O estudo que serviu como base para o TrateCov, aplicativo desenvolvido pelo Ministério de Saúde, tem falhas de metodologia, segundo especialistas que o analisaram a pedido da BBC News Brasil. Um dos problemas é que, para recrutar participantes, os organizadores do estudo ofereceram em troca medicamentos do chamado "tratamento precoce".
O TrateCov, plataforma que na teoria serviria para diagnosticar covid-19, foi baseado em um estudo publicado no dia 7 de janeiro de 2021, chamado "The AndroCoV Clinical Scoring for COVID-19 Diagnosis" (O Escore Clínico AndroCov para Diagnóstico da Covid-19), de autoria de médicos conhecidos por defenderem o "tratamento precoce".O autor principal do estudo, o endocrinologista Flavio Cadegiani, defendeu sua metodologia, respondendo por e-mail as questões levantadas pela reportagem.
"Como todo paper, existem limitações, e os pesquisadores agradecem por terem sido levantadas. São questões facilmente resolvíveis. Como foi tudo muito rápido, e eu não tenho uma grande equipe de suporte, estamos revisando os pré-prints (versão de um artigo acadêmico anterior à sua publicação em um periódico) e aprimorando determinados pontos", afirmou (leia mais abaixo).
À BBC News Brasil, o coordenador da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), Jorge Venâncio, disse que vai solicitar uma justificativa aos autores para que eles expliquem as irregularidades presentes no estudo.
No dia 6 de janeiro, um dia antes da publicação do artigo revisado por pares, o Ministério anunciou que lançaria o TrateCov. O lançamento da plataforma foi feito no dia 11 de janeiro, em Manaus. A plataforma tinha como objetivo auxiliar médicos a identificarem casos de covid-19 e dava pontuações para pacientes de acordo com seus sintomas para diagnosticar a doença.
Mas, depois do diagnóstico, a plataforma do governo sugeria a prescrição de medicamentos ineficazes ou sem eficácia comprovada para a covid-19, como hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina e os antibióticos azitromicina e doxiciclina. Dez dias depois do lançamento do aplicativo, sob críticas, o governo tirou o TrateCov do ar, alegando que um hacker tinha colocado o protótipo indevidamente no site do Ministério da Saúde.
Na semana passada, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello reiterou a versão do hacker e disse em depoimento na CPI da Covid que o aplicativo foi uma iniciativa da secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro. Pinheiro é sabatinada na CPI nesta terça (25/5).
Em diversas respostas a requerimentos via Lei de Acesso a Informação sobre o aplicativo TrateCov, o Ministério da Saúde respondeu se tratar de um aplicativo baseado no estudo de Cadegiani. Mas ele próprio reitera que não teve conexão com o desenvolvimento do aplicativo.
"Sequer fui chamado, convidado, etc, para dar qualquer tipo de opinião, suporte", diz. Pela data de lançamento do aplicativo, é provável que o estudo foi usado pelo governo quando ainda era um "pré-print" (sem revisão por pares), afirma Cadegiani, que é mestre e doutor em endocrinologia clínica.
Ele defende que tivesse havido uma "validação externa para utilização" do estudo antes de que fosse usado pelo governo e que um único estudo não "seria em si suficiente para basear um programa para um governo todo". Para o endocrinologista, "o mais grave desta versão do TrateCoV foi oferecer um kit de tratamento a partir de um diagnóstico clínico que foi proposto por um único estudo".
A BBC News Brasil perguntou ao Ministério da Saúde qual foi o critério para escolher esse trabalho, dentre tantos produzidos sobre o tema. Também perguntou se houve alguma análise técnica do estudo para avaliar se era adequado adotá-lo para uma plataforma lançada pelo governo brasileiro, além de outros detalhes sobre a suposta invasão de um hacker. A pasta não respondeu até a conclusão desta reportagem.
