pandemia.
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Vignaud afirma que grupos de teorias conspiratórias, que não se interessavam por discussões sobre vacinas, acabaram aproveitando a pandemia para roubar o espaço de movimentos antivacinas tradicionais para difundir teses delirantes.
Na época em que o Instituto Pasteur foi inaugurado, em 1888, em Paris, os antivacinas alegavam que o local era uma "fábrica de vírus", onde se produziam doenças.
Esse mesmo tipo de alegação ressurgiu na pandemia de covid-19, com teorias conspiratórias que especulam que a doença foi inventada para fabricar vacinas que teriam como finalidade controlar ou até mesmo matar grande parte da população.
Para o historiador, imunizantes com novas tecnologias também tornam os discursos antivacinas mais populares, já que há maior interesse sobre o assunto.
Vignaud afirma também que os governos devem refletir sobre a necessidade de divulgação de esclarecimentos sobre as vacinas e que as autoridades mundiais de saúde "foram completamente ultrapassadas pelo fenômeno de redes sociais, onde não se controla mais nada."
O especialista em movimentos antivacinação afirma que historicamente já ocorreram episódios em que Estados e laboratórios adaptaram os dados sobre vacinas para embelezá-los. "Isso é catastrófico. Cada vez que um governo ou laboratório dissimula, há uma enorme perda de confiança", ressalta.
Vignaud afirma ainda que crises políticas e a desconfiança em relação às instituições e discursos de autoridades refletem o grau de aceitação dos imunizantes. "É possível analisar a crise política de um país observando a taxa de confiança nas vacinas."
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Segundo ele, "as vacinas são vítimas de seu sucesso", já que quanto mais as doenças regridem, mais se procura levantar os poucos casos em que há efeitos colaterais.
Há quem chegue até mesmo a inutilizar as tão disputadas doses contra a COVID-19. Nos Estados Unidos, um farmacêutico de um hospital em Wisconsin destruiu propositalmente mais de 500 doses do imunizante da Moderna, deixando os frascos fora da geladeira por horas.
Segundo autoridades federais, o homem, adepto de teorias da conspiração, achava que as vacinas causariam problemas, tornando as pessoas inférteis e também implantaria microchips em seus corpos.
A seguir, os principais trechos da entrevista de Laurent-Henri Vignaud:
BBC News Brasil - Durante meses o presidente Jair Bolsonaro adotou um discurso antivacina, desestimulando a imunização contra a covid-19. Já houve na História um chefe de Estado abertamente contra a vacinação em plena pandemia?
Laurent-Henry Vignaud - É possível que o presidente Bolsonaro seja um exemplo único. Eu não saberia citar outro líder espontaneamente. É uma situação excepcional, infelizmente para os brasileiros.
Mesmo quem tinha opiniões contra vacinas, ao chegar ao poder passava a defender a imunização. Em termos históricos, o que vimos são chefes de Estado e de governo que se engajam a favor das vacinas e que defendem os progressos da medicina e da imunização.
De Napoleão Bonaparte, que quis vacinar suas tropas, ao prefeito de Nova York, nos anos 40, que tomou vacina diante de fotógrafos durante uma epidemia de varíola na cidade para incentivar os habitantes a fazer o mesmo, em geral os governantes seguiram os discursos pró-vacina.
Isso ocorreu mesmo em contextos coloniais ou pós-coloniais, onde os líderes nacionalistas viam as vacinas como uma medicina de brancos, importada, como no caso da Índia. Mahatma Gandhi, escreveu, nos anos 20 e 30, textos virulentos contra as vacinas. Quando o território conquistou a Independência, em 1947, o país implementou rapidamente campanhas de vacinação. Nos anos 50 e 60, há um entusiasmo em relação aos avanços da medicina. Isso fez com que praticamente nenhum líder dissesse não às vacinas.
Mesmo durante o conflito Leste-Oeste foi assim. Na época da Guerra Fria, quando existia o risco de apertar o botão nuclear, os países do Leste aceitavam a entrada de médicos de organizações humanitárias ocidentais e da Organização Mundial da Saúde para realizar campanhas de vacinação contra a poliomielite e a tuberculose. Esses países travavam uma disputa contra os Estados Unidos, mas deixavam entrar em seus territórios médicos americanos para vacinar a população.
BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro chegou a dizer em tom jocoso que as pessoas poderiam ter problemas como virar jacaré, ao comentar possíveis efeitos colaterais da vacina da Pfizer/BioNTec. É o mesmo tipo de argumento utilizado pelos primeiros movimentos antivacinas há mais de 200 anos?
Vignaud - Ele disse isso? É incrível. Realmente esse é um discurso contra a vacina muito antigo, do final do século 18. Afirmava-se que o homem se transformaria em animal por causa do imunizante. Caricaturas da época da vacinação contra a varíola mostravam vacas que saíam de braços humanos e também vacas que cuspiam pessoas vacinadas.
BBC News Brasil - Esse discurso do presidente brasileiro martelado durante meses pode reforçar os movimentos antivacina e influenciar a campanha de vacinação no Brasil?
Vignaud - A atitude de chefes de Estado é muito importante. Há pessoas indecisas e quando o líder diz que é isso ou aquilo, eles tendem a seguir. Não sei se terá uma influência sobre a campanha de vacinação, mas é certo que isso não a favorece. Há uma real urgência e os brasileiros estão traumatizados pelas imagens de sepulturas a perder de vista e de calamidades como em Manaus, além da nova variante do vírus. Acho que isso deve suscitar nos brasileiros uma grande vontade de tomar a vacina.
Os líderes considerados populistas não saíram ilesos durante esse ano de pandemia. Penso que o ex-presidente americano, Donald Trump, perdeu as eleições em parte por causa disso. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, soube se adaptar, mas será complicado para ele, sobretudo porque há uma forte evolução da pandemia no país.
Para esse tipo de líder, a gestão da urgência é algo complicado. Como geralmente funciona na base de declarações não comprovadas, às vezes a realidade se impõe ao discurso simplista.
Agora Bolsonaro mudou o discurso. Eles são obrigados a fazer isso porque estão numa lógica de seguir a vontade do povo. Se deixarem o povo morrer, como aconteceu com Trump, custa caro em termos políticos.
BBC News Brasil - Diferentemente de Bolsonaro, o ex-presidente americano Donald Trump fez com que a vacinação contra a covid-19 fosse uma prioridade. Já em março o governo americano anunciou US$ 10 bilhões na compra de imunizantes...
Vignaud - É verdade. Mas Trump foi contra o uso de máscaras e contra o confinamento. Ele defendeu remédios milagrosos, como a hidroxicloroquina. O que é fascinante nesses líderes é que eles ziguezagueiam. Bolsonaro talvez ziguezagueie menos e permaneça mais na sua linha dura. Trump apostou tudo na vacinação
BBC News Brasil - Houve uma grande politização da vacinação contra a COVID-19 no Brasil, que acabou sendo usada como estratégia para as próximas eleições presidenciais...
Vignaud - Não é raro politizar. Países podem declarar que preferem tal vacina de certo país. A concorrência entre vacinas de diferentes países é algo frequente. O que é raro é que isso resulte em um verdadeiro discurso contra a vacina por parte do presidente.
BBC News Brasil - Como o discurso de movimentos antivacina evoluiu? Há semelhanças entre os argumentos utilizados hoje e o que era dito no final dos séculos 18 e 19, quando surgiram as vacinas contra a varíola e a raiva?
Vignaud - Não são exatamente os mesmos argumentos, mas as ideias principais são retomadas. Entre as teses que fundamentam a desconfiança em relação às vacinas, há os princípios religiosos: considera-se que a doença é um dom divino e que não se deve ir contra isso, já que é Deus quem decide submeter a pessoa a um teste ou aplicar uma punição. Outro argumento é a forma laica. Ele consiste em substituir a vontade de Deus pelas leis da natureza. A doença, nesse caso, é considerada como algo necessário para reforçar o organismo. A medicina é então vista como algo que não é natural. É por essa razão que muitos antivacinas afirmam se cuidar com remédios homeopáticos ou plantas, que para eles seriam tão eficazes quanto os imunizantes.
Há também teorias pseudocientíficas que afirmam que as vacinas não funcionam ou são tóxicas, que elas envenenam porque têm adjuvantes ou ainda que os micro-organismos não são responsáveis pelas doenças, além de questionamentos em relação a tecnologias, como a do RNA mensageiro (dos laboratórios Pfizer e Moderna). Pode-se chegar até a negação da dimensão contagiosa da doença. Um quarto argumento que encontramos ao longo da História e continua muito presente hoje é o político. As vacinas são praticamente o único medicamento que o Estado pode obrigar as pessoas a tomar porque há necessidade de proteger coletivamente.
