*Reportagem publicada originalmente em 25 de junho de 2021 e atualizada em 13 de julho de 2021
A Polícia Federal abriu um inquérito, na última segunda-feira (12/7), para apurar se o presidente Jair Bolsonaro cometeu ou não crime de prevaricação no processo bilionário de compra - agora suspenso - da vacina indiana Covaxin.
A abertura de inquérito ocorre após o deputado federal Luís Claudio Miranda (DEM-DF) afirmar, em depoimento à CPI da Covid em 26 de junho, ter informado Bolsonaro em março sobre um suposto esquema ilegal em torno da compra pelo Ministério da Saúde.
Em entrevista a jornalistas, porém, Bolsonaro afirmou que "o que eu entendo é que prevaricação se aplica a servidor público e não se aplicaria a mim. Mas qualquer denúncia de corrupção eu tomo providência". Ele alegou ter levado a questão ao então ministro Eduardo Pazuello, que teria providenciado correções no contrato da Covaxin.
O argumento de Bolsonaro, porém, não se sustenta: como presidente da República, ele segue sendo considerado um agente público.
"Ele é o principal servidor público do Brasil, e não CEO de empresa", afirmou pelo Twitter o senador oposicionista Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI.
Segundo Miranda, durante a reunião, Bolsonaro disse que sabia que um deputado da base do governo estava envolvido no caso e que levaria a denúncia ao delegado-geral da Polícia Federal, o que não foi feito.
Questionado pela CPI da Covid, no Senado, sobre quem seria esse deputado, Miranda disse que Bolsonaro se referia ao líder do governo no Congresso, o deputado Ricardo Barros (PP-PR).
Diante dessas informações, a cúpula da CPI informou que pretende levar ao Supremo Tribunal Federal (STF) os índícios colhidos pela comissão de que Bolsonaro cometeu crime de prevaricação.
Para o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), o presidente prevaricou ao não pedir investigação sobre o caso. "O presidente não mandou investigar absolutamente nada", afirmou, durante o depoimento de Miranda. "Para quem joga pedra em todos, ele prevaricou. Prevaricou", disse.
Em nota publicada nas redes sociais, Barros afirmou à época que não participou "de nenhuma negociação em relação à compra das vacinas Covaxin."
Mas afinal, o que é prevaricação?
Segundo o Código Penal brasileiro, o crime de prevaricação ocorre quando um funcionário público "retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal".
Nesse caso específico, seria uma suposta não comunicação de uma eventual irregularidade para outras autoridades investigarem. O Código Penal prevê pena de três meses a um ano de prisão e multa.
Articuladores de um "megapedido" de impeachment contra Bolsonaro, já apresentado à Câmara, incluiu as denúncias dos irmãos Miranda entre acusações de crime de responsabilidade que o presidente teria cometido.
O relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), disse ainda em junho que a comissão agora investiga se houve desvio de dinheiro e beneficiamento pessoal na compra da vacina indiana.
"Essa negociação da Covaxin é completamente eivada de irregularidade e de fraude, em todos os sentidos. Primeiro, a vacina com o menor tempo de validade e o maior preço. Segundo, a única aquisição que tinha um atravessador - a Precisa. Terceiro, esse atravessador pediu adiantamento e indicou para receber uma outra empresa constituída em paraíso fiscal, para claramente burlar o controle e a fiscalização. Então, com a vinda dos irmãos Miranda, nós possibilitamos esse grande dia", afirmou.
PF disse não ter investigação aberta sobre denúncia
Em 24/06, o jornal Folha de S.Paulo divulgou que a Polícia Federal não havia identificado nenhuma investigação sobre supostas irregularidades na aquisição de doses da vacina Covaxin por R$ 1,6 bilhão.
Em 23/06, o ministro Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral da Presidência) não citou nenhuma apuração sobre a denúncia que Miranda diz ter feito ao presidente da República. Além disso, afirmou que as provas apresentadas pelos irmãos Miranda eram fraudulentas e que ambos deveriam ser investigados sob suspeita de denunciação caluniosa.
"Por que um servidor que identifica um possível erro, uma fraude, não leva ao seu superior hierárquico? É dever dele. Aí está a prevaricação", questionou o ministro, acusando o servidor Luís Ricardo Miranda, irmão do deputado, de demorar a apresentar sua denúncia, já que a compra das doses foi firmada em fevereiro.
No dia seguinte, Onyx passou a divulgar, por meio de aliados na CPI da Covid, que o presidente havia repassado a denúncia dos irmãos Miranda para o então ministro Eduardo Pazuello (Saúde) apurar. Este, segundo Onyx, não identificou nenhuma irregularidade e as negociações prosseguiram.
Segundo o deputado Luís Claudio Miranda, a denúncia foi levada diretamente ao presidente porque seu irmão disse não confiar em ninguém no ministério para apresentar suspeitas de irregularidade dentro da pasta.
