Jornal Estado de Minas

DOCUMENTOS OFICIAIS

CPI da Covid: Em meio a colapso por falta de oxigênio, Manaus fez apelo por azitromicina e ivermectina ao Ministério da Saúde



Nos primeiros dias do ano, quando o Amazonas vivia o colapso do seu sistema de saúde e a iminente falta de oxigênio devido à explosão de casos de covid-19, a prefeitura de Manaus e o governo estadual solicitaram ao Ministério da Saúde envio de medicamentos ineficazes para tratamento da doença, como cloroquina, azitromicina e ivermectina.



É o que mostram documentos requisitados pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid às secretarias municipal e estadual de saúde e analisados pela BBC News Brasil.

Os pedidos por medicamentos ineficazes ocorreram entre 5 e 14 de janeiro. Segundo a série histórica da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, 14 de janeiro, dia em que o oxigênio acabou em Manaus, foi o mais letal da covid-19 no Estado, com 176 óbitos registrados.

Mais de uma semana antes dessa marca trágica, a secretária municipal de Saúde de Manaus, Shadia Hussami Hauache Fraxe, enviou em 6 de janeiro ao então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, um ofício cujo assunto era: "Contextualiza a gestão da Saúde municipal e solicita apoio para enfrentamento da pandemia". Ela havia acabado de assumir a pasta com a posse do novo prefeito da cidade, David Almeida (Avante), no primeiro dia do ano.

Logo no início do ofício, a secretária diz que "a situação é caótica no Estado, e mais especialmente da capital amazonense, dado o crescente e explosivo número de casos de COVID-19". Em outro trecho, destaca que Manaus encontra-se "com a rede hospitalar, a cargo do estado, em vias de colapsar mais uma vez", em referência à primeira crise no sistema de saúde do Amazonas em 2020, no início da pandemia.



Em meio a esse cenário descrito no ofício, Fraxe ressalta a carência de recursos financeiros, de profissionais de saúde e de insumos e medicamentos na rede de saúde para enfrentar a pandemia. Chama atenção, porém, a ênfase dada à necessidade de repor os estoques de azitromicina e ivermectina, medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid.

"Registramos que o estoque de Azitromicina, Ivermectina, prednisona e dexametasona, estão baixíssimos, e é imperativa uma ação saneadora para tal", diz o ofício.

Outro trecho do documento solicita também o envio de 150 mil comprimidos de hidroxicloroquina, quantidade que depois foi corrigida em outra comunicação ao ministério para dez mil comprimidos.

Azitromicina, ivermectina e hidroxicloroquina são medicamentos que, embora sem eficácia comprovada contra covid-19, fazem parte do chamado "tratamento precoce" defendido pelo governo Jair Bolsonaro. Já prednisona e dexametasona são corticoides recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para tratar casos graves de covid-19 - as substâncias não atingem o vírus diretamente, mas combatem inflamações causadas pela doença.



Após esse primeiro pedido, a secretária de Saúde de Manaus enviou outro ofício endereçado a Pazuello em 14 de janeiro, insistindo na necessidade dos medicamentos ineficazes e tratando essas substâncias como "essenciais" para enfrentar a crise na capital amazonense.

"Baixo estoque ou estoque zerado de medicamentos essenciais para a profilaxia ou tratamento de casos suspeitos ou positivados de COVID-19, sendo esse um dos mais graves problemas, dada as dificuldades regionais de aquisição e entrega imediata, em especial, de Azitromicina e Ivermectina, que para o primeiro encontramos um estoque para menos de 20 dias, e para o segundo o ESTOQUE ZERADO", diz o ofício.

Mais à frente, outro trecho insiste: "Encontramos estoques zerados de Ivermectina, e também dificuldades para aquisição, com entrega imediata. Há processos emergenciais e por dispensa em curso, mas o medicamento tem se revelado o mais promissor tanto na profilaxia quanto no tratamento".



