"Se o governo não consegue, ninguém pode conseguir e vai tudo para o mesmo buraco? Não faz sentido ficar de braços cruzados esperando morrer." Essa foi uma das justificativas apresentadas pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages), em entrevista à BBC News Brasil, para tentar traçar caminho solo e importar vacinas para imunizar magistrados associados e suas famílias contra a covid-19.
O plano, pelo menos por enquanto, está dando certo. A Anamages conseguiu decisão liminar da Justiça Federal do Distrito Federal permitindo a compra imediata de vacinas.
Em entrevista à BBC News Brasil, o advogado Cristóvam Dionísio, porta-voz da associação, disse que decidiu agir porque, "pelo andar da carruagem" do programa de imunização brasileiro, parte dos associados, sobretudo juízes na "faixa dos 20 e poucos" podem acabar sendo vacinados somente no ano que vem.
E, segundo ele, a urgência se justifica pelo fato de alguns desses magistrados atuarem no tribunal do júri, em julgamentos que reúnem mais de 20 pessoas. Questionado sobre a relevância de acelerar a imunização dos demais juízes, inclusive os que estão trabalhando de casa - atualmente a maioria -, Dionísio de Barro argumentou que muitos ainda lidam com processos em papel e, por isso, correm risco de contágio pelo coronavírus.
"Eles trabalham com processos físicos, não são só processos eletrônicos. Se fosse só processos eletrônicos, a questão seria mais simples. Mas eles atuam constantemente com processos físicos em que eles têm que manusear o processo. E aí correm também o mesmo risco de contágio", disse.
Vale destacar que, se tratando de um vírus respiratório passado sobretudo pelo contato entre pessoas, a chance de contrair-se o coronavírus pelo contato com papéis é considerada insignificante pelos estudos até agora.
A decisão que permite a importação de vacinas pela Anamages foi tomada pelo juiz Rolando Valcir, substituto da Vara de Justiça Federal do Distrito Federal. No despacho, ele não obriga a associação a entregar a totalidade das doses ao Ministério da Saúde até que a população prioritária seja vacinada nem doar metade delas para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Essas são exigências da lei federal aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada na quarta (11). Dionísio afirmou considerar essa lei inconstitucional e criticou a exigência de doar parte das doses ao SUS.
"Eu acredito que a lei é ilegal por uma questão simples. A partir do momento em que uma pessoa do povo é imunizado pela iniciativa privada, ela não vai querer tomar a vacina do governo. Então, ela já está cedendo a sua dose que seria dada gratuitamente", argumentou.
A compra de vacinas por empresas e entidades privadas é alvo de críticas da Organização Mundial da Saúde (OMS) por potencialmente reduzir o acesso das populações mais vulneráveis às poucas doses disponíveis neste ano e, na prática, reduzir a eficácia dos planos oficiais de vacinação para o conjunto das populações. Além disso, se governos e empresas estiverem negociando com as farmacêuticas, o preço do produto pode aumentar e países pobres terão mais dificuldade para comprar o produto.
"A compra de vacinas por entidades privadas em qualquer lugar do mundo é um acinte, é antiético. Mas, especialmente num país com tantas desigualdades como o Brasil isso é imoral. A ordem tem que ser determinada pelo Ministério da Saúde e deve levar em conta tirar do risco quem tem mais probabilidade de morrer", disse à BBC News Brasil o professor de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Gonzalo Vecina Neto, fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Já Dionísio argumenta que, se a iniciativa privada do Brasil não comprar, empresas e associações de outros países irão. "Nós estamos lutando para vacinar o juiz com doses que o governo não comprou e que, se a iniciativa privada do Brasil não comprar, a iniciativa privada dos outros países vai comprar. Onde você tem oferta e demanda, quem pagar mais vai levar."
Leia os principais trechos da entrevista com o porta-voz da Anamages:
BBC News Brasil - O que motivou a Anamages a entrar com essa ação, pedindo para comprar vacinas e imunizar juízes associados?
Dionísio - O Brasil, o governo federal, já disse que não está conseguindo comprar vacinas no mercado internacional para atender à demanda. Então, nada mais natural que convocar a iniciativa privada para ajudar.
BBC News Brasil - Não configura privilégio ou furar fila a compra de vacinas para juízes, sendo que não existem vacinas suficientes hoje para a categoria de prioridades do Programa Nacional de Imunização?
Dionísio - Eu gostaria registrar que, em nenhum momento, se visou furar fila ou ter privilégio. Isso teria se estivéssemos entrando com pedido de tutela judicial para ter preferência sobre as vacinas que a União comprou. Não estamos concorrendo com o governo.
Pelo contrário, o governo tinha que estar agradecendo a iniciativa privada e andando de mãos juntas, porque quanto mais se vacinar pela iniciativa privada, mais vacina vai sobrar para o resto da população.
Quando a própria União confessa que não está tendo condições de comprar vacinas no mercado internacional, me parece um contrassenso ficar de braços cruzados esperando morrer. Isso não parece lógico.
BBC News Brasil - O Congresso aprovou uma lei, já em vigor, que autoriza a importação de vacina por entidades privadas desde que metade das doses seja doada para o SUS e que as vacinas fiquem com o Ministério da Saúde até que o grupo prioritário seja vacinado. A decisão que autorizou a importação pela Anamages não prevê doações ao SUS nem entrega de doses ao MS. O que a Anamages vai fazer?
Dionísio - Quando foi proferida a decisão, quando entramos com o pedido, ainda não existia essa lei. A lei se deu posteriormente. A Anamages vai cumprir a decisão judicial. Isso é sagrado, o que a Justiça decidir.
No entanto, eu acredito que a lei é ilegal por uma questão simples. Em primeiro lugar, a partir do momento em que uma pessoa do povo é imunizado pela iniciativa privada, ela não vai querer tomar a vacina do governo. Então, ela está cedendo a sua dose que seria dada gratuitamente.
Na verdade, você está dando duas doses. Já está doando. Com relação a ter que dar as doses importadas pela iniciativa privada para cumprir esse projeto do Ministério da Saúde (de imunizar o grupo prioritário), temos observado que esse projeto todo dia sofre alteração. Não é uma coisa rígida.
E há um problema gravíssimo de risco. Os magistrado que atuam no tribunal do júri, há uma enorme aglomeração. Quando você vai convocar para formar o tribunal do júri, vai de cara umas 25 testemunhas, vão os policiais levando o réu, o Ministério Público atuando na acusação, os advogados de defesa, os oficiais de Justiça para poder fazer os atendimentos internos e externos.
Em regra, esses magistrados são jovens e, pelo andar da carruagem da imunização, um juiz que tiver vinte e poucos anos não será vacinado neste ano. Entendemos que seria um absurdo ter que confiscar essa vacina (que vier a ser comprada pela Anamages). Mas se tiver que confiscar, por decisão judicial, a Anamages vai cumprir.
BBC News Brasil - O senhor mencionou os juízes do tribunal do júri, mas e os demais juízes? A maioria dos tribunais suspendeu sessões presenciais e os magistrados estão trabalhando de casa. Esses juízes também deveriam ter prioridade?
Dionísio - Eles trabalham com processos físicos, não são só processos eletrônicos. Se fosse só processos eletrônicos, a questão seria mais simples. Mas eles atuam constantemente com processos físicos em que eles têm que manusear o processo físico. E aí correm também o mesmo risco de contágio.
BBC News Brasil - Juiz deveria estar no grupo de prioridade na vacinação, na sua opinião?
Dionísio - Olha, claro que se você tem um médico que trabalha ali na frente, ele está muito mais vulnerável, porque ele está lidando com o paciente mesmo. Agora, o que é importante entender é que se estivéssemos entrando com uma medida para dizer: 'olha, as doses que o governo comprou nós vamos competir. Queremos os juízes na categoria de risco que o governo selecionou'. Aí eu entendo que poderia ser ilegal, inconstitucional.
Mas nós estamos lutando para vacinar o juiz com doses que o governo não comprou e que, se a iniciativa privada do Brasil não comprar, a iniciativa privada dos outros países vai comprar. Onde você tem oferta e demanda, quem pagar mais vai levar.
E a prova é grande. Quando o governo federal colocou uma licitação para comprar seringas e agulhas, comprou muito pouco. Os fabricantes preferiram vender lá para fora porque iam receber em dólar.
BBC News Brasil- Um dos argumentos para que a iniciativa privada não possa comprar vacinas é exatamente prevenir a falta de imunizantes ou o aumento do preço do produto a ponto de o governo não conseguir doses suficientes para a população ou ter que pagar mais caro por elas. O que o senhor diz sobre isso?
Dionísio - Eu entendo que isso é uma falácia. Se essa vacina fosse só fabricada aqui, entendo que faria sentido, porque se só a União fosse compradora, o preço cobrado pelas farmacêuticas seria menor. Mas como a fabricação é internacional, não faz sentido a gente ficar parado enquanto a iniciativa privada de outros países está comprando.
BBC News Brasil - Mas a maioria dos países não está permitindo a compra de vacinas contra covid-19 por empresas e entidades privadas. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, do Reino Unido, da União Europeia…
Dionísio - Que eu saiba a Venezuela está tendo iniciativa privada atuando, a Argentina e o Uruguai estão tendo iniciativa privada atuando. Os outros países eu não pesquisei. No Reino Unido, faz sentido não permitir, porque eles estão fabricando (a vacina). Se ele autorizar a iniciativa privada atuar junto, vai competir com o governo. O problema é que no Brasil a produção brasileira é toda para o governo. Não estamos competindo com a produção feita aqui. Estamos competindo com a produção internacional.
BBC News Brasil - Na avaliação da Anamages, o programa de vacinação do governo, da maneira como está sendo conduzido, não vai atender a população brasileira e os juízes?
Dionísio - Que vai atender vai, o problema é quando vai atender. É o tempo. Estavam morrendo mais de 2 mil brasileiros por dia. Não sei quantos mais vai se esperar morrer para que se permita que a iniciativa privada, que tem capacidade de acelerar maior, compre.
Quando a própria União confessa que não está tendo condições de comprar vacinas no mercado internacional, me parece um contrassenso ficar de braços cruzados esperando morrer.
Por que impedir que a iniciativa privada compre, quiçá até por um preço mais alto? Então tem que morrer todo mundo? O governo não consegue, também ninguém consegue, vai tudo para o mesmo buraco? Isso não faz sentindo em quem pensa, Jesus. Porque você não está pegando o lote que o governo está comprando.
Vai ter que morrer todo mundo? Já que vai um, vai todo mundo?
BBC News Brasil - Existe viabilidade prática para a compra dessas vacinas pela Anamages, já que várias farmacêuticas não estão negociando com a iniciativa privada e há escassez de doses no mercado?
Dionísio - Tomamos conhecimento da decisão ontem (11/30. Começamos a procurar importadores registrados na Anvisa. Conseguimos dois importadores até agora: um que afirmou que vai conseguir AstraZeneca da Alemanha e outro que afirmou conseguir do Japão, acho que seria da Pfizer. Estamos ainda na coleta de propostas e informações sobre custo benefício e sobre quantos associados vão querer.
BBC News Brasil - E quem vai pagar pelas doses?
Dionísio - A associação. Temos cerca de 2 mil associados entre juízes e desembargadores da ativa e aposentados.
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