BBC News Brasil - O senhor conta que houve uma rebelião motivada por essa obrigatoriedade no Brasil...
Vignaud - Houve a célebre revolta da vacina, em 1904, no Rio. Os protestos foram motivados pela campanha de vacinação contra a varíola. As pessoas que se rebelam não têm discursos sobre os perigos da vacina, elas se opõem simplesmente porque a lei as obriga a tomar o imunizante. É uma dimensão da relação entre a autoridade do Estado e o direito do cidadão, a defesa do corpo como algo privado.
BBC News Brasil - Vimos nessa pandemia discursos fantásticos sobre as vacinas contra a covid-19, entre eles o de que a imunização serviria para implantar um chip com tecnologia 5G para monitorar a humanidade. As teorias conspiratórias ganharam mais destaque do que os argumentos históricos desses movimentos...
Vignaud - Essa dimensão complotista no movimento antivacina, historicamente, é bem minoritária. São ultrarradicais que fazem alegações de que a doença foi inventada em laboratório e que esses mesmos laboratórios fabricam uma vacina que só servem para ganhar dinheiro. Ou, ainda mais grotesco, que a vacina teria a finalidade de matar ou controlar a população.
O que ocorreu na atual pandemia de COVID-19 é que os movimentos conspiratórios, que passaram a ter visibilidade graças às redes sociais, acabaram engolindo os grupos antivacinas. Os complotistas roubaram o tema das vacinas contra a COVID-19 porque eles viram uma grande oportunidade para difundir suas teses. Em um primeiro momento eles divulgaram teorias de que o vírus foi fabricado em laboratório e, depois, recuperaram a temática antivacina.
Eu acompanho na internet contas de militantes antivacinas e vi aparecer, na pandemia, pessoas que eu nunca tinha ouvido falar e que jamais haviam se expressado sobre o assunto. Elas vinham de grupos de teorias da conspiração, do tipo QAnon.
BBC News Brasil - Essas teorias conspiratórias contribuíram para dar notoriedade aos discursos contra vacinas?
Vignaud - Sim. Acredito que os antivacinas históricos, pensam que a sua temática foi roubada. Acho que os moderados desse movimento não apreciam que seus discursos tenham sido deturpados com teorias conspiratórias, com hipóteses totalmente ridículas. O que deveria ser discutido, do ponto de vista dos antivacinas tradicionais, é o perigo dos imunizantes, o fato de que os laboratórios ganham muito dinheiro, entre outros assuntos que eles costumam abordar.
BBC News Brasil - Apesar de todos os progressos científicos realizados desde a primeira vacina, que provaram a eficácia dos imunizantes, por que os grupos contrários à imunização ganham força na atual pandemia?
Vignaud - É certo que o surgimento de novas vacinas, com novas tecnologias, como a RNA mensageiro (Pfizer e Moderna), permite tornar os discursos antivacina populares, já que todo mundo começa se interessar pelos imunizantes, quando normalmente não é o caso.
Como o mundo está obcecado pela doença e pelas vacinas, inevitavelmente os opositores à vacinação ganham audiência.
Observamos, na escala histórica, que períodos de guerras e de pandemias não representam momentos propícios para esses movimentos porque as vacinas suscitam esperanças. Os generais do Exército não querem, obviamente, que os soldados morram de febre tifoide nos campos de batalha. Durante a Primeira Guerra mundial, os discursos antivacinas eram dificilmente abordados porque eram vistos como antipatrióticos, já que havia o risco de perder a guerra por causa de doenças.
Da mesma forma, quando há uma epidemia com muitos mortos, uma crise como vemos hoje com a pandemia de COVID-19, há uma demanda por vacinas em todo o mundo. Todos querem se vacinar e o mais rápido possível.
BBC News Brasil - Apesar da gravidade da situação em vários países, vemos na França, por exemplo, que 20% dos idosos em casas de repouso, grupo de alto risco, não querem se vacinar. Como o senhor explica isso?
Vignaux - Aceitar uma vacina é equilibrar a balança benefício-risco. Como é um medicamento, há sempre o risco de provocar efeitos colaterais, inclusive graves. Se não há doença, somente há o risco.
