Jornal Estado de Minas

CPI da Covid: possível ingerência política de Bolsonaro é alvo em depoimento do chefe da Anvisa



A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid recebe nesta terça-feira (11/05) o presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, para depor como testemunha. A possível ingerência política de Bolsonaro sobre a Anvisa deverá ser o foco do depoimento.



A agência, responsável por autorizar o uso de vacinas no país, esteve algumas vezes no centro de polêmicas ao analisar os imunizantes contra covid-19, sofrendo acusações de possível ingerência política por parte do presidente Jair Bolsonaro.

No início da pandemia, em 15 de março do ano passado, Barra Torres chegou a participar de ato a favor do governo no Palácio do Planalto, ao lado de Bolsonaro. Ambos sem máscara interagiram com apoiadores do presidente, atitude que contribuiu para arranhar a imagem de independência da Anvisa.

Segundo o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), a autonomia da agência será o principal tema abordado pela CPI.



"Seguramente, o foco será esclarecer a informação sobre interferência política ou não na Anvisa. E as dificuldades que eles estão enfrentando no tocante à (autorização da) vacina Sputnik e que enfrentaram no passado na relação com o Butantan (para autorização da CoronaVac). São os três pontos mais relevantes", ressaltou ele à BBC News Brasil.

A Sputnik V é uma vacina desenvolvida pelo instituto russo Gamaleya que teve recentemente sua autorização para importação rejeitada pela Anvisa. O órgão vem sendo pressionado a rever essa decisão por governos estaduais que têm contrato para compra de 66 milhões de doses.

Já a Coronavac é a vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan (órgão estadual paulista) em parceria com o laboratório chinês Sinovac. Seu uso foi autorizado após muita controvérsia devido a sucessivas declarações de Bolsonaro contra a vacina.



Isso porque o imunizante era visto como um trunfo político para o governador de São Paulo, João Doria, adversário do presidente.


Sem máscara, ao lado de Bolsonaro, presidente da Anvisa participa de ato a favor do governo em março de 2020 (foto: Reprodução/Facebook)

Em outubro de 2020, o presidente chegou a desautorizar o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, após ele anunciar que iria fechar contrato para compra de 46 milhões de doses da CoronaVac.

"A vacina chinesa de João Doria, qualquer vacina antes de ser disponibilizada à população, deve ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa. O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Minha decisão é a de não adquirir a referida vacina", disse Bolsonaro na ocasião.

Pouco depois, em novembro, a Anvisa foi alvo de críticas ao suspender a fase três dos testes da CoronaVac após a morte de um dos voluntários. O Butantan disse que isso não era necessário porque a causa do óbito não tinha qualquer relação com a vacina (tratava-se de um suicídio).



A agência, por sua vez, argumentou que o instituto paulista não disponibilizou todas as informações necessárias para que fosse descartada qualquer ligação entre a morte e o uso da CoronaVac. A retomada do estudo clínico foi liberada um dia depois.

Quando houve a paralisação, porém, Bolsonaro chegou a comemorar a decisão.

"Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", escreveu o presidente em sua página no Facebook.


João Doria é vacinado com CoronaVac: vacina do Butantan virou trunfo político do governador (foto: Governo de São Paulo)

Diante da pressão pela vacinação no país, o contrato entre Ministério da Saúde e Butantan acabou sendo firmado em 7 de janeiro — dez dias depois a Anvisa autorizou o uso da CoronaVac. A vacina do Butantan hoje responde por cerca de 80% das aplicações contra covid-19 no Brasil.



"O mais importante (no depoimento do Barra Torres) é o fato de que em vários momentos o presidente da República tomou posições contra a aprovação da vacina CoronaVac, questionando sua qualidade", afirmou à reportagem o senador Humberto Costa (PT-PE).

"Houve momentos que ele disse que não iria comprar essa 'vacina chinesa'. Então, nós queremos saber se de alguma forma essa visão dele resultou em algum tipo de pressão sobre a Anvisa. Se ele tentou de alguma maneira interferir nas ações da Anvisa", reforça.

Anvisa diz que decisões são técnicas

Diante das críticas, Barra Torres tem respondido que as decisões da Anvisa são técnicas. A recente recusa à importação da Sputnik V foi inclusive defendida por especialistas independentes nas redes sociais.