Os documentos enviados à CPI pela Secretaria de Saúde de Manaus mostram que o Ministério da Saúde respondeu aos pedidos em 21 de janeiro. A pasta concordou em fornecer os dez mil comprimidos de hidroxicloroquina e informou o envio de 60 mil comprimidos de Azitromicina ao Estado do Amazonas, dos quais um terço seria destinado à prefeitura de Manaus.

Além disso, o ministério disse que enviaria 250 mil comprimidos de fosfato de oseltamivir, conhecido pelo nome comercial Tamiflu. Usado para tratamento de alguns tipos de gripes, incluindo a H1N1, o medicamento também não tem eficácia para covid-19.

O pedido da Prefeitura de Manaus por substâncias ineficazes ocorreu em um contexto em que os remédios eram demandados pela própria população local, sob incentivo do governo Bolsonaro.

Essa situação foi descrita pelo coordenador da UTI do Hospital Getúlio Vargas, em Manaus, Anfremon Neto, em desabafo gravado em 15 de janeiro que viralizou nas redes sociais. Ele regiu a uma fala do presidente de 12 de janeiro, afirmando que Manaus "estava um caos" porque "não faziam tratamento precoce".



Então ministro Eduardo Pazuello lançou no AM aplicativo para facilitar prescrição de remédios cuja eficácia contra covid foi descartada por estudos científicos (foto: Agência Senado)

"O nosso governo tem sido negacionista em relação à pandemia, relativiza tudo, banaliza tudo. A última foi dizer que o que está acontecendo aqui em Manaus é porque a gente não faz tratamento precoce", criticou Anfremon Neto.

"Eles (os pacientes) sabem, já compram (os medicamentos), fazem estoque em casa e começam a tomar sozinhos. Então, gente, quem for ver esse vídeo: não é falta de tratamento precoce. Isso é sacanagem com a gente que trabalha aqui. Dizer que o que tá acontecendo aqui é falta de tratamento precoce", disse ainda.

A BBC News Brasil enviou questionamentos à Prefeitura de Manaus e ao Ministério da Saúde no início da tarde de segunda-feira (14/06), solicitando retorno até a noite do mesmo dia. A prefeitura não respondeu, enquanto o ministério disse que precisava de um prazo maior para se manifestar. A reportagem será atualizada assim que a pasta se enviar suas respostas.



Os documentos enviados à CPI pela Secretaria de Saúde de Manaus mostrando a comunicação do órgão com o Ministério da Saúde não indicam qualquer pedido da prefeitura por fornecimento de oxigênio no início de janeiro.

Em manifestação à comissão, o órgão diz que não faltou oxigênio nos dois serviços da rede municipal que usam o insumo: a Maternidade Dr. Moura Tapajóz e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU).

"Não houve, pois, falta de oxigênio medicinal nas unidades de saúde sob gestão municipal, e não há registros de óbitos de pacientes, em decorrência de falta de oxigênio medicinal de pacientes internados em ambiente hospitalar", conclui a manifestação à CPI.



Governo do Amazonas também pediu cloroquina

A resposta das autoridades ao colapso do sistema de saúde do Amazonas é o principal foco da CPI nesta terça-feira (15/06), com o depoimento do ex-secretário de Saúde do Amazonas, Marcellus Campêlo. Investigado por supostos desvios de recursos destinados ao combate da pandemia, ele nega ter cometido qualquer ilegalidade.

Documentos enviados pelo governo estadual à comissão também indicam que houve solicitação de remédio ineficaz durante o colapso da rede de saúde. Uma lista com resumo dos pedidos ao Ministério da Saúde mostra que em 5 de janeiro houve "Solicitação de Cloroquina" por meio do ofício nº 0052/2021- GAB/SES-AM.

A BBC News Brasil, no entanto, não localizou esse documento entre os anexos enviados à CPI para que pudesse checar seu teor. O documento foi solicitado à Secretaria Estadual de Saúde, mas não houve retorno até o fechamento da reportagem.