Antes da pandemia de COVID-19, países ocidentais, sobretudo ricos, haviam perdido o hábito de considerar o perigo da doença. Então eles veem apenas os riscos da vacinação. Resumo dessa forma: as vacinas são vítimas de seu sucesso. Quanto mais as doenças regridem, mais se procura criar confusão, ou seja, levantar os poucos casos onde a aplicação da vacina provoca efeitos colaterais.
Se compararmos com países africanos e asiáticos, onde há epidemias regularmente, a taxa de confiança nas vacinas é mais elevada.
BBC News Brasil - A pandemia de covid-19 assola vários países ricos. Isso não serviu para reequilibrar essa balança benefício-risco?
Vignaud - Há outros fatores, como o papel do Estado. Há pessoas que não querem que o Estado lhes diga como proceder. Segundo pesquisas, o perfil psicológico e sociológico das pessoas que se opõem ao uso de máscaras é exatamente o mesmo dos que são contrários às vacinas. Há pessoas que a partir do momento em que o Estado diz que é preciso fazer tal coisa, elas não querem. Outros desconfiam de empresas capitalistas. São pessoas que querem se curar com plantas.
Essas pessoas existem em todas as épocas e estão aí hoje.
A particularidade dessa pandemia é que as vacinas foram desenvolvidas com extrema rapidez, com novas tecnologias no caso dos imunizantes da Pfizer e da Moderna. Tudo isso provoca questionamentos, que podem ser legítimos. Não temos ainda recuo suficiente em relação às vacinas com tecnologia RNA. Há indagações sobre eventuais efeitos colaterais a longo prazo.
BBC News Brasil - Após o início da campanha de vacinação contra a covid-19, em vários países, como o Brasil e a França, há redução no número de pessoas que afirmam não querer tomar o imunizante. É uma questão de comunicação, de destacar os benefícios da vacina?
Vignaud - Há alguns anos na França, quando alguém fazia uma busca no Google para obter informações sobre aborto (autorizado no país), a primeira página de resultados era exclusivamente de sites ligados a grupos extremistas e ultra-religiosos, que desencorajavam a prática do aborto. O Ministério da Saúde francês percebeu que era preciso trabalhar com os motores de busca e com o governo para que as mulheres tivessem acesso a outras informações. Com o movimento antivacinas aconteceu um pouco a mesma coisa.
Os Estados sempre reconheceram a utilidade das vacinas e sempre apoiaram quem desenvolve imunizantes, mas nem sempre tiveram o cuidado de informar, de ser pedagógico a respeito. Por outro lado, os antivacinas sempre estiveram presentes para fazer propaganda, publicar livros com listas de todos os acidentes identificados e comentar o conteúdo de imunizantes que, segundo eles, são tóxicos.
Havia um desequilíbrio entre a comunicação contra e a pró-vacina. Os Estados modernos devem refletir sobre a necessidade de comunicar sobre as vacinas: o que são, para que servem, em quais casos devem ser utilizadas...
BBC News Brasil - Esse desequilíbrio na comunicação tem perdurado?
Vignaud - Há uma recuperação do atraso, iniciada há alguns anos, feita pela imprensa, em termos de vulgarização das informações, principalmente no último ano, por conta da COVID-19. O problema é que as autoridades mundiais de saúde foram completamente ultrapassadas pelo fenômeno das redes sociais, onde não se controla mais nada. Como é um problema mundial, há uma pressão mais forte das autoridades, nos últimos tempos, sobre as plataformas digitais.
O Facebook suprimiu conteúdo antivacina para tentar limitar a difusão de fake news na área da saúde. Na França, segundo estatísticas recentes, mas penso que isso pode se aplicar ao mundo todo, a cada dez notícias falsas, seis são sobre saúde. Entre essas seis, a metade é sobre vacinas.
BBC News Brasil - As políticas públicas têm sido suficientes para lutar contra a desinformação sobre as vacinas?
Vignaud - É necessário que haja informações disponíveis validadas pelas autoridades de saúde. Mas qual é o efeito disso sobre a opinião pública? Penso que isso não mudará a opinião dos antivacinas e eles podem se servir das informações oficiais para dizer que é propaganda do Estado. Mas isso não impede de fazer esse tipo de ação.
Há pessoas que hesitam ou que realmente procuram informações e é preciso que eles obtenham respostas. É o que motiva as campanhas oficiais de comunicação. Na França, estranhamente, nada foi feito até o momento, mas na Itália há uma campanha do governo na TV explicando por que as pessoas devem se vacinar.
