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Estado de Minas COVID-19

De 'pênis na Fiocruz'; a cloroquina na OMS, as notícias falsas na CPI

Em 4 semanas de depoimentos, a CPI da Covid teve que lidar não só com contradições e versões conflitantes de testemunhas para os mesmos fatos, mas com informações falsas que circulavam pela internet e acabaram encontrando palco na investigação do Senado.


26/05/2021 06:41 - atualizado 26/05/2021 08:30


Mayra Pinheiro admitiu à CPI que foi autora de áudio que dizia que 'há um pênis na porta da Fiocruz'(foto: Reprodução/TV Senado)
Mayra Pinheiro admitiu à CPI que foi autora de áudio que dizia que 'há um pênis na porta da Fiocruz' (foto: Reprodução/TV Senado)

Em quatro semanas de depoimentos, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid teve que lidar não só com contradições e versões conflitantes de testemunhas para os mesmos fatos, mas com informações falsas — fake news — que circulavam pela internet e acabaram encontrando palco na investigação do Senado.

As fake news não estiveram presentes apenas nas falas de testemunhas - chegaram a embasar falas e perguntas de alguns senadores.

A presença de informações falsas foi tão marcante que o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), disse na semana passada que talvez fosse necessário contratar uma agência de checagem de fatos para verificar em tempo real se o que está sendo dito é verdade.

A comissão não chegou a fazer a contratação, mas checagens jornalísticas independentes, como as da Agência Lupa, encontraram informações falsas tanto na fala de testemunhas como o ministro da saúde Marcelo Queiroga quanto na de senadores como Eduardo Girão (Podemos-CE) e Luis Carlos Heinze (PP-RS).

'Pênis' na porta da Fiocruz e aplicativo TratCov

O depoimento da secretária do ministério da Saúde Mayra Pinheiro, na terça (25/05), foi especialmente marcado por uma discussão envolvendo notícias falsas.

Pinheiro, conhecida como 'Capitã Cloroquina' pela sua defesa do uso do medicamento de efeito não comprovado contra a covid, confirmou à CPI que foi realmente ela quem fez um áudio que circulou pelas redes sociais espalhando notícias falsas sobre a Fiocruz.

No áudio, Pinheiro dizia que "tudo deles envolve LGBT" e que "eles têm um pênis na porta da Fiocruz", que "todos os tapetes das portas são a figura do Che Guevara" e as "salas são figurinhas do Lula Livre, Marielle Vive".

A Fiocruz não tem uma figura de um pênis na entrada nem tapetes nas portas com a imagem de Che Guevara. Também não há envolvimento da fundação em campanhas de apoio a Lula ou sobre o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco.

Questionada pelo senador Randolfe Rodrigues se ainda pensava dessa maneira, Pinheiro afirmou que o áudio era antigo e que "nessa época isso era constatação de fatos".

"Existia um objeto inflável em comemoração a uma campanha na porta da entidade", disse ela.

Uma checagem da Agência Lupa mostrou que pelo menos outras cinco das declarações feitas pela secretária continham informações falsas.

Pinheiro afirmou que o aplicativo TrateCov não foi lançado, e que houve uma "extração indevida de dados por um hacker", que depois ela nomeou como sendo o jornalista Rodrigo Menegat.

Mas o TrateCov foi efetivamente colocado no ar para auxiliar médicos em Manaus, com direito a um programa sobre seu uso na TV Brasil.

Também não houve hackeamento nem extração indevida de dados por parte de Menegat - o jornalista acessou o código da página que estava público, segundo a Agência Lupa, processo que pode ser feito em qualquer site e que não é ilegal.

Pinheiro também citou três notícias falsas sobre a OMS (Organização Mundial de Saúde). Disse que a entidade "retirou a orientação desses medicamentos [cloroquina e hidroxicloroquina] para tratamento da Covid", que indica amamentação por mães soropositivas e que afirmou que o lockdown é responsável pela miséria.

A OMS nunca indicou cloroquina para tratamento de covid-19 e declarou em 2020 que não havia eficácia comprovada do medicamento contra o coronavírus.