Já outro ofício disponibilizado pela Secretaria de Saúde do Amazonas à comissão mostra que em 13 de janeiro Marcellus Campêlo pediu ao Ministério da Saúde que fossem cedidos 16 farmacêuticos para a implementação no Estado do "projeto TrateCov Brasil", uma plataforma desenvolvida pelo governo federal para prescrever o "tratamento precoce" online de forma rápida.


Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas diz que 14 de janeiro, dia em que o oxigênio acabou em Manaus, foi o mais letal da covid-19 no Estado, com 176 óbitos registrados (foto: EPA)

A plataforma chegou a ser lançada em Manaus em 11 de janeiro, em evento com participação do então ministro Pazuello, mas foi tirada do ar após reportagens mostrarem que a ferramenta prescrevia medicamentos ineficazes contra covid-19 indiscriminadamente, até mesmo para bebês.

Os documentos enviados à CPI também mostram os pedidos do governo do Amazonas para que o governo federal apoiasse o Estado no abastecimento de oxigênio, confirmando informações já noticiadas pela imprensa brasileira.



O primeiro deles é um ofício de 07/01, uma semana antes do colapso, em que Campêlo pediu ao Comando Militar da Amazônia apoio no transporte do gás de Belém, no Pará, para o Amazonas. O documento diz que houve "súbito aumento no consumo (de oxigênio)" devido "à alta da contaminação (do coronavírus)".

Segundo reportagem do portal G1 de maio, também em 07/01 Campêlo comunicou por telefone Pazuello sobre a iminente falta de oxigênio.

As informações contrariam a versão do ex-ministro, que disse à CPI ter sido comunicado pelas autoridades locais sobre o risco de faltar o insumo apenas na noite de 10 de janeiro.

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O que é uma CPI?

As comissões parlamentares de inquérito (CPIs) são instrumentos usados por integrantes do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores) para investigar fato determinado de grande relevância ligado à vida econômica, social ou legal do país, de um estado ou de um município. Embora tenham poderes de Justiça e uma série de prerrogativas, comitês do tipo não podem estabelecer condenações a pessoas.



Para ser instalado no Senado Federal, uma CPI precisa do aval de, ao menos, 27 senadores; um terço dos 81 parlamentares. Na Câmara dos Deputados, também é preciso aval de ao menos uma terceira parte dos componentes (171 deputados).

Há a possibilidade de criar comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs), compostas por senadores e deputados. Nesses casos, é preciso obter assinaturas de um terço dos integrantes das duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional.

O que a CPI da COVID investiga?

Instalada pelo Senado Federal em 27 de abril de 2021, após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), a CPI da COVID trabalha para apurar possíveis falhas e omissões na atuação do governo federal no combate à pandemia do novo coronavírus. O repasse de recursos a estados e municípios também foi incluído na CPI e está na mira dos parlamentares.



O presidente do colegiado é Omar Aziz (PSD-AM). O alagoano Renan Calheiros (MDB) é o relator. O prazo inicial de trabalho são 90 dias, podendo esse período ser prorrogado por mais 90 dias.



Saiba como funciona uma CPI

Após a coleta de assinaturas, o pedido de CPI é apresentado ao presidente da respectiva casa Legislativa. O grupo é oficialmente criado após a leitura em sessão plenária do requerimento que justifica a abertura de inquérito. Os integrantes da comissão são definidos levando em consideração a proporcionalidade partidária — as legendas ou blocos parlamentares com mais representantes arrebatam mais assentos. As lideranças de cada agremiação são responsáveis por indicar os componentes.

Na primeira reunião do colegiado, os componentes elegem presidente e vice. Cabe ao presidente a tarefa de escolher o relator da CPI. O ocupante do posto é responsável por conduzir as investigações e apresentar o cronograma de trabalho. Ele precisa escrever o relatório final do inquérito, contendo as conclusões obtidas ao longo dos trabalhos. 



Em determinados casos, o texto pode ter recomendações para evitar que as ilicitudes apuradas não voltem a ocorrer, como projetos de lei. O documento deve ser encaminhado a órgãos como o Ministério Público e a Advocacia-Geral da União (AGE), na esfera federal.

