No clássico livro "As Veias Abertas da América Latina", o uruguaio Eduardo Galeano escreve que "a primeira condição para mudar a realidade consiste em conhecê-la".
E a realidade da pandemia nessa mesma América Latina não podia estar pior: a região que concentra 8% da população mundial responde por quase um quarto de todas as mortes por covid-19 registradas até agora.
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Dos 30 países com o maior número de novos casos diários confirmados por milhão de habitantes, 14 deles estão nesse pedaço do planeta: Uruguai, Colômbia, Argentina e Suriname apresentam os piores índices de momento.
A situação se repete quando analisamos a média relativa de novas mortes nos últimos sete dias: das 30 nações com os números mais graves, 14 estão localizadas na América Latina ou no Caribe.
O cenário é dos mais desoladores no Paraguai, no Peru, na Colômbia e na Argentina.
E, no meio desse caos, o Brasil se destaca: prestes a se tornar o segundo local do mundo a ultrapassar as 500 mil mortes provocadas pelo coronavírus, especialistas apontam que o país influencia direta e indiretamente o agravamento da situação nas nações vizinhas.
Mas como a América Latina chegou ao posto de epicentro da pandemia?
Situação que só piora
Desde que os primeiros casos da covid-19 foram descritos na China em janeiro de 2020, países e regiões passaram por momentos mais ou menos complicados.
O primeiro local a ser acometimento gravemente pela pandemia foi a Europa: entre março e junho de 2020, o continente foi o líder nas mortes por milhão de habitantes provocadas pela nova doença.
A partir do segundo semestre de 2020, as Américas passaram a ser o novo epicentro da pandemia.
Em algumas semanas dos meses de julho a dezembro do ano passado, a situação ficava pior no Norte, com destaque para os Estados Unidos. Em outras, o agravamento era maior no Sul, com participação decisiva do Brasil.
Esse panorama se manteve assim até março de 2021, quando a América do Sul tomou a dianteira e abriu uma vantagem considerável sobre as demais localidades
No dia 16 de junho de 2021, a nossa região contabilizava um acumulado de 2,2 mil mortes a cada milhão de habitantes.
Enquanto isso, esse número estava em 1,5 mil na América do Norte, 1,4 mil na Europa, 162 na Ásia, 101 na África e 25 na Oceania.
A partir de março de 2021, a América do Sul tomou a dianteira e virou o lugar com o maior de número de mortes por covid-19 por milhão de habitantes
E essa disparidade se acentua ainda mais quando analisamos a média diária da última semana, o que demonstra a evolução da gravidade da covid-19 num período mais recente.
Enquanto a América do Sul apresenta 9 óbitos por milhão de habitantes, esse índice está em 1,2 na Europa, 1,1 na América do Norte, 1 na Ásia, 0,26 na África e 0,01 na Oceania.
Essas informações vêm do Our World In Data (que adota o critério América do Norte X América do Sul, em vez da denominação América Latina), site que compila estatísticas globais da pandemia.
Do exemplo à frustração
Vale destacar que, em meio a tantos gráficos, curvas e números, alguns países da América Latina despontaram como exemplos positivos ao longo de 2020 e início de 2021.
Foram os casos de Paraguai, Uruguai e Argentina, que eram sempre lembrados como símbolos de boa conduta e políticas públicas bem feitas e com bons resultados.
O Chile, por sua vez, era elogiado por sua campanha de vacinação pioneira, veloz e eficiente, capaz de proteger milhões de pessoas num curto espaço de tempo.
Mas algo diferente aconteceu nos últimos dois ou três meses: esses mesmos países viram os números de novos casos e óbitos piorarem repentinamente.
Hoje, eles aparecem no grupo das nações com a situação mais preocupante da pandemia, ao lado de Brasil, Peru e Colômbia.
E nem dá pra dizer que a culpa é das estatísticas, que acabam ficando infladas pelo número elevado de habitantes nessas bandas do planeta: as análises epidemiológicas mais confiáveis fazem a ponderação matemática e levam em conta os índices proporcionais, que relativizam as taxas segundo a população.
Outro dado gritante vem das análises do Financial Times, que calculou o excesso de mortes segundo as médias históricas de cada país: os cinco primeiros do ranking são todos latinoamericanos (Peru, Equador, Nicarágua, Bolívia e México).
O Brasil aparece em sétimo lugar, atrás do Azerbaijão.
E aquele número citado no início da reportagem reforça mais uma vez essas observações: se a América Latina abarca 8% da população mundial, como que ela pode concentrar 24% de todas as mortes por covid-19?
Uma região desigual
Em novembro de 2020, a prestigiosa publicação científica The Lancet publicou um editorial que já chamava a atenção para a pandemia na América Latina.
Os autores parecem antecipar o problema que passaríamos a viver dali a alguns meses: eles classificam que a covid-19 não significou apenas um problema de saúde pública, mas uma crise humanitária para esse conjunto de países.
"Para quem está de fora, grande parte da discussão sobre a covid-19 na América Latina se concentrou no Brasil e nos erros do presidente Jair Bolsonaro", escrevem.
"Mas a região como um todo está enfrentando uma crise humanitária, nascida da instabilidade política, da corrupção, da agitação social, dos sistemas de saúde frágeis e, talvez o mais importante, da desigualdade de renda, saúde e educação duradoura e generalizada", completam.
A desigualdade é mesmo um dos fatores que parece mais ter contribuído para a atual situação: ainda de acordo com o artigo do The Lancet, 54% da força de trabalho latinoamericana é informal. Em alguns países, como o Peru, esse número ultrapassa os 70%.
Ou seja: esse contingente enorme de pessoas não possui a mínima condição de permanecer em casa por longos períodos de tempo, pois necessitam sair às ruas para garantir o sustento das próximas horas.
Isso ajuda a explicar em parte os momentos contrastantes das nações bem e mal sucedidas no controle do coronavírus: Argentina, Paraguai e Uruguai até conseguiram criar políticas públicas para controlar a circulação de pessoas, mas isso só foi possível por um período de tempo muito curto.
"Após a quarentena, a flexibilização ocorreu de forma indiscriminada, sem qualquer planejamento, controle epidemiológico ou testagem em massa", observa o médico José David Urbaez, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia no Distrito Federal.
"As lideranças da América Latina não entenderam que o foco deveria ser nas medidas que não permitem o alastramento do vírus, para que a transmissão não atinja níveis dramáticos", critica.
A bioquímica e imunologista Marcela Gatica, da Universidade de La Serena, no Chile, detalha como esse fenômeno de fechar e abrir as atividades repercutiu na prática:
"Aqui no Chile a disparidade socioeconômica é gritante. Há uma parcela da população que precisa trabalhar para conseguir comer", contextualiza.
"Nas regiões metropolitanas, esses indivíduos pegam transporte público apertado para se locomover e costumam dividir a casa com muitos moradores. Tudo isso contribui para a disseminação do vírus", completa.
Até o final de 2020, estima-se que 231 milhões de latino-americanos viviam na pobreza, um nível que só havia sido observado há 15 anos.
Para completar, esse pedaço do continente americano é marcado por uma instabilidade política muito intensa: no último ano, foram registrados protestos massivos na Colômbia, no Peru e no Brasil.
Equador, Peru e Bolívia registraram eleições presidenciais muito tensas e disputadas, enquanto o Chile se viu diante de um plebiscito para mudar a constituição após movimentos sociais tomarem as ruas em 2019.
Isso tudo, claro, se reflete no enfrentamento da pandemia: em meio a tantas tormentas, as políticas sanitárias muitas vezes ficaram em segundo plano ou variaram de acordo com preferências políticas e pressões de grupos com interesses variados.
Serviços de saúde precários
Um segundo ingrediente que não pode ser ignorado é a falta de sistemas públicos de saúde bem estruturados: com exceção de Brasil e Costa Rica, os moradores dos outros países latino-americanos têm acesso limitadíssimo a consultas, exames, hospitais e serviços de acompanhamento e prevenção.
"Sem cobertura universal de saúde, é impossível lidar com a pandemia", afirmam os autores do artigo publicado no The Lancet.
As mesmas falhas se repetem nos sistemas de vigilância epidemiológica e genômica: a América Latina é um dos lugares que menos faz testes para o diagnóstico da covid-19.
Em alguns países, o índice de positividade dos exames que detectam o coronavírus beira os 50% — a Organização Mundial da Saúde calcula que uma taxa abaixo de 5% indica um bom controle da pandemia.
A ausência das tais políticas públicas de saúde se reflete nos próprios indicadores da região: em países como Chile e México, 75% das mulheres apresentam excesso de peso.
Os índices de sobrepeso, obesidade e diabetes também só aumentam em toda a América Latina: a disponibilidade de alimentos altamente calóricos e ricos em açúcar, sal ou gordura por preços baixos facilita e estimula o consumo, especialmente entre os mais pobres.
Tudo isso vai desembocar no cenário que vivemos hoje: falamos de países em que uma enorme parcela da população apresenta fatores de risco para o agravamento da covid-19 e não há a estrutura mínima necessária para o diagnóstico, o acompanhamento e o atendimento adequado de tantos pacientes.
E esse cenário interno se reflete na condução e no enfrentamento de problemas de forma coletiva: ao contrário do que acontece em outros continentes, a América Latina não possui instituições regionais capazes de lançar diretrizes, criar políticas públicas ou fazer estudos de forma coordenada entre as várias nações.
Até a África, que apresenta uma situação sócio-econômica parecida com a nossa, tem o Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças, um órgão com capacidade de aglutinar esforços e produzir uma resposta unificada entre vários países.
A influência brasileira
Como maior economia da região, é claro que o Brasil exerce um papel decisivo sobre o que acontece de positivo ou de negativo na América Latina.
Durante a pandemia, essa atuação ficou bastante evidente: especialistas avaliam que nosso país teve influência direta e indireta sobre o agravamento da covid-19 em nossos vizinhos.
"Historicamente, o Brasil contou com personalidades da força de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Emílio Ribas, que construíram uma das escolas de doenças infecciosas mais prestigiosas do mundo. Nós também tínhamos modelos de controle virais modernos e reconhecidos internacionalmente, que funcionavam em sintonia com um Sistema Único de Saúde imenso", explica Urbaez.
"Na América Latina, sempre fomos referência para certificar e validar práticas sanitárias e de saúde pública. E é inacreditável ver todo esse saber e esse papel simbólico ser trucidado agora", complementa.
Além da influência indireta, o Brasil também contribui claramente para que a situação se agravasse além de suas fronteiras: a variante Gama, que parece ter se desenvolvido em Manaus a partir de novembro e dezembro de 2020, cruzou as fronteiras com uma facilidade impressionante.
"O que aconteceu na América Latina nos últimos meses tem uma relação clara com o ingresso e a circulação da variante Gama a partir do Brasil", indica o médico Tomás Orduna, chefe do Serviço de Medicina Tropical e do Viajante do Hospital de Doenças Infecciosas F. J. Muñiz de Buenos Aires, na Argentina.
O virologista Fernando Spilki, da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, tem acompanhado como a variante Gama "viajou" Brasil afora.
"Os estudos demonstram que ela chegou a lugares como a Argentina e se tornou majoritária em toda a América do Sul", destaca.
Spilki e Orduna lembram que a cepa que surgiu no Brasil não é a única a preocupar os cientistas latino-americanos: a variante Lambda, que veio do Peru, apresenta algumas características que facilitam a sua transmissão.
"Ela chegou a representar mais de 80% dos casos de covid-19 no Peru e foi introduzida na Argentina a partir da Bolívia, onde também já apresenta um crescimento importante", resume Spilki, que também coordena a Rede Corona-Ômica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.
E tanto a Gama quanto a Lambda revelam mais uma das fragilidades latino-americanas: a falta de controle em aeroportos, portos e demais postos aduaneiros.
"Nossas fronteiras possuem muitos poros, o que traz dificuldades quando estamos em pandemias", diz Orduna.
"O melhor que poderíamos fazer é criar mecanismos de contenção inicial, para inibir o ingresso abrupto e intenso dos vírus ou das novas variantes. Mas nem esse controle seria capaz de evitar totalmente a entrada de indivíduos infectados", raciocina o especialista argentino.
O que fazer agora?
Diante de números tão ruins, a melhora da situação na América Latina passa invariavelmente por duas ações prioritárias: políticas ajustadas de restrição da mobilidade (o popular lockdown) e a aceleração das campanhas de imunização contra a covid-19.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que, no atual estágio, não é possível focar em apenas uma dessas coisas.
E o exemplo prático disso é o Chile: o país começou a vacinação cedo e já conseguiu proteger quase metade de toda a população.
Mesmo assim, os números de casos e mortes voltaram a subir por lá nos últimos tempos.
Gatica entende que o avanço na aplicação de doses gerou uma falsa sensação de segurança entre os chilenos.
"As pessoas interpretaram a vacina como um passe de liberdade e entenderam que elas não precisavam mais se cuidar tanto", pensa.
"Faltou uma comunicação mais adequada para a população. Era necessário explicar melhor a razão das medidas, como o vírus se transmite, como as pessoas deveriam se comportar…", lista.
Urbaez concorda: "A vacina é uma forma de controlar a pandemia no médio prazo. Só vamos conseguir melhorar as coisas mesmo quando tivermos uma porcentagem grande da população imunizada", antevê.
Até que isso aconteça de verdade, seria necessário manter o máximo de pessoas em casa, com o auxílio social e financeiro tão importante num momento como esse.
A restrição aliviaria os sistemas de saúde, que sofrem com a alta ocupação de leitos de enfermaria e terapia intensiva, e controlaria melhor as cadeias de transmissão, fazendo com que o vírus circule menos pela comunidade.
Há também a urgência de fortalecer ou criar instituições capazes de pensar na saúde pública da região como um todo, avaliam os especialistas.
"Não podemos sempre correr atrás do prejuízo e apagar os incêndios que aparecem pela frente", opina Urbaez.
"Ações coordenadas e centralizadas permitiriam controlar a pandemia de uma forma muito mais rápida", aponta o infectologista.
Numa perspectiva mais ampla, a pandemia de covid-19 pode mostrar que a América Latina precisa atacar seus problemas estruturais mais urgentes e diminuir a desigualdade social e a pobreza.
Só assim deixaremos de ser "a região das veias abertas", como escreveu o uruguaio Eduardo Galeano.
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