A entidade também não indica a amamentação por mães soropositivas em qualquer caso, deixando claro que isso não é seguro. A posição da OMS é que, em locais onde o acesso a recursos é muito restrito e muitas crianças morrem por desnutrição, como em alguns países do continente africano, é preferível que as mães amamentem os bebês nos primeiros seis meses a deixá-los passar fome.

A OMS continua indicando medidas de isolamento social e lockdown para combater a pandemia. E embora reconheça que populações possam ter dificuldades devido à medidas, a entidade afirma que é responsabilidade dos governos cuidar para garantir a segurança alimentar dos mais vulneráveis.

A BBC Brasil questionou o Ministério da Saúde sobre as afirmações da secretária, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem.


O ex-ministro Pazuello afirmou que não há comprovação de eficácia de medidas de isolamento, o que não é verdade(foto: Agência Senado)
O ex-ministro Pazuello afirmou que não há comprovação de eficácia de medidas de isolamento, o que não é verdade (foto: Agência Senado)

Eficácia de medidas de isolamento

As medidas de isolamento foram tema de outras afirmações inverídicas na CPI.

Em seu depoimento, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello afirmou que não existe comprovação científica para eficácia de medidas de isolamento contra a covid, o que é incorreto.

"As medidas de isolamento não são também, da mesma forma que outros medicamentos, outras ações, também não são cientificamente comprovadas", afirmou Pazuello no dia 20 de maio.

Na verdade, diversos estudos já comprovaram a eficácia das medidas. Entre eles, estão um estudo publicado na revista científica The Lancet , feito com dados de 131 países, um estudo na Science e um estudo na International Journal of Infectious Diseases.

STF e a atuação do governo federal

Algumas notícias falsas foram citadas por mais de uma testemunha. Tanto o ex-ministro Pazuello quanto o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disseram que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que o governo "não pode intervir nos Estados" para ajudar no combate à pandemia.

"A decisão do STF em abril de 2020 limitou ainda mais a atuação do governo federal nessas ações. Não há possibilidade do Ministério da Saúde interferir na execução das ações dos Estados na saúde sem usurpar as competências dos Estados e municípios", afirmou Pazuello na primeira parte de seu depoimento, em 19 de maio.

Isso não procede. O STF não impediu que o Governo Federal tomasse ações de combate à pandemia ou limitou sua atuação, pelo contrário. A corte confirmou no ano passado que os municípios, Estados e a União têm competência "concorrente" para ações de saúde pública - ou seja, que a responsabilidade pelo combate à covid é dividida pelas diversas instâncias governamentais.

O Supremo também decidiu que os Estados e municípios também podem, tanto quanto o governo federal, decretar medidas de isolamento social, quarentenas e restrições de transporte. O governo Bolsonaro argumentava que somente a União poderia fazê-lo.

Fake News pautando perguntas

Não foram apenas as testemunhas que foram confrontadas com a inveracidade de suas informações.

Alguns senadores membros da CPI também basearam falas e perguntas em notícias falsas.

Ao questionar o executivo da Pfizer Carlos Murillo, o senador governista Marcos Rogério (DEM-RO) afirmou que a informação que tinha "é que a vacinação nos EUA não começou em dezembro".

Rogério questionava Murillo sobre o cronograma de entregas da Pfizer apresentado junto com as propostas de compra, em 2020 — que o governo rejeitou.

No entanto, a informação de que a vacinação nos EUA começou no dia 14 de dezembro de 2020 foi amplamente divulgada na época. Ela começou com vacinas da Pfizer/BioNTech, alguns dias depois de a FDA (agência regulatória americana) aprovar, em 11 de dezembro, uma autorização emergencial para o seu uso.

Rogério também apresentou informações equivocadas quando disse, na terça (25/05), que a cloroquina ainda "faz parte do protocolo de tratamento contra covid dos Estados" e citou, entre outros, São Paulo e Bahia.

O governo do Estado de São Paulo emitiu uma nota afirmando que "nenhum medicamento sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19 foi adotado em São Paulo" e que o "senador mente em CPI sobre protocolo de uso de cloroquina em SP" e "manipula informações".

Segundo o governo de São Paulo, a cloroquina é usada para diversas outras doenças (artrite reumatoide, lúpus, artrite idiopática juvenil, dermatomiosite, polimiosite e malária), para as quais há eficácia comprovada, e que a distribuição do remédio é feita para uso contra essas enfermidades, e não para covid.

