Em 2018, as psicólogas Isabelle Roskam e Moïra Mikolajczak, da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, começaram o maior estudo global já feito sobre um tema das quais são pioneiras em pesquisar — o parental burnout, ou "burnout parental", um adoecimento decorrente dos desafios de ser mãe ou pai.
Três anos depois, o estudo envolvendo mais de 17 mil pais em 42 países foi publicado em um período em que o mundo todo se tornou um verdadeiro laboratório da vida real sobre o burnout parental. Isolando milhões de crianças, adultos e idosos em suas casas, a pandemia de coronavírus de repente tirou boa parte do suporte que mães e pais têm para criar seus filhos.
Leia Mais
Ser pai em meio à pandemia: um turbilhão de emoçõesMulheres se desdobram no papel de mãe em tempos de isolamentoFamília em quarentena: é preciso viver um dia de cada vezAutoridades desmentem relato de mulher que disse ter dado à luz 10 bebêsVacina da Janssen: como será distribuído o lote que acaba de chegar ao Brasil"Na pandemia, o problema é que a balança de muitos pais ficou desequilibrada, com mais estresse: você não tinha as escolas (presenciais), mas também em alguns casos precisou fazer trabalho remoto; não pôde mais ter a ajuda dos avós em algum dia da semana; não teve mais atividades de lazer e extracurriculares que ajudavam a dar conta da criança", diz a pesquisadora, mãe de cinco filhos e professora de psicologia na Universidade de Louvain, em entrevista à BBC News Brasil por teleconferência.
Ela argumenta que já há evidências de que o burnout parental aumentou na pandemia, inclusive em uma nova rodada de pesquisa que ela e colegas realizaram pelo mundo e cujos resultados devem ser publicados nos próximos meses.
No estudo global envolvendo 42 países, publicado em março na revista científica Affective Science, Roskam e Mikolajczak coordenaram cerca de 100 cientistas pelo mundo — incluindo o Brasil, com participação das pesquisadoras Elizabeth Barham (UFSCar), Luciana Carla dos Santos Elias (USP) e Vanessa Romera (UERJ).
Usando índices sobre valores culturais — por exemplo, se um país é mais ou menos machista, ou permissivo ao ócio e ao lazer —, as autoras concluíram que países com culturas individualistas são mais propensos a levarem ao burnout de mães e pais. O individualismo se mostrou mais prejudicial do que desigualdades entre países ou o número e a idade de crianças em uma família.
Por isso, segundo a pesquisa, países ocidentais apresentaram a maior prevalência deste burnout no mundo. No topo do ranking, apareceram Estados Unidos, Bélgica e Polônia (acima de 7%). O Brasil aparece com prevalência de 1,3% — mas Roskam reconhece que, internamente em um país, pode haver muitas particularidades e a variações por trás deste valor nacional.
Com a colega Moïra Mikolajczak, Roskam fundou um centro de pesquisa e um instituto de treinamento sobre o burnout parental, além de ter publicado livros sobre o tema (nos títulos originais, sem tradução e versão em português: Le Burn-out parental: L'éviter et s'en sortir e Comment traiter le burn-out parental - Manuel d'intervention clinique).
Confira os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil.
BBC News Brasil - Escolas fechadas parecem ter sido um dos principais problemas para pais durante a pandemia. A falta que elas estão fazendo mostra que as escolas se tornaram muito importantes, talvez até demais, na gestão do tempo e do cuidado das crianças na vida moderna?
Isabelle Roskam - As escolas fechadas foram um grande problema, mas para mim, o problema foi mais geral. Se sentir realizado como uma mãe ou pai significa que você tem menos fatores estressantes do que recursos para encará-los. Quando você está realizado no seu papel parental, é porque você tem alegrias e prazer com suas crianças, e muito mais recursos do que fatores estressantes.
Na pandemia, o problema é que a balança de muitos pais ficou desequilibrada, com mais estresse: você não tinha as escolas (presenciais), mas também em alguns casos precisou fazer trabalho remoto; não pôde mais ter a ajuda dos avós em algum dia da semana; não teve mais atividades de lazer e extracurriculares que ajudavam a dar conta da criança.
Foi preciso gerir o tempo dos filhos todos os dias, todas as semanas; ser mãe ou pai, mas também um trabalhador e um professor.
Há também os casos de famílias com questões particulares, por exemplo uma criança com necessidades especiais. Normalmente, há instituições, serviços que ajudam a lidar com uma criança com hiperatividade ou autismo, por exemplo, mas na pandemia as soluções sumiram.
Então sim, para muitos pais, foi uma fase muito difícil — e acho que isso explica por que observamos em tantos países um aumento na violência dentro das famílias. Não só entre os casais, mas entre pais e filhos, e filhos contra os pais.
BBC News Brasil - Pelo que li, a violência é um sintoma do burnout parental, certo?
Roskam - É uma consequência, não um sintoma.
Uma das explicações é que, quando você está passando por esse esgotamento, você fica com um alto nível de cortisona (um hormônio) no corpo. É possível verificar isso através da cortisona detectada nos fios de cabelo. Vemos que pais com burnout chegam a ter cortisona duas vezes mais alta do que aqueles que se sentem bem neste papel.
Uma das consequências do alto nível da cortisona são os problemas somáticos. Por exemplo, se você já tem problemas de digestão, ou dor de cabeça, quando a cortisona está alta, a probabilidade é que estes problemas piorem.
A cortisona também aumenta a irritabilidade — então uma vez que você é confrontado com uma situação estressante, terá uma reação muito grande ou inapropriada. Uma vez que as crianças são a fonte do estresse no burnout parental, uma consequência é os pais se tornarem violentos contra elas.
BBC News Brasil - Já há evidências de que o burnout parental cresceu na pandemia?
Roskam - Sim. Havíamos coletado dados em 42 países antes da pandemia, então tínhamos uma boa ideia da prevalência do burnout parental em muitos países. Durante a pandemia, coletamos novos dados em 22 países, então pudemos observar algumas mudanças.
Observamos algo interessante. Em Burundi houve o maior aumento do burnout nesse período, e o que eu e colegas temos discutido é que esse país tem uma cultura muito coletiva. Então foi muito difícil para as famílias ficarem sozinhas com suas crianças em casa, sem a comunidade ajudando na criação dos filhos.
BBC News Brasil - Existe uma diferença entre estresse e burnout, certo?
Roskam - O burnout é um adoecimento pelo estresse.
O estresse é normal no papel de ser mãe ou pai. Ele é necessário para que estejamos prontos para agir. Quando seu filho está em perigo, ou há alguma emergência, é preciso estar preparado para protegê-lo, mas o estresse nunca se tornará um burnout se for compensado pelos recursos.
BBC News Brasil - Já escutei muitos relatos de pais expressando culpa por, neste período, terem deixado as crianças usarem mais celulares, tablets… Os pais ainda devem ficar de olho no controle do uso de telas? E como os aconselharia para lidar com essa culpa?
Roskam - No primeiro lockdown, lançamos um guia para que os pais controlassem os fatores estressantes, porque vimos que a violência estava aumentando e etc. Queríamos ajudar a diminuir a pressão sobre eles. E uma forma de fazer isso é dizendo: "Este é um período muito muito difícil para todo mundo, e simplesmente não é a hora para ser uma mãe ou um pai perfeito, uma supermãe ou um superpai. Por favor, esteja seguro de que você está sendo bom o suficiente como mãe ou um pai."
Isso significa aceitar que, nesta situação muito difícil, as crianças talvez vão usar mais as telas do que o normal. Os pais podem aceitar que, ok, as telas não são uma solução em uma situação normal — mas no lockdown, é importante abaixar padrões para você e para seus filhos.
Também tem sido um período muito desafiador para estes. Para os adolescentes, por exemplo, os celulares foram a única forma de manter contato com os amigos. É muito importante para a vida social deles.
BBC News Brasil - Apesar do aumento do estresse para muitas famílias durante a pandemia, para aquelas que têm essa opção e condições, o home office pode finalmente ter representado uma possibilidade de melhor conciliação entre trabalho e criação dos filhos?
Roskam - Sim, nossos dados da Bélgica mostram que esse período foi um pesadelo para muitos, mas também uma ótima oportunidade para outros. Alguns passavam, antes da pandemia, horas no carro indo ao trabalho, conseguindo apenas 2 a 3 horas com os filhos por dia. Alguns nunca conseguiam fazer refeições com os filhos.
Então, para alguns pais, o lockdown foi uma oportunidade de perceber que eles não querem voltar àquele ritmo de vida. Sua qualidade de vida aumentou muito e eles não querem voltar à situação anterior à pandemia.
Alguns fizeram planos para mudar definitivamente para o modelo remoto de trabalho, outros passaram a diminuir o número de atividades extracurriculares que os filhos fazem.
BBC News Brasil - Quais condições, quais fatores de risco podem explicar esta diferença — a pandemia sendo um pesadelo ou uma nova oportunidade?
Roskam - Primeiro, pensamos que pudesse ser algo relacionado a fatores sociodemográficos. Porque, você sabe, ter um jardim é importante, mas na pandemia, talvez se torne muito mais importante. Ou poderia ter a ver com o número de filhos — não é a mesma coisa estar em lockdown com uma criança ou com cinco, que é a minha situação.
Testamos essas hipóteses dos fatores sociodemográficos ou contextuais, e descobrimos que nenhum deles explicava por que para alguns o período foi um pesadelo, e para outros uma oportunidade.
Descobrimos que o principal fator para explicar essa diferença pode ser o que chamamos na psicologia de appraisals (avaliação cognitiva). Trata-se de como uma pessoa vai tratar cognitivamente uma informação. Você apreende cognitivamente a pandemia e o lockdown como uma ameaça para você e seus filhos, ou como uma oportunidade para ganhar mudanças positivas?
Ou seja, os fatores objetivos não se mostraram tão prevalentes, mas sim a forma com que os pais trataram a informação da pandemia. Isso é interessante porque significa que não existe uma população específica em risco. É uma boa notícia para nós porque, se fosse por conta de fatores sociodemográficos… Eu não posso mudar o fato de você ter cinco filhos e nenhum jardim. Mas se for uma questão de avaliação cognitiva, talvez como psicóloga eu consiga te ajudar a ver a situação de outra forma.
BBC News Brasil - Mas fatores objetivos também podem ser importantes, certo? Digo isso não necessariamente sobre o contexto de pandemia. Imagino que ser uma mulher, uma mãe, seja um fator de risco para o burnout parental. Estou certa em pensar isso?
Roskam - Sim e não… O mais importante é ter em mente que o burnout não acontece por conta de um fator. Como na balança, não há um fator de estresse e um recurso. Dependendo da pessoa, o fator de risco pode ser ser mãe solo, viver em condições precárias, ou ter muitos filhos…
Para outros, pode ser um alto nível de perfeccionismo, a discordância com o parceiro sobre valores na educação, ter um filho com necessidades especiais.
Ou ainda ter uma história pessoal difícil com seus próprios pais, ou ter um comportamento inconsistente com os filhos — um dia você diz sim, outro diz não...
Os fatores de risco podem ser muito diferentes, mas o modelo é o mesmo: um desequilíbrio entre fatores de estresse e recursos.
Sendo assim, ser mulher pode ser um tipo de fator de risco, mas o burnout parental também ocorre com homens. Para um pai que é envolvido (na criação dos filhos) na mesma medida que a mulher, a chance de entrar em burnout é exatamente a mesma. Não é uma questão de gênero, é uma questão de envolvimento na criação dos filhos.
Evidentemente, se você é um pai que só trabalha, que não está envolvido na vida do seu filho, você não tem chances de estar em burnout porque não está em contato com os fatores estressantes.
