Jornal Estado de Minas

Covid na Índia: três efeitos para o Brasil do descontrole da pandemia no país asiático

Índices nunca vistos antes de contaminação por covid-19 e cenas de desespero diante do colapso da rede de saúde colocam a Índia como novo foco da atenção global na luta contra o novo coronavírus, provocando uma onda de reações internacionais.



 

Nas últimas 24 horas até esta quarta-feira (28/4), a Índia registrou um recorde mundial de novos casos de covid: 360,9 mil, depois de uma semana inteira registrando mais de 300 mil novos casos por dia.

 

Também nesta quarta, o país se tornou o quarto do mundo a superar a marca dos 200 mil mortos pela doença (junto com EUA, Brasil e México), mas há indícios de que esses números sejam, na verdade, muito maiores, em um país de 1,3 bilhão de habitantes que não conta com um sistema estruturado de saúde pública.

 

Apenas em Nova Déli, uma investigação de uma emissora local identificou mais de mil mortes por covid-19 que não foram registradas, no intervalo de uma semana.

 

Repetindo o caos visto recentemente no Brasil, hospitais de diversas partes da Índia estão rejeitando pacientes por não terem mais leitos nem suprimento de oxigênio. Lá, até fogueiras estão sendo improvisadas para cremar os mortos.

As consequências do descontrole da pandemia no segundo país mais populoso do mundo vão muito além das fronteiras indianas, com reverberações em todo o planeta - e podem ser particularmente sentidas no Brasil, ainda fragilizado por uma segunda onda de covid-19 que não terminou e pelos índices insuficientes de vacinação.



 

A seguir, a BBC News Brasil aponta três desdobramentos diretos e curto prazo da crise indiana.

Aquece a disputa global por vacinas

A situação calamitosa na Índia é apontada como um motivo-chave da pressão sobre o presidente dos EUA, Joe Biden, para finalmente abdicar de um lote de vacinas que vinha sendo cobiçado por vários países, inclusive pelo Brasil.


Cremações em massa na Índia sendo realizadas para vítimas de covid-19; colapso no país deve drenar recursos e suprimentos, inclusive alguns ainda necessários no Brasil (foto: Reuters)

 

Na segunda-feira (26/04), representantes do governo americano anunciaram que vão doar suas 60 milhões de doses do imunizante Oxford-AstraZeneca que estarão em produção pelos próximos meses (e que ainda não têm autorização para serem aplicadas nos EUA).

 

A partilha das doses ainda não foi definida, segundo a secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki. Mas fontes próximas ao governo indiano ouvidas pela agência Reuters afirmaram que o país está na expectativa de receber a maior parte desse lote.



 

Tanto o Brasil quanto países como Canadá e México haviam feito pedidos aos EUA, nos últimos meses, para receber essas vacinas, mas não se sabe até o momento se ficarão com alguma parcela delas.

 

Ao mesmo tempo, o agravamento da situação na Índia pode levar o país asiático a repetir o que fez em março, quando barrou temporariamente parte de sua exportação de vacinas para disponibilizar mais doses para sua população. Nesta quarta, a corrida pela imunização deve aumentar: as autoridades anunciaram que todos os indianos com mais de 18 anos podem se cadastrar para receber a vacina.

 

Por enquanto, menos de 9% dos indianos foram imunizados com ao menos uma dose.

 

A Fiocruz confirmou à BBC News Brasil que ainda aguarda um lote de 8 milhões de doses vacinas da AstraZeneca sendo produzidas pela empresa indiana Instituto Serum, mas afirmou que as negociações em torno da entrega estão sendo conduzidas pelas diplomacias dos dois países.



 

A BBC News Brasil tentou contato com o Instituto Serum e com a assessoria de imprensa do Itamaraty, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado se essas respostas chegarem.


Lote de vacinas AstraZeneca dos EUA cobiçado pelo Brasil deverá ser doado ao mundo - mas Índia provavelmente terá prioridade (foto: Reuters)

Mais demanda por equipamentos e medicamentos ainda escassos

Diversos países anunciaram, nos últimos dias, a entrega de suprimentos médicos para ajudar a conter o colapso indiano.

 

Nesta terça (27/04), chegou à Índia um carregamento de itens como cilindros de oxigênio e respiradores enviados pelo Reino Unido.

 

No final de semana, o governo americano anunciou que também liberaria ajuda aos indianos - desde matéria-prima para a produção de vacinas (que até recentemente estavam sob um veto de exportação imposto pelos EUA, para garantir sua produção interna de vacinas) até medicamentos, equipamentos de proteção pessoal e testes de covid-19.



 

"Os EUA estão trabalhando proximamente ao governo indiano para rapidamente enviar apoio e suprimentos adicionais durante este alarmante surto de covid-19", escreveu no Twitter a vice-presidente Kamala Harris.

