Em 12 de abril, um homem de 56 anos chegou a um hospital de Manaus, no Amazonas, com infecção na região maxilar e no entorno do olho direito.
A área atingida, segundo a equipe que o acompanhou, apresentava sinais de necrose. Exames apontaram que o cérebro dele também havia sido afetado pela enfermidade.
A equipe médica logo associou as características do paciente à mucormicose, infecção conhecida popularmente como "fungo preto".O homem era diabético e, segundo a equipe médica, não fazia o tratamento adequado da doença. Quatro dias após chegar ao hospital, ele morreu.
Posteriormente, uma análise confirmou que o homem havia desenvolvido a mucormicose. O principal fator para o agravamento do quadro dele, segundo os médicos, foi o descontrole da diabetes.
O caso do paciente logo acendeu um alerta sobre a infecção que tem sido noticiada em todo o mundo, após acometer quase 9 mil pacientes com a covid-19 na índia, em meio à explosão da pandemia no país.
O "fungo preto" mata mais de 50% dos afetados, segundo estudos sobre o tema. Muitos dos pacientes precisam passar por cirurgias mutilantes, que retiram partes do corpo atingidas pelo micro-organismo, como os olhos.
No Brasil foram registrados, segundo o Ministério da Saúde, 29 casos de mucormicose entre janeiro e maio deste ano. Em 2020, conforme a pasta, foram 36 casos de janeiro a dezembro. Os dados são baseados em notificações feitas pelos Estados e não há detalhes se eles têm relação com o novo coronavírus.
O caso de Manaus não foi, ao menos até o momento, associado à covid-19. Durante o período no hospital, o paciente passou por exames que não apontaram infecção pelo novo coronavírus.
Nos últimos dias, mais dois casos da infecção fúngica foram confirmados no Brasil: em Pernambuco e no Rio Grande do Norte. Nessas situações, segundo os governos locais, as pacientes haviam se recuperado da covid-19 recentemente.
Além disso, atualmente há, ao menos, outros três casos suspeitos da infecção fúngica no país.
Especialistas ouvidos em recente reportagem da BBC News Brasil disseram que, de maneira geral, os casos de mucormicose não são considerados uma ameaça ao país. Eles argumentaram que os fungos relacionados à infecção circulam livremente por boa parte do mundo, inclusive no Brasil, e são conhecidos e estudados desde o final do século 19.
A mucormicose pode representar uma ameaça para casos como os de pacientes com diabetes descontrolada, doenças oncohematológicas (como a leucemia) que precisam de transplante de medula óssea ou quando uma pessoa faz uso de altas doses de corticoides, que possuem ação anti-inflamatória.
O paciente de Manaus
No início de abril, o paciente de Manaus tomou a primeira dose da CoronaVac, imunizante contra a covid-19. Ele apresentou febre e mal-estar posteriormente. Segundo os relatos de familiares, o homem começou a sentir um incômodo ao redor do olho e aplicou um óleo vegetal na região.
O médico Paulo Roberto Mendonça, da Vigilância Sanitária do Amazonas, aponta que não é possível afirmar em que situação o homem desenvolveu a infecção fúngica. Ele destaca que isso pode ter ocorrido em qualquer situação do cotidiano.
"Esse óleo vegetal (que o homem usou na região dos olhos), por exemplo, pode ter disseminado o fungo, porque normalmente esses produtos são caseiros, feitos no mercado informal. Mas também não sabemos as condições sanitárias da casa dele, em relação ao clima quente. Há pessoas que moram em verdadeiros viveiros de fungos", diz o médico à BBC News Brasil.
Os fungos que provocam a mucormicose, conhecidos como Rhizopus, Rhizomucor e Mucor, estão presentes em muitos países (incluindo o Brasil) e podem ser observados no bolor do pão e das frutas, por exemplo.
Muitos podem conviver bem com eles, sem desenvolver qualquer doença. A explicação para aqueles que apresentam um quadro infeccioso está na condição de saúde de cada um.
"Pessoas saudáveis não evoluem para uma doença, só pacientes imunossuprimidos", explica Mendonça.
Ele estima que o paciente de Manaus começou a apresentar os sintomas da infecção por volta de 10 dias antes de procurar atendimento médico. Essa demora, avalia o especialista, agravou ainda mais o quadro. "Ele tentou tratamento em casa e piorou", diz.
Cirurgião oncológico, Mendonça relata que em duas décadas de carreira nunca havia presenciado um caso de mucormicose. "Talvez quem trabalha com doença infecciosa possa ter visto já, mas eu nunca tinha acompanhado", comenta.
Quando decidiu procurar atendimento médico, o paciente foi internado no Hospital e Pronto-Socorro Dr. João Lúcio, na Zona Leste de Manaus. Posteriormente, ele foi transferido para o hospital da Fundação de Medicina Tropical, onde passou os seus últimos dias.
Na unidade de saúde, um familiar do paciente informou que ele deveria usar insulina por ser diabético, mas havia interrompido o tratamento nas semanas anteriores.
O médico relata a condição que o homem chegou ao hospital. "Ele estava com um quadro muito grave. Desde o início já havia a possibilidade do diagnóstico (de mucormicose) e ele recebeu o tratamento para isso", diz.
