Mais de 400 acadêmicos, entre brasileiros radicados nos Estados Unidos e americanos estudiosos do Brasil, lançam nesta segunda-feira (24/05), uma carta aberta ao presidente Joe Biden na qual pedem que o mandatário contemple o Brasil com doação de vacinas contra a COVID-19.
O governo americano anunciou recentemente que distribuirá internacionalmente 80 milhões de doses de imunizantes até o fim do mês de junho. Os países que se beneficiarão do envio, no entanto, ainda não estão definidos.
A carta, à qual a BBC News Brasil teve acesso com exclusividade, exorta Biden a "fornecer rapidamente vacinas suficientes para retardar a disseminação e mutação contínua do coronavírus no Brasil".
Pede também que o presidente americano leve a termo a nova posição dos EUA pela quebra de patentes das vacinas contra covid-19 e incentive farmacêuticas americanas, como a Pfizer e a Moderna, a transferir sua tecnologia para parceiros produtores no Brasil.
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Com mais de 440 mil mortes na pandemia, o Brasil passa ainda pela sua segunda onda de contágio do novo coronavírus, mas já enxerga a possibilidade de uma terceira onda que poderia elevar o total de óbitos do país ao patamar de 750 mil, segundo o Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington.
A projeção se baseia na falta de política nacional de de distanciamento social e uso de máscaras e no quadro de escassez de vacinas no Brasil: atualmente, menos de 20% da população brasileira tomou ao menos uma dose de imunizante contra covid e a fabricação das duas vacinas mais usadas no país - CoronaVac e Astrazeneca-Oxford - teve que ser interrompida na semana passada por falta de insumos.
Sociedade civil em campo
Nesse contexto, a pressão da sociedade civil para que o Brasil seja beneficiado pelas doses dos EUA têm aumentado nas últimas semanas.
No fim de março, a Amcham Brasil, maior Câmara de Comércio Americana fora dos EUA, enviou carta ao Embaixador americano Todd C. Chapman e ao Congressista democrata Gregory Meeks, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados americana, em que dizia que "os volumes de vacinas ao Brasil confirmados até o momento são insuficientes para a superação no curto prazo da grave crise sanitária que o país enfrenta. Nesse sentido, a consideração pelo governo dos EUA sobre a possibilidade de ceder, em caráter de emergência, excedentes de vacinas para o Brasil, seria inestimável".
No início de abril, seis centrais sindicais brasileiras, CUT, Força Sindical, UGT, NCST Nova Central, CTB e CSB, fizeram o mesmo apelo a Biden em carta por vacinas - e têm contado com o apoio de grandes sindicatos americanos no pleito.
Agora, a elaboração da carta de acadêmicos divulgada nesta segunda, 25/5, foi capitaneada pela U.S. Network for Democracy in Brazil, uma rede com representantes de 234 universidades em 45 dos 50 estados dos EUA.
"Assinei essa carta a Biden por dois motivos: um é minha longa e profunda ligação com o Brasil e os brasileiros, o que torna doloroso presenciar tantas mortes e sofrimentos desnecessários. A outra é a convicção de que ninguém está a salvo da Covid até que todos estejam a salvo da Covid. O rápido aparecimento de variantes e a impossibilidade de selar fronteiras significam que apenas uma estratégia global de saúde pública pode funcionar para acabar com a pandemia", afirmou à BBC News Brasil a historiadora americana Barbara Weinstein, da Universidade de Nova York.
Estudiosa do período de industrialização e modernização do Brasil, no início do século passado, Weinstein se diz ferrenha opositora a acordos climáticos entre Brasil e EUA, especialmente um em que os americanos concordem em enviar recursos financeiros ao Brasil.
Para ela, o dinheiro do contribuinte americano serviria apenas para dar um "verniz verde" ao governo do presidente Jair Bolsonaro, a quem ela chama de "a pior pessoa para dirigir uma nação nesses tempos de pandemia".
"Mas o envio de vacinas é um assunto diferente, não só pela urgência da situação, mas também porque acho que há uma chance maior de serem direcionadas para a população que realmente precisa delas", argumenta Weinstein.
Doses para dar e vender
Os EUA contrataram doses de vacina suficientes para vacinar três vezes a população do país. Entre elas, estão cerca de 60 milhões de doses da AstraZeneca-Oxford, que há meses aguardam aval da agência reguladora sanitária americana, a FDA, para poderem ser aplicadas em território americano.