"Infelizmente, não há condições para a Anvisa autorizar a importação da vacina Sputnik V da Rússia no momento. Faltam muitos dados. É totalmente compreensível a pressa de governadores, mas a Anvisa tem obrigação de garantir a qualidade da vacina e não há como fazer isso hoje", escreveu no Twitter, após a decisão da agência, o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP.

Segundo o órgão, a autorização foi negada porque os documentos submetidos à Anvisa sobre a Sputnik indicavam "ausência ou insuficiência de dados de controle de qualidade, segurança e eficácia".

No centro da polêmica está a presença ou não de vírus capazes de se replicar na vacina russa. Os responsáveis pelo imunizante negam que ela tenha esse problema, mas foi um dos principais motivos de a agência negar a importação, porque isso poderia trazer riscos à saúde.



"Uma das informações preocupantes com relação à avaliação dos dados disponíveis até o momento é que as células onde os adenovírus são produzidos para o desenvolvimento da vacina permitem sua replicação. Isso pode acarretar infecções em seres humanos, podendo causar danos e óbitos, especialmente em pessoas com baixa imunidade e problemas respiratórios, entre outros problemas de saúde", diz comunicado do governo federal sobre a decisão da Anvisa.


Governadores de nove Estados querem importar 66 milhões de doses da Sputnik V (foto: Reuters)

A recusa à importação ocorreu em 26 de abril, quando a Anvisa analisou pedido para compra de 66 milhões de doses da Sputnik V feito por nove Estados (Bahia, Acre, Rio Grande do Norte, Maranhão, Mato Grosso, Piauí, Ceará, Sergipe, Pernambuco e Rondônia).

Na sexta-feira (07/05), a Comissão Temporária da Covid-19 do Senado (órgão paralelo à CPI) realizou uma audiência com a participação de representantes da Anvisa, dos Estados e da União Química, laboratório brasileiro que fechou parceria com o instituto russo Gamaleya.



Segundo o representante da União Química, Fernando Marques, um novo pedido para liberação da Sputnik V no Brasil vai ser apresentado à agência.

"Eu tenho muita confiança na qualidade técnica do corpo funcional da Anvisa, confio muito nas decisões deles. Agora, eu acho que tem que ser levado em consideração o momento que a gente está vivendo, a inexistência de vacina (suficiente contra covid-19). Temos que trabalhar para construir um consenso técnico mínimo", defende o senador Humberto Costa.


O que é uma CPI?

As comissões parlamentares de inquérito (CPIs) são instrumentos usados por integrantes do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores) para investigar fato determinado de grande relevância ligado à vida econômica, social ou legal do país, de um estado ou de um município. Embora tenham poderes de Justiça e uma série de prerrogativas, comitês do tipo não podem estabelecer condenações a pessoas.

Para ser instalado no Senado Federal, uma CPI precisa do aval de, ao menos, 27 senadores; um terço dos 81 parlamentares. Na Câmara dos Deputados, também é preciso aval de ao menos uma terceira parte dos componentes (171 deputados).



Há a possibilidade de criar comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs), compostas por senadores e deputados. Nesses casos, é preciso obter assinaturas de um terço dos integrantes das duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional.

O que a CPI da COVID investiga?

Instalada pelo Senado Federal em 27 de abril de 2021, após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), a CPI da COVID trabalha para apurar possíveis falhas e omissões na atuação do governo federal no combate à pandemia do novo coronavírus. O repasse de recursos a estados e municípios também foi incluído na CPI e está na mira dos parlamentares.

O presidente do colegiado é Omar Aziz (PSD-AM). O alagoano Renan Calheiros (MDB) é o relator. O prazo inicial de trabalho são 90 dias, podendo esse período ser prorrogado por mais 90 dias.





Saiba como funciona uma CPI

Após a coleta de assinaturas, o pedido de CPI é apresentado ao presidente da respectiva casa Legislativa. O grupo é oficialmente criado após a leitura em sessão plenária do requerimento que justifica a abertura de inquérito. Os integrantes da comissão são definidos levando em consideração a proporcionalidade partidária — as legendas ou blocos parlamentares com mais representantes arrebatam mais assentos. As lideranças de cada agremiação são responsáveis por indicar os componentes.

Na primeira reunião do colegiado, os componentes elegem presidente e vice. Cabe ao presidente a tarefa de escolher o relator da CPI. O ocupante do posto é responsável por conduzir as investigações e apresentar o cronograma de trabalho. Ele precisa escrever o relatório final do inquérito, contendo as conclusões obtidas ao longo dos trabalhos. 