Conforme as investigações avançam, o relator começa a aprimorar a linha de investigação a ser seguida. No Congresso, sub-relatores podem ser designados para agilizar o processo.

As CPIs precisam terminar em prazo pré-fixado, embora possam ser prorrogadas por mais um período, se houver aval de parte dos parlamentares

O que a CPI pode fazer?

  • chamar testemunhas para oitivas, com o compromisso de dizer a verdade
  • convocar suspeitos para prestar depoimentos (há direito ao silêncio)
  • executar prisões em caso de flagrante
  • solicitar documentos e informações a órgãos ligados à administração pública
  • convocar autoridades, como ministros de Estado — ou secretários, no caso de CPIs estaduais — para depor
  • ir a qualquer ponto do país — ou do estado, no caso de CPIs criadas por assembleias legislativas — para audiências e diligências
  • quebrar sigilos fiscais, bancários e de dados se houver fundamentação
  • solicitar a colaboração de servidores de outros poderes
  • elaborar relatório final contendo conclusões obtidas pela investigação e recomendações para evitar novas ocorrências como a apurada
  • pedir buscas e apreensões (exceto a domicílios)
  • solicitar o indiciamento de envolvidos nos casos apurados

O que a CPI não pode fazer?

Embora tenham poderes de Justiça, as CPIs não podem:

  • julgar ou punir investigados
  • autorizar grampos telefônicos
  • solicitar prisões preventivas ou outras medidas cautelares
  • declarar a indisponibilidade de bens
  • autorizar buscas e apreensões em domicílios
  • impedir que advogados de depoentes compareçam às oitivas e acessem
  • documentos relativos à CPI
  • determinar a apreensão de passaportes

A história das CPIs no Brasil

A primeira Constituição Federal a prever a possibilidade de CPI foi editada em 1934, mas dava tal prerrogativa apenas à Câmara dos Deputados. Treze anos depois, o Senado também passou a poder instaurar investigações. Em 1967, as CPMIs passaram a ser previstas.

Segundo a Câmara dos Deputados, a primeira CPI instalada pelo Legislativo federal brasileiro começou a funcionar em 1935, para investigar as condições de vida dos trabalhadores do campo e das cidades. No Senado, comitê similar foi criado em 1952, quando a preocupação era a situação da indústria de comércio e cimento.



As CPIs ganharam estofo e passaram a ser recorrentes a partir de 1988, quando nova Constituição foi redigida. O texto máximo da nação passou a atribuir poderes de Justiça a grupos investigativos formados por parlamentares.

CPIs famosas no Brasil

1975: CPI do Mobral (Senado) - investigar a atuação do sistema de alfabetização adotado pelo governo militar

1992: CPMI do Esquema PC Farias - culminou no impeachment de Fernando Collor

1993: CPI dos Anões do Orçamento (Câmara) - apurou desvios do Orçamento da União

2000: CPIs do Futebol - (Senado e Câmara, separadamente) - relações entre CBF, clubes e patrocinadores

2001: CPI do Preço do Leite (Assembleia de MG e outros Legislativos estaduais, separadamente) - apurar os valores cobrados pelo produto e as diretrizes para a formulação dos valores

2005: CPMI dos Correios - investigar denúncias de corrupção na empresa estatal

2005: CPMI do Mensalão - apurar possíveis vantagens recebidas por parlamentares para votar a favor de projetos do governo

2006: CPI dos Bingos (Câmara) - apurar o uso de casas de jogo do bicho para crimes como lavagem de dinheiro

2006: CPI dos Sanguessugas (Câmara) - apurou possível desvio de verbas destinadas à Saúde

2015: CPI da Petrobras (Senado) - apurar possível corrupção na estatal de petróleo

2015: Nova CPI do Futebol (Senado) - Investigar a CBF e o comitê organizador da Copa do Mundo de 2014

2019: CPMI das Fake News - disseminação de notícias falsas na disputa eleitoral de 2018

2019: CPI de Brumadinho (Assembleia de MG) - apurar as responsabilidades pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão