Se uma pessoa foi infectada pelo coronavírus há dois meses e outra foi vacinada exatamente no mesmo período, qual das duas está mais protegida?
A questão pode até parecer um problema matemático, mas se aproxima do raciocínio usado por especialistas e autoridades médicas para definir a necessidade de vacinar quem já teve covid-19 nos últimos meses.
Com problemas de distribuição em várias regiões do planeta, decidir quem realmente precisa de duas, uma ou nenhuma dose da vacina é vital para proteger as pessoas mais rapidamente, levando a menos mortes e hospitalizações.
Um estudo recente publicado no periódico científico The Lancet propõe que estar infectado com o coronavírus oferece tanta proteção quanto uma única dose da vacina.
Isso significa que muitos pacientes precisariam apenas de uma das duas doses exigidas por vários fabricantes é importante salientar que essa observação ainda precisa ser confirmada por outros trabalhos e chancelada pelas organizações nacionais e internacionais de saúde.
Mas isso abre a possibilidade para que os países distribuam seus estoques de imunizantes com mais eficiência e, assim, protejam um número maior de indivíduos.
A Espanha, por exemplo, já adiou em seis meses a vacinação de pessoas com menos 55 anos que tiveram a doença.
Na mesma toada, o Ministério de Saúde Pública do Equador anunciou em dezembro de 2020 que os recuperados da covid-19 não receberiam a vacina inicialmente.
Por ora, as autoridades brasileiras não fizeram qualquer tipo de pronunciamento sobre esse assunto.
À medida que a pandemia evolui, é natural que a recomendação dos especialistas e as diretrizes de saúde pública se atualizem de acordo com a publicação de novas evidências científicas.
Mas, pelo que se sabe até o momento, a vacinação está indicada para quem pegou o coronavírus no passado?
'A proteção mais abrangente possível'
A resposta mais direta à pergunta anterior é sim.
Mas qual a razão disso?
"O ideal é garantir a proteção mais completa possível", disse à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, o bioquímico José Manuel Bautista, professor da Universidade Complutense de Madri, na Espanha.
"As vacinas têm se mostrado muito eficazes, algumas com taxas de proteção superiores a 90%, que é um indicador muito confiável. E nós sabemos que as manifestações da doença são heterogêneas", acrescenta o acadêmico.
Em outras palavras, isso significa que, em duas pessoas saudáveis da mesma idade, a infecção pelo coronavírus pode causar diferentes estragos e deixar níveis de proteção distintos.
Isso sem falar nas diferenças entre indivíduos saudáveis e aqueles mais vulneráveis, como idosos ou portadores de enfermidades crônicas.
É por isso que tirar conclusões universais agora é prematuro, e os especialistas recomendam acompanhar e entender melhor o assunto por mais tempo antes de mudar as recomendações.
Portanto, Bautista acredita que mesmo aqueles já infectados no passado precisam ser vacinados, para que "a resposta imune seja estabilizada e protetora".
Nesse sentido, o especialista também considera que pensar em alternativas, como dar uma única dose em quem já teve a doença, ajudaria a contornar os problemas de distribuição de vacinas que têm dificultado as campanhas em algumas regiões do mundo, como a União Europeia e a América Latina.
E se uma única dose for administrada?
Bom, agora que já sabemos que a vacinação é indicada mesmo para quem teve covid-19, vale se debruçar sobre outra questão: cientistas e governos debatem sobre a possibilidade de adiar a imunização ou oferecer apenas uma dose às pessoas que se encaixam nesse perfil.
As autoridades se baseiam nos achados de estudos recentes que indicam um nível de proteção parecido entre quem recebeu duas doses da vacina da Pfizer e quem teve covid-19 e recebeu uma dose só.
A maioria das vacinas contra a covid-19 aprovadas em caráter emergencial ou definitivo requer duas doses para conferir um bom nível de proteção.
Isso é verdade para os produtos utilizados no Brasil, como a CoronaVac (Sinovac/Instituto Butantan) e a CoviShield (Universidade de Oxford/AstraZeneca/FioCruz).
A primeira dose faz o organismo criar uma resposta imune e produzir anticorpos. A segunda aplicação reforça essa proteção e a deixa mais "durável".
"A estratégia de uma única dose da vacina pode cumprir essa função de reforçar a proteção se o indivíduo já tiver desenvolvido uma imunidade natural por ter se infectado", explica o virologista Julian Tang, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, à BBC News Mundo.
"Isso pode até ser válido, mas dependerá de quanta imunidade você desenvolveu ao ser exposto ao vírus em sua comunidade", acrescenta Tang.
Então, quem está mais protegido? Vacinados ou infectados?
Como costuma acontecer no campo das ciências médicas, não existem respostas absolutas para essa questão.
Amós García Rojas, presidente da Associação Espanhola de Vacinação, garante à BBC News Mundo que tanto vacinados quanto infectados estariam protegidos.
O problema é que, nos dois casos, ainda não sabemos quanto tempo essa proteção dura: pode ser que tenhamos uma imunidade longa contra a covid-19 (como acontece com outras doenças infecciosas, como sarampo e catapora, por exemplo), ou essa proteção permaneça por poucos meses ou anos (num cenário parecido ao que ocorre com o vírus causador da gripe).
Com pouco mais de um ano após o início da pandemia, ainda não houve tempo suficiente para observar e ter certeza sobre a validade da resposta imune.
O infectologista Andrew Badley, da Mayo Clinic, nos Estados Unidos, está confiante de que a proteção da vacina "durará anos".
Tang, por outro lado, pontua que "normalmente, uma infecção produz uma resposta imunológica mais extensa e duradoura do que uma única dose de uma vacina. Por isso, é necessário complementar a inoculação com uma segunda dose para todos".
É claro que a infecção pelo coronavírus apresenta uma série de riscos que a vacinação evita, como a hospitalização ou desenvolvimento de sequelas longas e gravíssimas.
Outro ponto a ser considerado é o quão eficaz será a proteção se surgirem novas variantes do patógeno que reduzam a eficácia dos imunizantes, como parece acontecer em algum grau com as cepas detectadas inicialmente no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil.
Bautista acredita que, por mais que uma variante apresente mutações preocupantes, pelo menos elas não devem afetar demais a proteção contra as formas graves da doença nos próximos meses, embora mais estudos sejam necessários para esclarecer isso.
Já García Rojas acredita que o único cenário que deve ser considerado agora é vacinar o máximo de pessoas possível.
"E todos devemos estar cientes de que no futuro pode ser necessário aplicar doses de reforço à medida que os fabricantes modifiquem suas vacinas contra as novas variantes".
De acordo com as informações do site Our World In Data, até o momento pouco mais de 300 milhões de pessoas foram vacinadas no mundo. Os países que lideram o ranking são Israel e Emirados Árabes Unidos, que já protegeram 99% e 63% de seus habitantes, respectivamente.
Por ora, o Brasil administrou 10,5 milhões de doses e imunizou 4,9% de toda a sua população.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!