Em determinados casos, o texto pode ter recomendações para evitar que as ilicitudes apuradas não voltem a ocorrer, como projetos de lei. O documento deve ser encaminhado a órgãos como o Ministério Público e a Advocacia-Geral da União (AGE), na esfera federal.



Conforme as investigações avançam, o relator começa a aprimorar a linha de investigação a ser seguida. No Congresso, sub-relatores podem ser designados para agilizar o processo.

As CPIs precisam terminar em prazo pré-fixado, embora possam ser prorrogadas por mais um período, se houver aval de parte dos parlamentares

O que a CPI pode fazer?

  • chamar testemunhas para oitivas, com o compromisso de dizer a verdade
  • convocar suspeitos para prestar depoimentos (há direito ao silêncio)
  • executar prisões em caso de flagrante
  • solicitar documentos e informações a órgãos ligados à administração pública
  • convocar autoridades, como ministros de Estado — ou secretários, no caso de CPIs estaduais — para depor
  • ir a qualquer ponto do país — ou do estado, no caso de CPIs criadas por assembleias legislativas — para audiências e diligências
  • quebrar sigilos fiscais, bancários e de dados se houver fundamentação
  • solicitar a colaboração de servidores de outros poderes
  • elaborar relatório final contendo conclusões obtidas pela investigação e recomendações para evitar novas ocorrências como a apurada
  • pedir buscas e apreensões (exceto a domicílios)
  • solicitar o indiciamento de envolvidos nos casos apurados

O que a CPI não pode fazer?

Embora tenham poderes de Justiça, as CPIs não podem:

  • julgar ou punir investigados
  • autorizar grampos telefônicos
  • solicitar prisões preventivas ou outras medidas cautelares
  • declarar a indisponibilidade de bens
  • autorizar buscas e apreensões em domicílios
  • impedir que advogados de depoentes compareçam às oitivas e acessem
  • documentos relativos à CPI
  • determinar a apreensão de passaportes

A história das CPIs no Brasil

A primeira Constituição Federal a prever a possibilidade de CPI foi editada em 1934, mas dava tal prerrogativa apenas à Câmara dos Deputados. Treze anos depois, o Senado também passou a poder instaurar investigações. Em 1967, as CPMIs passaram a ser previstas.

Segundo a Câmara dos Deputados, a primeira CPI instalada pelo Legislativo federal brasileiro começou a funcionar em 1935, para investigar as condições de vida dos trabalhadores do campo e das cidades. No Senado, comitê similar foi criado em 1952, quando a preocupação era a situação da indústria de comércio e cimento.

As CPIs ganharam estofo e passaram a ser recorrentes a partir de 1988, quando nova Constituição foi redigida. O texto máximo da nação passou a atribuir poderes de Justiça a grupos investigativos formados por parlamentares.



CPIs famosas no Brasil

1975: CPI do Mobral (Senado) - investigar a atuação do sistema de alfabetização adotado pelo governo militar

1992: CPMI do Esquema PC Farias - culminou no impeachment de Fernando Collor

1993: CPI dos Anões do Orçamento (Câmara) - apurou desvios do Orçamento da União

2000: CPIs do Futebol - (Senado e Câmara, separadamente) - relações entre CBF, clubes e patrocinadores

2001: CPI do Preço do Leite (Assembleia de MG e outros Legislativos estaduais, separadamente) - apurar os valores cobrados pelo produto e as diretrizes para a formulação dos valores

2005: CPMI dos Correios - investigar denúncias de corrupção na empresa estatal

2005: CPMI do Mensalão - apurar possíveis vantagens recebidas por parlamentares para votar a favor de projetos do governo

2006: CPI dos Bingos (Câmara) - apurar o uso de casas de jogo do bicho para crimes como lavagem de dinheiro

2006: CPI dos Sanguessugas (Câmara) - apurou possível desvio de verbas destinadas à Saúde

2015: CPI da Petrobras (Senado) - apurar possível corrupção na estatal de petróleo

2015: Nova CPI do Futebol (Senado) - Investigar a CBF e o comitê organizador da Copa do Mundo de 2014

2019: CPMI das Fake News - disseminação de notícias falsas na disputa eleitoral de 2018

2019: CPI de Brumadinho (Assembleia de MG) - apurar as responsabilidades pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão