Jornal Estado de Minas

CPI da Covid: 'Tem muita gente de cima pressionando', diz servidor do Ministério da Saúde sobre liberação de compra da Covaxin

Em depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, o servidor Luis Ricardo Miranda, chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde, afirmou que foi pressionado por superiores da pasta para acelerar o processo de importação da vacina Covaxin.



A suspeita de compra superfaturada de 20 milhões de doses da vacina Covaxin pelo governo federal se tornou nesta semana o principal assunto a ser investigado pela CPI da Covid. O presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), disse que a denúncia é a mais grave recebida pelos senadores.

O depoimento, que ainda não terminou, foi marcado por acaloradas discussões entre membros da CPI, da oposição e senadores da base do governo. Parlamentares governistas, como Marcos Rogério e Fernando Bezerra, interromperam o servidor diversas vezes, afirmando que as acusações eram falsas.

Já Miranda, que é servidor concursado do ministério desde 2011, afirmou que se sentiu pressionado por superiores, em ligações fora do horário de expediente e em mensagens de textos.

"Recebi diversos contatos, ligações, chamadas no gabinete, sobre o status desse contrato. Foi uma pressão atípica e excessiva", disse Miranda. Em um áudio enviado a seu irmão, o deputado Luis Miranda (DEM-DF), o servidor afirmou: "Tem muita gente de cima pressionando".



Ele citou três superiores que o teriam pressionado: Alex Lial Marinho, ex-coordenador-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos para Saúde do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, diretor do Departamento de Logística em Saúde da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, e o coronel Marcelo Bento Pires, ex-assessor do mistério.

"Eles eram os meus superiores", afirmou.

Segundo o servidor, outros membros de sua equipe também estranharam as cobranças de superiores hierárquicos e divergências entre o contrato que seria assinado pelo ministério e informações enviadas pela empresa em um documento chamado invoice (ou fatura).

"Todos da equipe estavam inseguros pela falta de informação. Houve pressão para aprovar o que estava fora do contrato. Ficamos com o pé atrás", disse.

Miranda citou falhas que chamaram atenção da equipe sobre a possível importação da Covaxin:

1) no contrato, o pagamento pelas vacinas seria feito à empresa Precisa Medicamentos, representante brasileira da indiana Bharat Biotech, fabricante da vacina. Porém, na fatura inicial enviada à equipe do ministério constava que o pagamento pelas vacinas seria feito a uma terceira companhia, a Madison, localizada em um paraíso fiscal em Cingapura;

2) A empresa Precisa Medicamentos tinha em seu quadro societário as mesmas pessoas de outra empresa, a Global Medicamentos, anteriormente acusada de fraude por não ter entregue medicamentos que haviam sido comprados pelo governo federal;

3) No total, seriam pagos U$ 45 milhões por 3 milhões de doses da vacina Covaxin, o que superava o valor de U$ 15 (R$ 80,70), como estava indicado em documento enviado ao ministério;

4) A vacina Covaxin não tinha autorização da Anvisa para ser aplicada nem Certificado de Boas Práticas, dado pela agência sanitária;

5) O pagamento seria feito de maneira antecipada, incluindo o frete, antes de entregar qualquer dose da vacina;

6) a vacina tinha prazo de validade exíguo, de apenas seis meses, o que poderia colocar em risco a aplicação do imunizante no país.



O contrato com a Precisa foi assinado em 25 de fevereiro, após autorização de uma servidora do ministério, responsável por fiscalizar o contrato.

Até agora, o Brasil não recebeu nenhuma dose de Covaxin. O governo Bolsonaro alega que nenhum recurso público foi pago à empresa.

Procurada pela BBC News Brasil, a Precisa Medicamentos enviou uma nota dizendo que a dose "vendida para o governo brasileiro tem o mesmo preço praticado a outros 13 países que também já adotaram a Covaxin".

Encontro com o presidente

Segundo o servidor, ao receber "pressão incomum" pela aprovação da importação, ele procurou seu irmão, o deputado federal Luis Miranda, para alertá-lo sobre os problemas.

Alinhado ao governo, o deputado conseguiu um encontro com o presidente Jair Bolsonaro, no dia 19 de março. Os irmãos teriam contato a Bolsonaro sobre os indícios de fraude. "O presidente olhou no meu olho e disse: 'isso é muito grave", disse o parlamentar à CPI.



Segundo ele, o presidente afirmou que sabia que um deputado da base do governo estava envolvido no caso e que levaria a denúncia ao delegado-geral da Polícia Federal, o que não foi feito. Questionado sobre quem seria esse parlamentar, Luis Miranda disse que não se lembrava do nome. Pressionado várias vezes pelos senadores, o deputado insistiu não sem lembrar do nome.

Segundo ele, ao saber da denúncia, Bolsonaro respondeu: "Se eu mexo nisso aí, você sabe a merda que vai dar. Isso deve ser coisa de 'fulano'. Puta merda."

O deputado afirmou, ainda, que enviou várias mensagens a assessores do presidente tentando novo encontro para tratar das suspeitas, mas não teve sucesso.

Para o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), o presidente prevaricou (não cumpriu com seu dever) ao não pedir investigação sobre o caso. "O presidente não mandou investigar absolutamente nada", afirmou. "Para quem joga pedra em todos, ele prevaricou. Prevaricou", disse.



Propina

Durante a sessão, o deputado Luis Miranda também mostrou um diálogo que teve com o irmão em 20 de março, a respeito de um suposto pedido de propina para aprovação de vacinas.

Na ocasião, o servidor afirmou ao irmão: "Aquele rapaz que me procurou dizendo que tem vacina. Disse que não assinaram porque os caras cobraram dele propinas para assinar o contrato. Vou perguntar se ele tem provas."

Os senadores questionaram quem é esse servidor que citou propinas. O servidor afirmou que ele se chama Rodrigo.

O que se sabe sobre as suspeitas de irregularidade na compra da Covaxin?

Segundo uma reportagem do jornal Estado de S. Paulo, a CPI obteve telegrama sigiloso enviado em agosto ao Itamaraty pela embaixada brasileira em Nova Délhi informando que o imunizante produzido pela Bharat Biotech tinha o preço estimado em US$ 1,34 por dose.

Em fevereiro, porém, o Ministério da Saúde concordou em pagar US$ 15 por unidade (R$ 80,70 na cotação da época), o que fez da Covaxin a mais cara das seis vacinas compradas até agora pelo Brasil. Na ocasião, o ministro da Saúde ainda era o general Eduardo Pazuello.



A compra não foi finalizada porque o escândalo estourou, mas o governo já havia feito reserva de R$ 1,6 bilhão para o pagamento.

O valor final aceito pelo governo chama atenção também porque Pazuello afirmou à CPI que um dos motivos para sua gestão recusar a oferta de 70 milhões de doses da americana Pfizer no ano passado seria o preço alto do imunizante. A vacina, porém, foi oferecida ao Brasil por US$ 10, metade do preço cobrado pela farmacêutica aos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido.

Outra razão apresentada por Pazuello para rejeitar a oferta da Pfizer em 2020 foi o fato de a vacina, naquele momento, ainda não ter a aprovação da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa). No entanto, o contrato da Covaxin foi firmado sem essa aprovação prévia. Apenas no início de junho a importação foi autorizada, com algumas restrições.

O MPF está investigando se houve irregularidades no contrato com a Precisa Medicamentos, que intermediou o negócio com a empresa indiana.

Luis Ricardo Miranda apontou como um dos responsáveis pela pressão incomum que teria recebido para aprovar a compra o tenente-coronel Alex Lial Marinho, ex-coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde na gestão Pazuello.



Alex Lial Marinho teve quebra de sigilo pedida pela CPI da Covid e também foi convocado a depor.

Em nota enviada à BBC News Brasil, a Bharat Biotech, fabricante da Covaxin, diz que as doses do imunizante são vendidas ao exterior a valores que variam de US$ 15 a US$ 20.

A Covaxin também é alvo de desconfiança na própria Índia.