O empresário Fernando Marques diz que está indignado. Ele é dono e presidente da União Química, farmacêutica brasileira que fechou um acordo com o governo russo para fabricar e distribuir a vacina Sputnik V no Brasil e na América Latina.
Contrariado com as exigências feitas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que após mais de dois meses depois da União Química fazer o pedido de uso emergencial da vacina russa diz que a empresa ainda não forneceu todos os dados necessários e que, sem isso, não pode sequer começar a analisar o caso, o empresário decidiu cancelar a primeira solicitação e dar entrada em um novo pedido de uso emergencial na sexta-feira (26/4).
Sua aposta é que a agência agora terá que analisar seu pedido conforme determina uma nova lei aprovada no início do mês pelo Congresso, que prevê um parecer da Anvisa em até sete dias para um pedido de uso emergencial de um imunizante que tenha sido aprovado por agências reguladoras renomadas, entre elas a da Rússia.
"Pelo menos, agora tem a lei e a gente espera que ela seja cumprida", diz Fernando Marques em entrevista à BBC News Brasil.
A União Química fez em janeiro um pedido à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a agência liberar o uso emergencial dessa vacina — estudos feitos na Rússia apontaram que ela tem uma eficácia de 91,6%.
A agência diz que, depois de mais de dois meses, a empresa ainda não forneceu todas as informações básicas que ela precisa para começar a analisar o caso.
A Sputnik já foi aprovada por 56 países, e mais de 80 milhões de doses já foram compradas pelo governo federal e por Estados e cidades brasileiros, mas elas só poderão ser aplicadas quando e se a Anvisa autorizar.
O impasse continuou depois de uma reunião na terça-feira (23/3), a mais recente de uma série de encontros entre a Anvisa e a União Química.
"Você já ouviu falar em pêlo no ovo? Pêlo no ovo", diz Fernando Marques em entrevista à BBC News Brasil.
A empresa começou a produção da vacina no país, em projeto piloto, e diz que poderá produzir 8 milhões de doses por mês após o aval da agência.
O empresário trabalha há quase 50 anos no mercado farmacêutico, à frente do negócio da família, e tentou se lançar na política nas últimas eleições, quando foi o candidato mais rico no país inteiro.
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'Brincadeira de vacina?'
Marques nega que sua empresa tenha alguma dificuldade para atender às exigências da Anvisa.
"Estamos informando e nunca paramos de informar. Nossa empresa está há 85 anos no mercado. Não estamos brincando, porra. Brincadeira de vacina? Isso não existe! Isso não é brincadeira, é coisa muito séria."
Ele afirma que a Sputnik ainda não foi aprovada porque a Anvisa se atém a pontos que ele considera menos importantes e dá um exemplo hipotético:
"São coisas absurdas. 'Segundo o FDA , na fase 2 (da pesquisa), tem que usar o ratinho branco e os russos só usam um outro tipo de rato'. O que importa a cor do gato? O que importa é que gato mata o rato. É uma loucura isso…"
Não é o que alega a Anvisa.
Até a semana passada, a agência ainda cobrava da empresa informações como dados de segurança e eficácia, relatórios de análises, texto da bula da vacina, avaliações e planos de gerenciamento de riscos, entre outros pontos.
A agência disse depois da última reunião que ainda faltam informações sobre a "caracterização, produção e controle de qualidade da vacina" e que ainda não recebeu os dados brutos da pesquisa, "como é usual na avaliação de vacinas e medicamentos".
Marques acredita que a agência deveria ter outra postura frente à gravidade do surto de covid-19, que já matou mais de 300 mil pessoas no Brasil e levou o país a seu "maior colapso sanitário e hospitalar da história".
"O que é mais importante? Combater a pandemia? Ou se prender em algumas coisas burocráticas? Quando tiver coisas que podem ser mais importantes, deixa que passe. A Anvisa tem que ter rigor, mas desconhecer o que está acontecendo no mundo e onde está entrando a Sputnik?"
'Não acho que Bolsonaro negue a Ciência'
Fernando Marques, de 66 anos, assumiu o comando da União ainda muito novo, em 1979 — a empresa tinha sido comprada pelo seu pai uma década antes.
Ele tentou se lançar na política há três anos, quando se candidatou a senador no Distrito Federal pelo partido Solidariedade - cujo fundador e presidente é Paulinho da Força, denunciado por corrupção e lavagem de dinheiro em caso que corre no Supremo Tribunal Federal.
Marques foi o candidato mais rico das últimas eleições, com um patrimônio declarado de R$ 688 milhões. Passou longe de se eleger.
Na época, ele apoiou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o "melhor candidato para governar o país", como ele disse em entrevista.