A possibilidade da remessa dessas doses ociosas vinha sendo discutida por integrantes do governo Biden e do laboratório responsável pela fabricação do imunizante pelo menos desde o final de fevereiro, mas àquela altura, com menos de 15% da população americana completamente vacinada, a administração resistia a essa possibilidade.
O governo Biden dizia priorizar a vacinação de seus próprios cidadãos, mas a pressão doméstica e internacional por doses só aumentou de lá pra cá.
A China, principal adversária global dos EUA, já remeteu mais de 200 milhões de doses de vacina ao mundo - sem contar insumos como os utilizados pelo Instituto Butantan e pela Fiocruz. Enquanto isso, no placar da contabilidade da vacina, os EUA registram apenas o envio de 4 milhões de doses - ao Canadá e ao México, ainda em março.
Agora, além das 60 milhões de doses de Astrazeneca-Oxford, Biden anunciou uma remessa de mais 20 milhões de doses de imunizantes já em uso no país (o que inclui Pfizer, Moderna e Janssen). E apesar da intensa movimentação e da urgência pelas doses, os contemplados pela doação só devem ser conhecidos nos próximos dias.
Epidemiologia e Política
Consultado pela BBC News Brasil, o Departamento de Estado afirmou que "teremos mais a dizer sobre para quais países estamos distribuindo essas vacinas em breve. Trabalharemos com a COVAX e outros parceiros para garantir que vacinas seguras e eficazes sejam entregues de forma equitativa e de acordo com os dados científicos e de saúde pública".
Um diplomata americano com conhecimento das negociações dentro do governo americano afirmou à BBC News Brasil em caráter reservado que a escolha sobre os países a serem beneficiados segue dois critérios: o epidemiológico e o político.
Quanto ao epidemiológico: devem ser priorizados aqueles em que há surgimento de variantes potencialmente mais contagiosas e mais letais. Tanto Brasil quanto Índia, dois países com quadros graves de epidemia, se enquadrariam nesse recorte.
São no entanto dois países continentais em que, especialmente no caso indiano, uma doação de alguns milhões de doses de vacina fariam pouco efeito no quadro de saúde pública geral.
O segundo aspecto, político, é mais complexo. Biden precisa conseguir ocupar um espaço internacional como protagonista na diplomacia de vacinas sem descuidar da percepção doméstica sobre seus atos.
Para isso, escalou Gayle Smith, ex-diretora da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês) para comandar a diplomacia de vacina e garantir que as digitais americanas no envio das doses tragam poder e prestígio político internacional sem prejuízo interno para Biden.
Neste momento, com mais de 60% da população adulta vacinada, os americanos se veem diante de um claro excedente de doses e de baixa demanda por elas. Campanhas em mais de um Estado prometem sortear somas milionárias a quem se apresentar em um posto de vacina para receber uma dose no braço.
Enquanto isso, os americanos são inundados por relatos e imagens do desespero e do descontrole pandêmico em outras partes do mundo. E por isso, na ala eleitoral progressista dos EUA, cresce a percepção de que o país deve compartilhar suas doses.
O sentimento, no entanto, pode mudar - e rápido. Nos EUA, adolescentes acima de 12 anos já podem se vacinar e nos próximos meses há a expectativa de que crianças acima dos 6 meses de idade sejam autorizadas a receber imunização.
Nesse caso, as autoridades americanas acreditam que haveria uma verdadeira corrida de pais com seus filhos aos postos de vacinação e a gestão Biden não está disposta a correr o risco de não ter imunizante para entrega imediata.
Além disso, com casos da doença no menor patamar em um ano e contando com o clima quente do verão nos próximos meses, os americanos se veem em um momento confortável em relação à epidemia. Mas as autoridades sanitárias não excluem a necessidade de uma dose de reforço à população quando o inverno chegar, no fim do ano, e caso novas variantes se tornem prevalentes no território.
Tudo isso faz com que os países - e suas sociedades civis - se movimentem de forma frenética para tentar garantir o que até agora os americanos se dispuseram a doar. Oficialmente, o Brasil pede por essas doses há mais de dois meses. Via Twitter, o Embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, deixou claro o clima, em post no dia 19.
"Junto com outros Embaixadores do Hemisfério, encontrei-me hoje com a coordenadora Gayle Smith. Ao agradecer aos Estados Unidos pela cooperação no combate à Covid-19, ressaltei a importância das vacinas para o Brasil, que saúda a disposição dos Estados Unidos de oferecê-las em breve aos nossos países", escreveu Forster.
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