The U.S. is working closely with the Indian government to rapidly deploy additional support and supplies during an alarming COVID-19 outbreak. As we provide assistance, we pray for the people of India—including its courageous healthcare workers.

— Vice President Kamala Harris (@VP) April 25, 2021


 

Mas a ajuda até agora foi classificada como "uma gota no oceano" diante das necessidades da Índia, nas palavras de uma autoridade local de saúde ouvida pela BBC, indicando que continuará subindo a demanda internacional por produtos cuja cadeia de suprimento foi profundamente afetada pela pandemia.

 

Basta lembrar as dificuldades que o Brasil enfrentou recentemente para obter no mercado externo insumos para a produção do chamado "kit intubação", forçando algumas equipes hospitalares a fechar leitos ou a intubar pacientes sem poder sedá-los com medicamentos adequados - algo considerado desumano pelos próprios médicos.



 

O uso desses insumos continua alto no Brasil, que registrou na última semana epidemiológica mais de 400 mil casos de covid-19.

 

"Enquanto a gente mantiver este nível de ocupação hospitalar e de UTI no Brasil, vai ter dificuldade (em ter insumos). Quando o estoque acabou, tivemos de importar e não foi suficiente - e até regularizar isso vai demorar um pouco", explica à BBC News Brasil a médica Fátima Marinho, que foi da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde entre 2005 e 2007 e hoje integra a consultoria Vital Strategies.

 

Marinho sugere, portanto, que o Brasil aproveite o pequeno alívio dado pela baixa atual de casos para repor seus estoques "e se preparar para a terceira onda, porque ela virá".

 

A médica explica que a tragédia em curso na Índia vai, de fato, drenar recursos mundiais. "A Índia tem um parque industrial farmacêutico grande, mas uma população grande demais, em um país que não tem um Sistema Único de Saúde."

Novas variantes vão prolongar pandemia - e afetar cada vez mais jovens

Assim como aconteceu no Brasil com a variante P.1, apontada como mais infecciosa e potencialmente responsável (junto com uma gama de outros fatores) pelo fato de muito mais pessoas jovens terem adoecido mais rapidamente com quadros graves de covid-19, a Índia está lidando tanto com a variante britânica quanto com uma variante local, chamada B.1617.



 

E, quanto mais rapidamente o vírus infecta mais gente - como tem acontecido na Índia, com seus recordes em novos casos diários -, maiores são as chances de que ele consiga produzir aleatoriamente novas mutações, cada vez mais perigosas.

 

Essas potencialmente podem se espalhar com facilidade para outras partes do mundo e tornar menos eficientes os programas globais de vacinação.


Enterro de vítima do coronavírus na Índia; país de alta densidade populacional e alta taxa de transmissão se torna um ambiente perfeito para o vírus gerar mutações cada vez mais perigosas (foto: Reuters)

 

"A gente espera (que da Índia venham) muitas variantes. As que forem mais eficientes em transmissão acabam se tornando dominantes. Em populações gigantes como a da Índia e grandes como a do Brasil isso é um risco enorme, porque se você não controla (a transmissão) pode acabar surgindo um vírus novo", colocando as vacinas atuais em risco, explica Fátima Marinho, da Vital Strategies.

 

Por isso, diz ela, vai ser cada vez mais importante não apenas testar pacientes com testes sorológicos ou PCR, mas sim analisar o genoma dos vírus das pessoas contaminadas para identificar quais são as variantes em circulação nas comunidades.



 

"Não basta mais o teste positivo ou negativo, mas sim trabalhar com amostras de vírus das infecções novas, para rastreamento de genoma. Se não fizermos isso vai ser um erro enorme. A OMS (Organização Mundial da Saúde) vai ter que fazer um esforço mundial para ajudar os países que não conseguem fazer por conta própria, porque é algo que afeta a todos. Não tem saída isolada da pandemia", explica Marinho.

 

A necessidade de conter o surgimento de novas variantes explica também o pleito de epidemiologistas em todo o mundo por uma distribuição mais igualitária das vacinas, para proteger os países mais pobres, os que ainda têm baixos índices de imunização e os que, como a América do Sul, estão se preparando para o inverno, quando o coronavírus tem ainda mais facilidade em se propagar.

 

"É do interesse nacional de países ricos impedir o avanço do vírus no mundo inteiro. Nenhum de nós estará seguro até que todos nós estejamos seguros. E o único jeito de controlar as variantes é controlando as infecções, e para isso precisamos vacinar em áreas onde a infecção tende a aumentar - e no momento é no Hemisfério Sul", disse à BBC News Brasil no início de abril o médico Ali Mokdad, professor do Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington.

 

"Estamos preocupados com muitos países, porque o vírus está em alta circulação, haverá novas variantes, a maioria delas provavelmente escapará (da proteção do sistema imunológico), o que significa que infecções prévias não darão imunidade e as vacinas ficarão menos eficientes."


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