"Na face dele havia uma área de necrose, que é como se a pele ficasse inchada. Essa necrose é quando há um ponto meio escurecido, no qual não há mais gordura embaixo da pele, apenas uma área de pus. É um tecido sem vida, que você corta e não sangra", detalha Mendonça.
O médico explica que a equipe suspeitou que fosse um caso de mucormicose pela alta incidência de casos na Índia. "Como começou um alerta na índia e a apresentação desse caso era muito atípica, com um padrão de necrose, foi solicitada a análise da cultura de bactérias e fungos do paciente", diz
Os médicos, relata Mendonça, precisaram tirar a área necrosada no rosto do paciente para evitar uma propagação ainda maior da infecção. "Foi feito o desbridamento (remoção do tecido necrosado) da pele (afetada). Há casos, segundo os relatos médicos, em que é necessário também retirar o olho do paciente. Nesse caso não foi preciso", diz.
Mas os cuidados médicos não foram suficientes para salvar o homem. O quadro dele piorou rapidamente. Em 16 de abril, ele teve um choque séptico (infecção generalizada que causa falência dos órgãos), em decorrência da mucormicose, e não resistiu.
Mais de um mês depois da morte do homem, a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado confirmou que o paciente estava com mucormicose rinocerebral, o tipo mais comum da infecção, que atinge áreas como nariz, olhos e boca. Após a confirmação do resultado, o material foi encaminhado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que deverá estudar o caso.
A mucormicose no Brasil
No domingo (06/06), o primeiro caso da infecção por mucormicose foi confirmado em Pernambuco. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (SES), a paciente é uma mulher de 59 anos que está internada desde sexta-feira (04/06).
A pasta estadual afirma que a mulher tem diabetes, hipertensão, asma e é obesa. O quadro dela é considerado estável. Anteriormente, a paciente teve covid-19.
Na segunda-feira (07/06), a Secretaria Estadual de Saúde Pública (Sesap) do Rio Grande do Norte informou que uma biópsia confirmou a infecção de uma moradora de Natal por mucormicose.
De acordo com a Sesap, a mulher tem 42 anos e teve quadro leve de covid-19 recentemente. Após se recuperar, teve sintomas de infecção pelo fungo. Segundo a pasta, a mulher passa bem . Não foi divulgado se ela tem alguma doença pré-existente.
Nas últimas, semanas, algumas cidades brasileiras anunciaram suspeitas de mucormicose, como São Paulo (SP), Campo Grande (MS) e Joinville (SC). Esses casos ainda são analisados por laboratórios.
Especialistas afirmam que a doença não é transmitida de uma pessoa para outra. A principal orientação para casos suspeitos da infecção fúngica é buscar atendimento médico imediatamente para evitar a necrose de tecidos afetados.
Ao menos pelos números atuais, Paulo Roberto Mendonça avalia que os casos de mucormicose no Brasil não devem ser considerados alarmantes. Principalmente, diz ele, porque não houve aumento considerável de registros da infecção fúngica, como na Índia, durante o auge da pandemia no Brasil, entre março e abril.
Mendonça afirma que os registros podem subir nos próximos meses em razão do alerta na Índia, que deve fazer com que os profissionais de saúde fiquem mais atentos à infecção.
"Os casos que antes não eram observados e diagnosticados corretamente, agora podem ser identificados mais precocemente aqui no Brasil", afirma.
Entre os motivos para que a índia tenha tido aumento de registros da infecção fúngica, apontam especialistas, está o fato de que o país tem uma das maiores taxas de diabetes do mundo. "Proporcionalmente, é também um dos países com mais pessoas sem o tratamento ideal", afirma Mendonça.
O alto índice de mucormicose na Índia é justificado por especialistas com base nesse cenário de pacientes vulneráveis, que muitas vezes têm doenças prévias, com o sistema imunológico afetado pela covid-19 e que precisam de remédios que podem afetar ainda mais o funcionamento das células de defesa (como os corticoides). Além disso, muitos foram mantidos em locais que podem não apresentar a higiene adequada enquanto tratavam a doença causada pelo novo coronavírus.
Como evitar a infecção
A porta de entrada da mucormicose costuma ser o nariz. Logo invade os vasos sanguíneos do rosto, criando manchas escuras por onde passa (daí a alcunha "fungo preto"), conforme detalhou reportagem recente da BBC News Brasil.
Em uma situação normal, é bem provável que o sistema imunológico consiga lidar com esses avanços fúngicos para evitar repercussões maiores.
Mas em um momento de fragilidade causado pela covid-19, esse mecanismo natural de defesa pode não funcionar tão bem e permitir que Mucor, Aspergillus, Candida e companhia limitada causem estragos.
Uma das principais orientações de especialistas para evitar a mucormicose é o controle adequado de doenças crônicas, como diabetes.
O infectologista Alessandro Comarú Pasqualotto, professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, disse, em recente entrevista à BBC News Brasil, que é importante que as pessoas se preocupem com a umidade e a ventilação do ambiente em que vivem.
Pasqualotto também alerta sobre o acúmulo de água e matéria orgânica em decomposição na geladeira e na despensa e comenta que precisamos ficar atentos ao aparecimento de mofo nas paredes ou dentro de armários na cozinha e no banheiro. "Precisamos tirar o alimento para que os fungos não se desenvolvam", diz.
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