Todas as vacinas usadas na campanha de vacinação contra a covid-19 em andamento no Brasil exigem duas doses para conferir um nível suficiente de anticorpos.
Detalhe importante: a primeira e a segunda aplicação precisam ser feitas com o mesmo tipo de imunizante.
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Portanto, quem começou com a CoronaVac deve finalizar com esse mesmo produto, que foi desenvolvido e fabricado por Sinovac e Instituto Butantan.
Essa mesma regra vale para a AZD1222, de AstraZeneca, Universidade de Oxford e FioCruz, e para a Cominarty, de Pfizer e BioNTech, que começou a ser usada no país nos últimos dias.
Só que tal orientação não foi obedecida em pelo menos 16 mil ocasiões: esse é o número de brasileiros que haviam recebido doses trocadas de vacinas contra o coronavírus até o final de abril.
Na maioria dos casos, a pessoa tomou a primeira dose da AZD1222 e depois recebeu a segunda da CoronaVac.
Essa informação foi divulgada numa reportagem da Folha de S.Paulo e depois confirmada pelo próprio Ministério da Saúde.
Mas o que acontece com quem foi vítima dessa confusão? A troca pode causar algum mal ou exige algum cuidado extra?
Sem diretrizes oficiais
Do ponto de vista individual, não há muitos motivos para preocupação: a troca não deve provocar nenhum efeito colateral ou prejuízos à saúde.
O maior risco é uma proteção incompleta: com uma dose de cada vacina, é possível que a produção de anticorpos não seja satisfatória para barrar a covid-19.
Mas e do ponto de vista coletivo? Como essa situação será resolvida?
Até o momento, ainda não existe nenhuma orientação oficial a respeito dessa situação.
A imunologista Cristina Bonorino, que integra o Comitê de Eventos Adversos das Vacinas da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, diz que essa questão está sendo discutida atualmente entre os especialistas.
"O que nós sugerimos ao ministério é que seja emitida uma nota técnica em que os casos de pessoas que receberam as doses trocadas sejam notificados como um erro vacinal e elas recebam uma terceira dose dentro do intervalo estabelecido", sugere a especialista, que também faz parte da Sociedade Brasileira de Imunologia.
Vamos pegar o exemplo de um indivíduo que recebeu a primeira dose da CoronaVac e, por algum erro, tomou a segunda da AZD1222.
Segundo essa proposta do comitê gaúcho, ele deveria esperar os três meses preconizados para levar uma terceira picada no braço com a AZD1222 e, assim, ter a certeza de que completou o esquema vacinal contra a covid-19.
Já o pediatra e infectologista Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Imunizações, tem uma posição diferente sobre o assunto: na visão dele, mesmo que a pessoa tenha tomado vacinas trocadas, o processo deve ser encerrado, até porque não se sabe a segurança de tomar três doses na sequência.
"O ideal é que isso não aconteça. Mas, se ocorrer, o esquema está encerrado e não se deve fazer mais nada", acredita o médico.
Após a publicação da reportagem, a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde enviou uma nota para a BBC News Brasil em que detalha algumas informações a respeito do tema:
"O Ministério da Saúde distribui as vacinas contra a covid-19 para os entes federativos, com as respectivas notas técnicas, que têm responsabilidade de executar o Plano Nacional de Imunizações. A pasta acompanha os registros de casos de intercâmbio vacinal e recomenda aos estados e municípios o monitoramento dessas pessoas e reforça, ainda, a importância da atenção no processo de vacinação para evitar que erros ocorram. Além disso, é fundamental que a notificação da primeira dose da vacina seja registrada no cartão de vacinação com os dados relativos ao fabricante do imunizante, para garantir a correta aplicação da segunda dose."
Ações práticas
Se você foi vítima dessa confusão, vale voltar ao posto de saúde e informar os responsáveis para que eles possam notificar o caso nos sistemas do Ministério da Saúde.
"Nessa hora, esperamos que o centro vacinal possa dar alguma orientação para a pessoa", pensa Bonorino, que é professora titular da Universidade Federal de Ciência da Saúde de Porto Alegre.
E, para aqueles que ainda vão tomar a segunda dose, vale ter atenção redobrada: leia e leve consigo aquele comprovante da primeira aplicação na hora de ir ao posto de saúde.
Neste papel, deve estar escrito qual vacina foi usada anteriormente.
Converse com o profissional da saúde que está realizando o atendimento e confira se o produto é do mesmo tipo utilizado na primeira ocasião.
Assim, você evita qualquer dor de cabeça futura e garante um bom nível de proteção contra o coronavírus.
Mas quais são os motivos que não permitem fazer esquemas vacinais com dois tipos de produtos?
Uma maratona concluída em tempo recorde
Antes de serem aprovadas pelas agências regulatórias de cada país, as vacinas passam por uma batelada de testes clínicos, que envolvem dezenas de milhares de voluntários.
Esses estudos ajudam a determinar a segurança e a eficácia desses produtos, para que eles possam ser usados com tranquilidade em milhões de pessoas.
A jornada da bancada dos laboratórios até os postos de saúde costuma levar muitos anos, até décadas.
Em razão da pandemia, os cientistas precisaram acelerar os processos sem perder o rigor da pesquisa — afinal, estamos em meio a uma pandemia que mata milhares de pessoas todos os dias.
Foi assim que diversos imunizantes foram estudados e chegaram ao público em tempo recorde, como é o caso daqueles já citados nesta reportagem.
Acontece que essa corrida pelas vacinas exigiu que os protocolos e os esquemas de imunização fossem bem definidos e bastante rígidos.
A partir deles, nós sabemos, por exemplo, que a Cominarty provê uma taxa de eficácia de 95% contra a covid-19 sintomática alguns dias após a segunda dose, com um intervalo de 21 dias entre as duas aplicações.
Os estudos promovidos por Pfizer e BioNTech foram desenhados e estruturados justamente para encontrar essas informações.
Mas o que acontece se aplicarmos só uma dose? E se aumentarmos o intervalo entre as aplicações para três ou quatro meses?
A ciência ainda não tem todas essas respostas e qualquer extrapolação no uso dessa e de outras vacinas entra no reino das incertezas.
O mesmo racional vale para essa "troca" nas doses: ninguém sabe ao certo os efeitos de tomar primeiro a CoronaVac e, depois, a AZD1222 (ou vice-versa).
"Ainda não temos estudos sobre o intercâmbio de vacinas contra a covid-19 finalizados e com resultados", admite Kfouri.
Em outras palavras, o conhecimento obtido até agora não permite estabelecer se essa mistura, feita de forma proposital ou sem querer, garante uma boa taxa de eficácia, capaz de proteger contra a covid-19 ou suas formas mais graves.
Cenas dos próximos capítulos
Essa possibilidade de intercalar os diferentes produtos é algo que começa a ser avaliado agora, por diversos grupos de pesquisa.
"Já temos estudos do tipo acontecendo nos Estados Unidos, que avaliam o uso conjunto das vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna", conta Bonorino.
Outra iniciativa parecida está em andamento no Reino Unido: a pesquisa ComCov testa oito esquemas vacinais diferentes, com intervalos maiores ou menores entre as doses.
Os especialistas avaliam, por exemplo, a possibilidade de aplicar a Cominarty e depois a AZD1222, com uma espera de 28 dias ou 12 semanas entre cada dose.
A investigação conta com o investimento de 7 milhões de libras esterlinas do próprio governo britânico e deve ter seus resultados a partir de março de 2022.
"Essa troca de imunizantes que usam diferentes tecnologias pode até se mostrar interessante", observa Kfouri.
Vale lembrar que a CoronaVac se vale de vírus inativados, enquanto a AZD1222 é feita a partir de um vetor viral não-replicante e a Cominarty utiliza o princípio do mRNA.
Cada uma delas age de uma maneira diferente no organismo, com o mesmo objetivo no final: permitir que o sistema imune produza anticorpos capazes de barrar uma infecção pelo coronavírus.
A aplicação de doses com vacinas que se valem de diferentes tecnologias poderia, ao menos em tese, trazer uma resposta do sistema de defesa mais diversa e completa.
Mas, de novo, isso ainda precisa ser comprovado por essa nova leva de estudos que está em andamento.
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