Houve uma época em que o termo "tratamento precoce" era corriqueiro na medicina. Podia se referir à intervenção depressa em um caso de câncer, por exemplo, ou à medicação para um transtorno mental após uma pronta identificação.
Durante a pandemia de COVID-19 no Brasil, no entanto, a expressão foi politizada. Virou outra coisa. E também se tornou um elemento central na CPI da COVID, com dois ex-ministros da Saúde relatando terem sofrido pressão do presidente Jair Bolsonaro para que o Ministério da Saúde defendesse o "tratamento precoce".
Alguns médicos e o próprio presidente adotaram o termo para definir um protocolo com medicamentos ineficazes ou sem eficácia comprovada para a COVID-19, fazendo crer que existe um tratamento farmacológico para casos leves da doença. Se usados antes mesmo da doença ou no seu início, dizem seus defensores, esses medicamentos poderiam impedir o contágio ou formas graves da COVID-19.
Mas médicos, cientistas e entidades sanitárias como a Organização Mundial da Saúde, amparados em estudos robustos, esclarecem que por ora não há opções para tratamentos profiláticos ou que, se aplicados no início dos sintomas, possam impedir o desenvolvimento de formas graves da COVID-19.
Ou seja, não há "tratamento precoce" para a COVID-19, embora o termo continue a ser utilizado.
Atendimento precoce
Por enquanto, nenhum tratamento farmacológico se mostrou eficaz em casos leves de coronavírus. "Não existe tratamento precoce, nem tratamento preventivo. O que existe é o acompanhamento ou o atendimento precoce", diz Patrícia Canto Ribeiro, pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).
"O termo 'tratamento precoce' foi estigmatizado", opina o pneumologista Mauro Gomes, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e chefe de equipe de pneumologia do Hospital Samaritano.
"Eu até entendo que no início do ano passado se tinha a perspectiva de que houvesse algum tratamento precoce que pudesse trazer benefício para a COVID-19. Como já se mostrou que não é viável, não vejo como utilizar esse termo."
Mas então, o que um paciente com suspeita de COVID-19 deve fazer?
Em primeiro lugar, dizem os especialistas, é preciso fazer o diagnóstico. Teve sintomas? Procure o posto de saúde mais próximo para receber um diagnóstico e confirmar que se trata de COVID-19. É preciso sempre usar máscara e manter distância de outras pessoas. Adotar o isolamento, mesmo enquanto não sai o diagnóstico, é importante para não contaminar outras pessoas.
Sintomas comuns da COVID-19 são: febre, tosse, dor de garganta e/ou coriza, perda de olfato ou paladar, dor de cabeça, cansaço e falta de ar.
A partir do diagnóstico precoce, o paciente poderá ter também uma avaliação e acompanhamento precoces.
Esse monitoramento desde o início dos sintomas é importante para ter um acompanhamento especializado da evolução dos sintomas, com consultas e exames.
Além disso, diz Ribeiro, a avaliação logo no diagnóstico permitirá que o profissional de saúde avalie se o paciente tem fatores de risco, se não precisa de alguma intervenção médica farmacológica por conta de alguma comorbidade, por exemplo.
Por fim, o acompanhamento médico é fundamental até mesmo para casos mais leves porque o paciente pode evoluir com gravidade, diz Ribeiro. O profissional da saúde vai avaliar a evolução dos sintomas e dar orientações adequadas.
"A partir do momento do diagnóstico, passa-se a acompanhar aquela pessoa diariamente para verificar elementos como a saturação, a frequência cardíaca", diz ela. "Assim a gente consegue intervir precocemente se houver qualquer alteração."
O profissional de saúde acompanhando o caso pode verificar, por exemplo, se há febre persistente ou mudança no padrão de febre, dor no peito, dificuldade para respirar, capacidade física afetada, sintomas como tontura ou pré-desmaio, entre outros. Também pode monitorar, em alguns casos, se houve queda no nível de oxigênio no sangue por meio do uso de um oxímetro. São sinais de que a doença está progredindo e que pode ficar mais grave, então é importante ter uma avaliação médica.
"A COVID-19 evolui distintamente em casa pessoa", diz Gomes, emendando: "80% dos infectados terão evolução benigna, sem complicações. 20% precisarão de auxílio hospitalar principalmente por comprometimento de pulmão."
Medicamentos, como aqueles do chamado "kit COVID", não devem ser usados por conta própria. "Nada disso tem efeito comprovado contra a doença. Então toda vez que as pessoas tomam esse tipo de atitude, elas podem estar retardando o tratamento adequado de que precisariam", diz Ribeiro.