Em junho do ano passado, a Bahia admitia o uso do medicamento apenas para casos graves, mas disse à Folha de S. Paulo que ignoraram a orientação do Ministério da Saúde para ampliar o uso também para casos leves por falta de comprovação científica.

Em julho de 2020, uma nova portaria da Secretaria da Saúde da Bahia foi publicada deixando claro que não há recomendação do uso de cloroquina contra covid, porque os estudos mostraram que não há eficácia comprovada e pode haver efeitos colaterais adversos.

A BBC News Brasil procurou o senador sobre os episódios, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.


Diversas das notícias falsas envolviam a Organização Mundial de Saúde, atualmente dirigida por Tedros Adhanom Ghebreyesus(foto: Reuters)
Diversas das notícias falsas envolviam a Organização Mundial de Saúde, atualmente dirigida por Tedros Adhanom Ghebreyesus (foto: Reuters)

Combate às fake news

Notícias falsas sobre o coronavírus como as citadas durante a CPI da Covid são abundantes nas redes sociais e no Whatsapp desde o início da pandemia.

Para apurar os possíveis responsáveis por disseminar mentiras no contexto de crise sanitária, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou um requerimento para que a CPI das Fake News compartilhe informações com a CPI da Pandemia.

Randolfe citou exemplos de mentiras que precisam ser combatidas, como a notícia falsa de que haveria instalação de "chips" por meio das vacinas e que imunizantes que usam a tecnologia de RNA mensageiro, como a da Pfizer, seriam capazes de "alterar o DNA". Ambas as afirmações são falsas, como mostrado nesta reportagem da BBC.

O senador também solicitou documentos sobre mais de 30 canais de vídeo no YouTube que, durante a instalação da CPI, removeram quase 400 vídeos de fake news sobre a covid-19.

Randolfe afirmou que "canais de apoiadores do bolsonarismo no YouTube têm promovido uma limpa de vídeos sobre tratamento precoce de sua base de vídeos" e citou um levantamento do site Congresso em Foco que identificou que 385 vídeos sobre tratamento precoce saíram do ar entre 14/4 e 6/5.

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O que é uma CPI?

As comissões parlamentares de inquérito (CPIs) são instrumentos usados por integrantes do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores) para investigar fato determinado de grande relevância ligado à vida econômica, social ou legal do país, de um estado ou de um município. Embora tenham poderes de Justiça e uma série de prerrogativas, comitês do tipo não podem estabelecer condenações a pessoas.

Para ser instalado no Senado Federal, uma CPI precisa do aval de, ao menos, 27 senadores; um terço dos 81 parlamentares. Na Câmara dos Deputados, também é preciso aval de ao menos uma terceira parte dos componentes (171 deputados).

Há a possibilidade de criar comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs), compostas por senadores e deputados. Nesses casos, é preciso obter assinaturas de um terço dos integrantes das duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional.

O que a CPI da COVID investiga?


O presidente do colegiado é Omar Aziz (PSD-AM). O alagoano Renan Calheiros (MDB) é o relator. O prazo inicial de trabalho são 90 dias, podendo esse período ser prorrogado por mais 90 dias.



Saiba como funciona uma CPI

Após a coleta de assinaturas, o pedido de CPI é apresentado ao presidente da respectiva casa Legislativa. O grupo é oficialmente criado após a leitura em sessão plenária do requerimento que justifica a abertura de inquérito. Os integrantes da comissão são definidos levando em consideração a proporcionalidade partidária — as legendas ou blocos parlamentares com mais representantes arrebatam mais assentos. As lideranças de cada agremiação são responsáveis por indicar os componentes.

Na primeira reunião do colegiado, os componentes elegem presidente e vice. Cabe ao presidente a tarefa de escolher o relator da CPI. O ocupante do posto é responsável por conduzir as investigações e apresentar o cronograma de trabalho. Ele precisa escrever o relatório final do inquérito, contendo as conclusões obtidas ao longo dos trabalhos. 