Bolsonaro já era conhecido por se colocar contra fatos científicos comprovados — naquela época, ele questionava as evidências das mudanças climáticas.
Desde então, o presidente é criticado por negar a gravidade da pandemia, indicar o uso de medicamentos sem eficácia comprovada e questionar a segurança das vacinas.
A ciência é justamente a área em que Marques trabalha, mas o empresário diz que a postura do presidente não o incomodou. "Não acho que ele negue a ciência", opina Marques.
"Se você pesquisar, na África, onde a população toma ivermectina, tem país que não tem caso de covid. Não foi feito (estudo clínico), mas o que é que tem. Resolve? Passa? Ninguém vai morrer porque tomou ivermectina."
De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças da África, todos os países da África já registraram casos de covid-19.
E, embora não haja estudos conclusivos sobre se a ivermectina deve ou não ser usada para covid-19, os médicos alertam que o uso indevido de medicamentos causa problemas graves de saúde e pode matar.
"A invermectina é uma droga que também penetra no cérebro quando ele está inflamado, e ela deprime mais ainda o cérebro e piora a qualidade do despertar de um paciente intubado. Essa tem sido uma intercorrência frequente nos pacientes que usaram esse remédio antes chegar à UTI", afirmou recentemente à BBC News Brasil o médico intensivista Ederlon Rezende.
"Então, tem dessas coisas", continua Marques. "Eu não sei falar se isso é bom ou se isso é ruim, cada um age da sua forma. Eu não tenho nada a ver com o Bolsonaro."
O empresário conta que conheceu o presidente em um evento e que esteve em cerimônias de posse no Palácio do Planalto porque foi convidado pelos ministros que estavam assumindo.
Marques também foi um dos empresários que fizeram parte da comitiva de Bolsonaro à China no ano passado. Ele explica que foi até lá para tentar abrir novos mercados para o mesmo produto que estimula a lactação de vacas que ele tentava vender para os russos.
"Não tenho relacionamento nenhum com o presidente da República", reforça.
"É engraçado que primeiro a imprensa disse que a Sputnik era a vacina do Bolsonaro. Aí agora com os governadores do Norte e do Nordeste correndo atrás da Sputnik virou a vacina do Lula. É vacina do povo, gente, pelo amor de Deus. Não é vacina de um nem de outro. Tem que acabar com esse negócio."
'Monopólio da Fiocruz e do Butantan'
A vacina russa foi a primeira a ser aprovada por uma agência reguladora, a da própria Rússia, em agosto do ano passado, mesmo antes dos estudos sobre sua eficácia serem concluídos.
Isso, junto com a falta de transparência do governo de Vladimir Putin com os dados da pesquisa, fizeram muita gente desconfiar se a Sputnik V funcionava mesmo.
Mas testes publicados em uma das revistas científicas mais respeitadas mostraram que ela é segura e protege contra a covid-19.
No Brasil, a liberação está travada na Anvisa. A agência devolveu o pedido de uso emergencial da União Química logo de cara, ainda em janeiro. A agência diz que existem pendências até hoje.
Fernando Marques afirma que interesses políticos e econômicos ligados às vacinas no Brasil têm dificultado a aprovação da Sputnik V.
"Lá na Argentina (a Sputnik) entrou. México, agora, entrou. A Angela Merkel pediu a transferência de tecnologia. A Itália também pediu. E aqui não deixam entrar."
O empresário questiona por que só existem duas fábricas de vacinas para pessoas em funcionamento no Brasil, o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Como mostrou uma reportagem da BBC News Brasil, o país tem 30 fábricas de vacinas para gado e apenas duas para humanos.
"Isso é um monopólio que existe há 70 anos. E o que eu estou fazendo? Quebrando o monopólio. Mas existe uma defesa de mercado. Está difícil entrar, estou tomando pancada."
A consequência desse monopólio, diz Marques, é a "falta de vacina… gente morrendo".
Um bom negócio
A União Química não estava envolvida quando se começou a falar da Sputnik V no Brasil. Foi o governo do Paraná que anunciou primeiro que estava negociando uma parceria com o Instituto Galameya e o Fundo Soberano Russo, responsáveis pela vacina.
Mas a farmacêutica paulista foi quem fechou um acordo para fabricar a vacina no Brasil e distribuí-la aqui e no resto da América Latina.
Marques diz que a oportunidade surgiu porque ele já negociava com o governo russo a venda de uma substância que estimula a produção de leite em vacas quando a pandemia começou. "Foi uma coincidência."
O acordo prevê a transferência da tecnologia para a empresa brasileira, que ainda não tem experiência na área de vacinas.
Não está previsto o pagamento de royalties, explica Marques: "A Rússia não tem empresas farmacêuticas com filiais pelo mundo para ganhar dinheiro vendendo remédio. Ceder a tecnologia da Sputnik para o mundo é um ato humanitário".