Quando a pessoa acha que está tratando alguma coisa, diz a pneumologista, ela tende a relaxar. "Não é raro que a gente receba pacientes graves dizendo 'mas já tomei tudo', ou seja, vários remédios por conta própria", afirma. "O termo 'tratamento precoce' é muito prejudicial. As pessoas já se sentem tratadas, e isso é muito preocupante porque elas perdem o momento de buscar ajuda quando o quadro se altera. Elas poderiam ter sido atendidas com o tratamento devido na hora necessária por um profissional que avaliasse a necessidade de intervenção no momento adequado."
Os medicamentos que podem ser tomados em casa são dados para tratar sintomas - aqueles a que estamos acostumados quando estamos em casa com náusea, dor de cabeça, febre etc. Aliviam os sintomas, mas não interferem na evolução da doença. Boa hidratação e boa alimentação também são recomendadas.
Politização do termo 'tratamento precoce'
Na semana passada, no dia em que o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta falou na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID no Senado, o presidente Jair Bolsonaro disse que o antigo titular da pasta "quer que fique em casa quando estiver sem ar".
Sua fala refletiu uma das estratégias usadas por governistas na CPI, que é focar as orientações a respeito do momento em que é preciso procurar assistência médica.
Como Bolsonaro e seus apoiadores defendem o "tratamento precoce", a ideia é fazer parecer que sempre defenderam, também, o atendimento precoce. As pessoas contrárias ao "tratamento precoce", portanto, seriam também contrárias ao atendimento precoce - o que não é verdade.
O senador Ciro Nogueira (PP-PI) questionou Mandetta sobre a orientação do ex-ministro de evitar buscar hospitais nos primeiros sintomas e a recomendação de "chá, canja de galinha e reza contra o novo coronavírus". Mandetta classificou rebateu dizendo que aquilo se tratava de uma "guerra de narrativas" e defendeu as decisões durante sua gestão no ministério.
No início da pandemia, a recomendação era que o paciente ficasse em casa, em casos leves, para não contaminar outras pessoas, e buscasse atendimento por telemedicina. A orientação para procurar imediatamente um médico começou em julho do ano passado na gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello - mas não sem polêmica.
Na época, a mudança foi vista como um possível aceno ao "tratamento precoce" disfarçada de defesa ao atendimento precoce.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em agosto de 2020, o general Pazuello negou que a mudança tivesse a ver com a cloroquina - medicamento do "tratamento precoce" comprovadamente ineficaz para a COVID-19 que foi incensado pelo governo federal e que teve investimento público. Também ao jornal, Mandetta afirmou que o ministério passou a "a acreditar que as pessoas têm que ir [mais cedo], porque acham que existe o uso precoce da cloroquina". "Politizaram isso."
Por outro lado, com um número maior de jovens infectados e evoluindo com gravidade na segunda onda da pandemia no Brasil, especialistas passaram a defender que todos procurassem ajuda médica imediatamente.
A cidade de São Paulo, por exemplo, mudou a orientação para que pacientes buscassem unidades de saúde assim que surgirem os sintomas do vírus. Um dos motivos é que os mais jovens tendem a procurar atendimento mais tardiamente, quando a doença está bastante agravada, muitas vezes de forma silenciosa.
Houve outras polêmicas em relação ao termo "tratamento precoce". Em janeiro de 2021, o Ministério da Saúde, sob gestão de Pazuello, lançou um aplicativo chamado TrateCov. A ideia era que a plataforma fosse usada por profissionais de saúde para orientá-los sobre as melhores condutas para pacientes com COVID-19.
O aplicativo, no entanto, indicava medicamentos do "kit COVID". O aplicativo recomendava cloroquina, ivermectina e outros fármacos até quando o paciente era um bebê. Foi logo tirado do ar.
A pasta também chegou a defender textualmente o "tratamento precoce", em um texto que foi marcado como "informação duvidosa" pelo Twitter também em janeiro deste ano.
Em uma coletiva sobre o assunto, Pazuello disse que era preciso diferenciar o tratamento precoce do atendimento precoce.
"Nós defendemos, incentivamos e orientamos que a pessoa doente procure imediatamente o posto de saúde. Que procure o médico e ele faça o atendimento clínico e o diagnóstico precoce dos pacientes. Tratamento é uma coisa, atendimento é outra", respondeu o general.
Agora, o "atendimento precoce" virou "atendimento imediato". Em abril deste ano, o Ministério da Saúde publicou um vídeo usando o novo termo.
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