Além de Cadegiani, assinam o estudo o infectologista Ricardo Zimerman, o psicólogo Bruno Campello, a biomédica Rute Alves Pereira e Costa, o dermatologista Carlos Wambier, e os americanos Andy Goren e John McCoy. Goren, McCoy e Cadegiani são respectivamente presidente, vice-presidente e diretor clínico da empresa farmacêutica Applied Biology, especializada no desenvolvimento de medicamentos para pele e cabelo e baseada na Califórnia.
A BBC News Brasil entrou em contato com o grupo por e-mail. A reportagem não encontrou o e-mail de Zimerman, mas entrou em contato com sua secretária, que disse que passaria o recado adiante, mas que ele não teria o interesse em falar. Apenas Cadegiani e Wambier responderam. Wambier defendeu o estudo, afirmando que "cientistas devem sempre questionar e levantar hipóteses a serem testadas".
Zimerman, Campello e Costa estavam entre os ao menos 11 médicos levados com dinheiro público para Manaus nos dias 11 e 12 de janeiro para o lançamento do TrateCov e para falar sobre o "tratamento precoce" em várias UBS da capital amazonense. Segundo o Painel de Viagens do governo, o Ministério da Saúde gastou R$ 48,692.75 com diárias e passagens destes 11 médicos.
Participação em troca de 'tratamento precoce'
O sistema de pontuação para diagnóstico da covid-19 AndroCov tem esse nome porque foi um desdobramento de outras pesquisas feitas pelo mesmo grupo, que se propôs a analisar o efeito de antiandrogênicos (medicamentos que neutralizam os efeitos dos hormônios sexuais masculinos) na "profilaxia" ou no tratamento da covid-19. Não há comprovação científica de que esses medicamentos sejam eficazes nesses casos.
O estudo do escore usou dados de participantes de quatro pesquisas diferentes feitas pelo próprio grupo, incluindo testes com a espironolactona (um diurético), a dutasterida (medicamento que trata aumento de próstata) e a proxalutamida (fármaco indicado no tratamento de câncer de próstata) para a covid-19.
Em seu perfil no Instagram, Cadegiani publicou diversas imagens ao longo do ano passado convidando pessoas com teste positivo para a covid-19 para participar do estudo. "Não espere. permita-se tratar dentro de um estudo clínico de qualidade e sem custo", diz uma das imagens. "Medicamentos, exames e acompanhamento de forma gratuita", diz outra. "Todos os pacientes incluídos no estudo irão receber o 'tratamento precoce'."
As imagens também informam que o tratamento básico para todos nos testes clínicos seria feito com nitazoxanida (vermífugo vendido com o nome comercial anitta) e azitromicina, além dos outros medicamentos sendo testados ou placebo.
No entanto, esse tratamento padrão feito difere do tratamento padrão registrado pela pesquisa na Conep. Ali, o estudo tinha definido que o tratamento padrão se daria com ivermectina e azitromicina - o que por si só já é questionável, segundo especialistas, já que não há comprovação científica da eficácia desses medicamentos para a covid-19, e eles não eram os medicamentos sendo testados. De qualquer forma, a diferença entre o protocolo e o que foi colocado em prática deve ser analisada pela Conep.
Para o comunicador de ciência Jonathan Jarry, do McGill Office for Science and Society, organização dedicada ao ensino de ciências na Universidade McGill, em Montreal, Canadá, oferecer o "tratamento precoce" em troca da participação no estudo é "eticamente problemático".
"Se seus comitês de ética funcionarem da mesma forma que os nossos na América do Norte, o comitê precisaria ver e aprovar qualquer anúncio de recrutamento para o estudo. Eu definitivamente gostaria de saber o que eles acharam de um anúncio que prometia 'tratamento gratuito'. Isso não é algo que eu tenha visto antes e, no meio de uma pandemia, parece-me muito duvidoso", afirma.
"Se você prometer uma grande compensação, como tratamento gratuito para uma nova doença pandêmica, você pode comprometer a integridade de sua coleta de dados."
"Dar em troca um tratamento sem evidências, fantasioso, é inadequado. Prescrever um tratamento sem evidência não é moeda de troca. É o uso da ciência para promover outras drogas que não estão sendo testadas", avalia Luis Correia, professor adjunto da escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidências.
Cadegiani diz que os pesquisadores consideraram "mais o aspecto de sinergismo entre as drogas para potencial eficácia do que o tratamento em si". "Eu nunca acreditei em uma molécula atuando sozinha suficientemente contra a covid-19", afirma.
Metodologia
A pedido da BBC News Brasil, a microbiologista holandesa Elisabeth Bik, especialista na análise de estudos biomédicos, e editores do Science Feedback, uma organização sem fins lucrativos que verifica a credibilidade de alegações científicas, analisaram o estudo de maneira independente.
Ambos observaram que a revisão por pares do estudo publicado no site Cureus se deu em apenas um dia. A revisão por pares consiste em submeter o trabalho científico ao escrutínio de um ou mais especialistas do mesmo escalão que os autores. O Cureus se vangloria, em seu site, de oferecer "um dos mais rápidos, senão os mais rápidos, tempos de submissão à publicação de um periódico médico de acesso aberto, mantendo os mais altos padrões de revisão rigorosa por pares".
Cadegiani diz que houve várias questões feitas pelos revisores, que foram também discutidas com o editor da revista.
Outro problema diz respeito aos participantes do estudo. Os editores do Science Feedback dizem que falta uma explicação sobre como os autores chegaram ao número de 1,757 participantes. Além disso, o artigo não explica como foram recrutados. "Em um hospital? Em um consultório médico?", questiona Bik. No protocolo do estudo publicado no site Clinical Trials, um banco de dados de estudos clínicos conduzidos pelo mundo todo, o texto diz que os pacientes foram recrutados no Instituto Corpometria, em Brasília, de Cadegiani.
Ele explica que a forma de recrutamento dos participantes está especificada nos estudos originais. Em um deles, por exemplo, os autores escrevem que os pacientes foram recrutados pelas redes sociais e por uma lista de mailing de um plano de saúde baseado em Brasília.
É também em relação ao desenho do estudo que Bik aponta outros problemas. O estudo aponta para um desenho, no site do Clinical Trials, que nada tem a ver com a proposta final. O desenho do estudo original tratava de testes para avaliar se antiandrogênicos poderiam ser efetivos para reduzir taxas de covid-19.
A BBC News Brasil apurou que o código da Conep usado pelos cientistas no artigo se refere, na verdade, à aprovação para o testes clínicos com a dudasterida. Em outras palavras, os cientistas usaram a aprovação do desenho de um estudo com um medicamento para produzir um artigo com tema totalmente diferente - o escore para diagnóstico de covid-19 - sem que um desenho tivesse sido aprovado pela Conep.
Cadegiani diz que o estudo foi retrospectivo, englobando uma análise populacional, sem qualquer intervenção nos pacientes. "Trata-se de uma análise paralela, adicional, à parte dos trials do AndroCoV que não envolveu absolutamente nenhum tipo de modificação, conduta, alteração ou qualquer tipo de influência nos pacientes, o que permite sua realização", afirma.
Para Correia, da escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, "isso é normal". "Pacientes de ensaios clínicos podem e são usados para desenvolver escores prognósticos", diz ele, ressaltando que há outros aspectos questionáveis no estudo.
Por fim, Bik questiona a declaração final de que não há "conflito de interesses" no estudo.
Tanto o Science Feedback quanto Bik apontam que das 26 referências citadas pelo paper, 12 são dos autores do artigo.
"Embora a autocitação em si não seja um problema, é preocupante que quase metade dos artigos mencionados, que devem dar suporte às afirmações dos autores, venham de suas próprias pesquisas. Além disso, cinco dos artigos são pré-prints e, como tal, nunca foram submetidos à revisão por pares", observaram os editores do Science Feedback.
Cadegiani concorda que é preciso evitar autocitações, mas que "a teoria anti-androgênica" é "bastante nova, de modo que, na época, não havia outros autores aos quais recorrer".
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