BBC News Brasil - Houve inicialmente anúncios confusos sobre a eficácia da vacina Coronavac e da AstraZeneca/Oxford, que nesse caso também apresentou erros de dosagem nos testes clínicos. Qual pode ser o impacto nessas falhas de comunicação?
Vignaud - Desde a origem das vacinas, muitas vezes os Estados e laboratórios adaptaram as estatísticas. Faz parte da história humana não ser um cidadão ingênuo que engole tudo o que ouve. É preciso ficar atento à seriedade e à credibilidade das informações. Em função de certas situações, alguns governos podem querer embelezar os números. Isso é catastrófico. Cada vez que um governo ou um laboratório dissimula algo, há uma perda enorme de confiança. É desastroso no caso das pessoas que buscam informações e não podem confiar nos dados oficiais.
Os antivacinas de hoje adoram confusões com estatísticas. Na Europa há discussões em relação ao caso da Suécia, que não realizou confinamento. Os dados sobre a taxa de mortalidade do país na pandemia são analisados de todas as formas. Para um cidadão comum essas questões são extremamente técnicas. Há um momento em que é preciso acreditar, confiar.
Mas uma parte da opinião pública, na Europa e em outras partes do mundo, não está mais disposta a confiar no discurso das autoridades. Eu digo com frequência que é possível analisar a crise política, país por país, observando a taxa de confiança nas vacinas, que expressa o índice de confiança nos governos e, de maneira mais geral, nas elites, nos cientistas e na imprensa.
Há uma desvalorização do discurso das autoridades. Na França, pesquisas no início dos 90 indicavam que havia 20%, 30% que não confiavam nas vacinas. Em dezembro passado, mais de 50% afirmavam não querer tomar a vacina contra a COVID-19. Mas é preciso levar em conta que o imunizante ainda não estava disponível. Esse número caiu depois.
BBC News Brasil - A crise de confiança em relação às instituições e aos discursos de autoridades reforça o movimento contra a vacinação?
Vignaud - A crise política deve ser analisada em um contexto mais global, que diz respeito à preocupação das pessoas em relação ao futuro e a um certo esgotamento nos países democráticos, onde há dificuldades para mobilizar os eleitores. Isso resulta no aumento das taxas de abstenção nas eleições.
Pesquisas feitas na pandemia para situar politicamente as pessoas que não queriam tomar a vacina contra a COVID-19 revelaram que boa parte havia votado em partidos extremistas, de direita ou de esquerda, e que os abstencionistas representaram o maior índice dos que são contra o imunizante.
São pessoas que não se interessam mais pelo sistema democrático e não veem mais a necessidade de votar (o voto não é obrigatório na França). É uma crise geral, que é particularmente forte na França, mas isso ocorre em outros países, também emergentes, como o Brasil, com o fenômeno do populismo.
Há ainda a relação, ao longo do tempo, entre o cidadão e os progressos científicos. Nós vivemos atualmente numa situação de angústia mundial, também ligada ao aquecimento global, e isso provoca críticas no que diz respeito à ciência, às autoridades e aos poderes econômicos.
BBC News Brasil - Como surgiram e se estruturam os movimentos antivacinas?
Vignaud - O médico inglês Edward Jenner realizou seu experimento, que resultou na vacina contra a varíola, em 1796. Alguns médicos afirmaram que ele não iria funcionar. Houve também discursos do tipo naturalista, que diziam que a vacina vem da vaca. Isso porque a primeira vacina, que chamamos de vaccinia (a varíola bovina, em latim), é uma forma atenuada da varíola bovina que imuniza contra a forma humana da varíola. Surgiram então alegações de que o sangue humano estava sendo poluído com o sangue animal.
Houve também discursos providencialistas que afirmavam que não era bom curar crianças da varíola, porque isso resultaria em adultos com problemas de saúde. Essa era uma tese frequente dos antivacinas em meados do século 19, sobre a degeneração da raça, sobre o enfraquecimento das pessoas por causa do imunizante. Naquela época existia apenas uma vacina, a anti-variólica.
A partir de meados do século 19 vemos surgir estruturas que combatem as primeiras leis sobre vacinas obrigatórias. O primeiro país a adotar uma lei desse tipo foi a Inglaterra, em 1853. Ligas começaram a se formar para combater o princípio da obrigatoriedade da vacina.
Hoje não existem mais ligas internacionais antivacinas, há apenas ligas nacionais, em países como a França, Estados Unidos, Canadá e Japão.
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