O risco de entrar em burnout é na prática maior para as mães porque elas estão muito mais envolvidas no cuidado dos filhos.
BBC News Brasil - Sei que é controverso na sua área categorizar distúrbios mentais e doenças em compêndios como a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). Entretanto, uma classificação do tipo seria algo desejável para o burnout parental?
Roskam - Acho que seria importante por alguns motivos.
O primeiro é que, com nossa pesquisa, mostramos evidências de que o burnout é diferente da depressão, por exemplo. É importante fazer um bom diagnóstico para fornecer um bom tratamento. Se você pensa que um burnout parental é depressão, você nunca vai buscar prevenir a negligência ou o comportamento violento — porque essas consequências não são altamente relacionadas à depressão.
E o burnout parental não exige o tratamento medicamentoso que a depressão pode exigir. O burnout parental, como o burnout por trabalho, é um problema contextual — trata-se de uma esfera da vida do indivíduo.
Mas uma classificação dessas pode custar muito tempo. A pesquisa sobre o burnout por trabalho, por exemplo, começou nos anos 70, mas ele não é reconhecido em todos os sistemas de classificação. Então não sei o quanto tempo precisaremos para o reconhecimento do burnout parental.
Nos aproximamos disso com nossas atividades de pesquisa, com a relação que temos com a Associação Americana de Psicologia, entre outros.
BBC News Brasil - Apesar de o estudo global que você conduziu ter mostrado que o dinheiro pode não ser tão determinante para o burnout parental como os valores culturais, ter tempo e dinheiro me parece ser muito importante para tratar este esgotamento — com atendimentos psicológicos, por exemplo.
Roskam - Acho que não ter problemas financeiros é sempre melhor do que ter uma baixa renda, claro. Se você tem renda suficiente, as soluções são mais numerosas. Então eu sei que adversidades econômicas são sempre um problema, um fator de risco entre outros.
Mas também trabalhamos com famílias em situação precária e percebo que há soluções que não exigem dinheiro. Acredito que podemos adaptar os tratamentos à realidade financeira dos pais.
Um dos sintomas do burnout parental é não ter qualquer prazer em estar com os filhos. No tratamento, tentamos ajustar isso, fazer com que os pais tenham prazer com as crianças. O mais importante não é fazer atividades de lazer maravilhosas. Não. É simplesmente ter momentos bons, especiais com a criança. Pode simplesmente caminhar com ela, ou ver um bom programa de TV.
BBC News Brasil - Mesmo que um país como o Brasil apresente uma prevalência baixa de burnout parental, como mostrou o estudo global, é possível que este número esconda nuances internas, como variações por classe social?
Roskam - A situação pode ser diferente de um país para outro, e dentro do país também, claro. O que acontece na vida das famílias pode ser bem diferente, e como psicóloga é preciso adaptar o tratamento para a realidade daquela situação.
BBC News Brasil - Há novas tendências que te dão esperança nessa busca em tornar o papel de ser mãe ou pai mais harmonioso? Vêm a minha cabeça exemplos como o coparenting (quando pais de diferentes famílias, por exemplo amigos, se juntam para fazer rodízios no cuidado das crianças) e até mesmo o home office.
Roskam - Uma coisa que aprendemos no nosso estudo global é que uma das consequências do individualismo é que ele isola os pais. Porque segundo esta cultura, você tem que ser autosuficiente, pedir ajuda seria como admitir que não é capaz de criar os filhos. Em contraste, em alguns países africanos, diz-se que é preciso um vilarejo inteiro para criar crianças.
Então algo que tiramos desta pesquisa internacional é que precisamos reconstruir as comunidades — o que consideramos criar os filhos em uma dimensão maior, indo além da mãe e do pai, incluindo também os amigos, a família em graus mais distantes, e assim em diante.
Acredito que uma forma de evitar o burnout parental é confiando na comunidade dos pais. Então sim, acho que precisamos ir em direção a uma criação de filhos muito mais comunitária.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!