Com a perspectiva de fornecer milhões de doses, é a Sputnik V é uma grande oportunidade de negócio para a União Química, que faturou R$ 2,7 bilhões no ano passado — isso é cerca de metade da receita da maior empresa nacional do setor, a EMS.
"'Ah, você quer ganhar dinheiro'. 'Ah, você vai abrir capital', 'Ah, quanto vai valer a sua empresa?'. Isso não me interessa, não me falta nada, eu sou um cara bem sucedido", afirma Marques.
"Eu podia estar curtindo em um iate, passeando, mas estou trabalhando. Eu estava em Moscou, 17 graus abaixo de zero, tratando de buscar tecnologia para produzir vacina e parece que estou fazendo um ato criminoso. Eu quero. Ajudar. A salvar. Vidas."
Áudio para o 'presidente'
Também não foi para Bolsonaro que ele mandou uma mensagem de áudio que circulou há alguns dias pelo WhastApp.
Marques começa a mensagem se apresentando para o "presidente" e depois denuncia que sua empresa está sendo prejudicada porque "eles querem manter a coisa com a Fiocruz e com o Instituto Butantã".
"Butantã na mão do Doria e Fiocruz na mão do PT, PCdoB. E, porra, não tem vacina, o povo tá morrendo", disse ele na mensagem.
O empresário falou ainda que sentiu-se "humilhado" pela forma como o presidente da Anvisa, Antônio Barra, o tratou. Barra negou ter destratado o dono da União Química.
A farmacêutica depois divulgou uma nota para esclarecer que tudo não passou de um "desabafo emocionado" do seu dono, que fica desesperado por ver tantas mortes por covid-19 e ainda não poder ajudar com a imunização.
Também esclareceu que o "presidente" ao qual Marques se referia era Luciano Hang, presidente da rede de varejo Havan — aliado de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro.
Bolsonaro disse recentemente a apoiadores que "outra empresa, grande, conhecida, tem 20 milhões de doses para vender e não consegue. Daí um cara falou comigo. Falei: não posso interferir. Não posso, não. Não vou interferir na Anvisa".
O dono da União Química diz que o presidente estava falando de outra empresa. "Estão misturando as bolas. Querem sujar a água para a Sputnik. Isso aí não tem nada a ver. Eu perdi 10 milhões de doses no primeiro semestre, eu tenho que resolver isso, senão eu vou perder os 10 milhões do segundo semestre."
Um documento do Departamento de Saúde dos Estados Unidos revelou que o governo americano, sob a Presidência de Donald Trump, pressionou o governo brasileiro para rejeitar a compra da Sputnik V. O governo federal anunciou a compra da Sputnik no final de janeiro, depois da posse de Joe Biden. Estados e cidades fecharam seus próprios acordos desde então.
"Esta parte diplomática eu não consigo avaliar", diz Marques. "Mas por aí você qual é o nível dos interesses comerciais por trás disso."
Novo pedido emergencial
Marques também nega que sua empresa faça lobby no Congresso para tentar influenciar o Congresso para facilitar a aprovação da Sputnik.
"Isso é mentira", diz o empresário. "O senhor Rogério Rosso (ex-deputado federal pelo PSD e atual diretor de negócios internacionais da União Química) é um puta executivo, um cara preparadíssimo. Eu não fui no Senado, não visitei deputado. Quem está fazendo lobby é que quer matar as pessoas, quem briga contra a vacina de covid, são os genocidas."
Foi aprovada no início de março uma lei que facilitou a liberação da Sputnik no Brasil. "Sem um voto contra", ressalta o dono da União Química.
Até então, o pedido de uso emergencial de um imunizante só poderia ser feito se ele tivesse sido aprovado pelas agências dos Estados Unidos, Japão, União Europeia e China. A nova legislação incluiu a agência russa, além das agências de vários outros países, como Coreia e Canadá, nessa lista.
A nova lei, que chegou na primeira semana de janeiro ao Congresso como uma medida provisória elaborada pelo governo Bolsonaro, também estabelece que a Anvisa tem sete dias para analisar um pedido de uso emergencial.
Fernando Marques espera que, com o novo pedido emergencial, consiga ter um parecer da Anvisa sobre a Sputnik V.
"Agora eles têm sete dias para analisar. E recusar, porque eu só usei ratinho amarelo e não camundongo branco como determina o FDA. Devolve. Fala isso."
A Anvisa informou que está analisando os documentos entregues para confirmar que tudo que é necessário foi enviado pela empresa. Caso faltem dados, a agência disse que as solicitará ao laboratório, como ocorreu com o primeiro pedido.
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