Em determinados casos, o texto pode ter recomendações para evitar que as ilicitudes apuradas não voltem a ocorrer, como projetos de lei. O documento deve ser encaminhado a órgãos como o Ministério Público e a Advocacia-Geral da União (AGE), na esfera federal.

Conforme as investigações avançam, o relator começa a aprimorar a linha de investigação a ser seguida. No Congresso, sub-relatores podem ser designados para agilizar o processo.

As CPIs precisam terminar em prazo pré-fixado, embora possam ser prorrogadas por mais um período, se houver aval de parte dos parlamentares

O que a CPI pode fazer?

  • chamar testemunhas para oitivas, com o compromisso de dizer a verdade
  • convocar suspeitos para prestar depoimentos (há direito ao silêncio)
  • executar prisões em caso de flagrante
  • solicitar documentos e informações a órgãos ligados à administração pública
  • convocar autoridades, como ministros de Estado — ou secretários, no caso de CPIs estaduais — para depor
  • ir a qualquer ponto do país — ou do estado, no caso de CPIs criadas por assembleias legislativas — para audiências e diligências
  • quebrar sigilos fiscais, bancários e de dados se houver fundamentação
  • solicitar a colaboração de servidores de outros poderes
  • elaborar relatório final contendo conclusões obtidas pela investigação e recomendações para evitar novas ocorrências como a apurada
  • pedir buscas e apreensões (exceto a domicílios)
  • solicitar o indiciamento de envolvidos nos casos apurados

O que a CPI não pode fazer?

Embora tenham poderes de Justiça, as CPIs não podem:

  • julgar ou punir investigados
  • autorizar grampos telefônicos
  • solicitar prisões preventivas ou outras medidas cautelares
  • declarar a indisponibilidade de bens
  • autorizar buscas e apreensões em domicílios
  • impedir que advogados de depoentes compareçam às oitivas e acessem
  • documentos relativos à CPI
  • determinar a apreensão de passaportes

A história das CPIs no Brasil

A primeira Constituição Federal a prever a possibilidade de CPI foi editada em 1934, mas dava tal prerrogativa apenas à Câmara dos Deputados. Treze anos depois, o Senado também passou a poder instaurar investigações. Em 1967, as CPMIs passaram a ser previstas.

Segundo a Câmara dos Deputados, a primeira CPI instalada pelo Legislativo federal brasileiro começou a funcionar em 1935, para investigar as condições de vida dos trabalhadores do campo e das cidades. No Senado, comitê similar foi criado em 1952, quando a preocupação era a situação da indústria de comércio e cimento.

As CPIs ganharam estofo e passaram a ser recorrentes a partir de 1988, quando nova Constituição foi redigida. O texto máximo da nação passou a atribuir poderes de Justiça a grupos investigativos formados por parlamentares.

CPIs famosas no Brasil

1975: CPI do Mobral (Senado) - investigar a atuação do sistema de alfabetização adotado pelo governo militar

1992: CPMI do Esquema PC Farias - culminou no impeachment de Fernando Collor

1993: CPI dos Anões do Orçamento (Câmara) - apurou desvios do Orçamento da União

2000: CPIs do Futebol - (Senado e Câmara, separadamente) - relações entre CBF, clubes e patrocinadores

2001: CPI do Preço do Leite (Assembleia de MG e outros Legislativos estaduais, separadamente) - apurar os valores cobrados pelo produto e as diretrizes para a formulação dos valores

2005: CPMI dos Correios - investigar denúncias de corrupção na empresa estatal

2005: CPMI do Mensalão - apurar possíveis vantagens recebidas por parlamentares para votar a favor de projetos do governo

2006: CPI dos Bingos (Câmara) - apurar o uso de casas de jogo do bicho para crimes como lavagem de dinheiro

2006: CPI dos Sanguessugas (Câmara) - apurou possível desvio de verbas destinadas à Saúde

2015: CPI da Petrobras (Senado) - apurar possível corrupção na estatal de petróleo

2015: Nova CPI do Futebol (Senado) - Investigar a CBF e o comitê organizador da Copa do Mundo de 2014

2019: CPMI das Fake News - disseminação de notícias falsas na disputa eleitoral de 2018

2019: CPI de Brumadinho (Assembleia de MG) - apurar as responsabilidades pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão


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