As negociações para a compra da Covaxin estão sendo investigadas também pelo Ministério Público Federal. Em depoimento ao órgão, o servidor afirmou ter sofrido "pressão atípica" para agilizar a importação do imunizante e que se recusou a assinar um documento que garantiria o pagamento de US$ 45 milhões antes da entrega das doses, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, que teve acesso ao depoimento sigiloso.
A aquisição da Covaxin envolveu uma empresa intermediária (Precisa Medicamentos) entre o Ministério da Saúde e a fabricante estrangeira. Além disso, um dos sócios da Precisa é investigado por meio de outra empresa sob suspeita de ter recebido R$ 20 milhões do Ministério da Saúde e não ter entregado os medicamentos pagos.
O caso levou o então ministro da Saúde e hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), a responder a um processo sob acusação de improbidade administrativa.
Mas quais são os indícios contra Bolsonaro que os senadores da CPI da Covid pretendem levar ao STF?
Três suspeitas ligadas à compra da Covaxin
1. Preço elevado e falta de aprovação
Segundo a reportagem do jornal Estado de S. Paulo, a CPI obteve telegrama sigiloso enviado em agosto ao Itamaraty pela embaixada brasileira em Nova Délhi informando que o imunizante produzido pela Bharat Biotech tinha o preço estimado em US$ 1,34 por dose.
Em fevereiro, porém, o Ministério da Saúde concordou em pagar US$ 15 por unidade (R$ 80,70 na cotação da época), o que fez da Covaxin a mais cara das seis vacinas compradas até agora pelo Brasil. Na ocasião, o ministro da Saúde ainda era o general Eduardo Pazuello.
Em nota enviada à BBC News Brasil, a Bharat Biotech, fabricante da Covaxin, diz que as doses do imunizante são vendidas ao exterior a valores que variam de US$ 15 a US$ 20.
O valor final aceito pelo governo brasileiro chama atenção também porque Pazuello afirmou à CPI que um dos motivos para sua gestão recusar a oferta de 70 milhões de doses da americana Pfizer em 2020 seria o preço alto do imunizante. A vacina, porém, foi oferecida ao Brasil por US$ 10, metade do que a própria farmacêutica cobrou dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido.
Outra razão apresentada por Pazuello para rejeitar a oferta da Pfizer em 2020 foi o fato de a vacina, naquele momento, ainda não ter a aprovação da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa). No entanto, o contrato da Covaxin foi firmado sem essa aprovação prévia. Apenas no início de junho a importação foi autorizada, com algumas restrições.
2. Suposta pressão para acelerar contrato
O Ministério Público Federal (MPF) está investigando se houve irregularidades no contrato com a Precisa Medicamentos, que intermediou o negócio com a empresa indiana. Aos procuradores do caso, o chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde, Luís Ricardo Miranda, relatou ter sofrido "pressão incomum" para fechar a compra, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, que teve acesso ao depoimento sigiloso do servidor.
Na oitiva, ele apontou como um dos responsáveis por essa pressão o tenente-coronel Alex Lial Marinho, ex-coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde na gestão Pazuello.
A CPI da Covid aprovou a quebra de sigilo telefônico, fiscal, bancário e telemático de Marinho, que também será convocado a depor na comissão, mas a data ainda será marcada.
Luís Ricardo Miranda disse ter identificado diversos problemas no contrato de compra dos imunizantes, como divergências em informações da nota fiscal e envio de doses próximas do prazo de validade.
O sócio-administrador da Precisa Medicamentos, Francisco Maximiano, deve ser ouvido na próxima semana pela CPI, em data ainda a ser confirmada.
Por meio de nota à reportagem, a Precisa diz que "as tratativas entre a empresa e o Ministério da Saúde seguiram todos os caminhos formais e foram realizadas de forma transparente junto aos departamentos responsáveis do órgão federal".
Depois que a denúncia dos irmãos Miranda veio à tona, o presidente passou a afirmar que não houve nenhuma irregularidade porque o governo federal não desembolsou os recursos para comprar as 20 milhões de doses da Covaxin.
"Não gastamos um centavo com a Covaxin, não recebemos uma dose de vacina da Covaxin, que corrupção é essa? Ele não falou em nada de corrupção em andamento. Ele conversou comigo sim, não vou negar, mas não aconteceu nada", afirmou Bolsonaro na live transmitida em 24/06. Além disso, o governo federal tem avaliado cancelar a compra.
Mas a procuradora da República Luciana Loureiro, que investiga a compra da Covaxin, afirmou à Folha de S.Paulo que o fato de o governo Bolsonaro ter reservado os R$ 1,6 bilhão já configura prejuízo à saúde pública.
Segundo ela, isso se dá porque o governo autorizou o gasto em fevereiro, mas até hoje não recebeu as doses contratadas que já deveria ter recebido (o que configuraria quebra do contrato, mas o Ministério da Saúde deixou de cobrar a empresa). "Enquanto houver a nota de empenho, enquanto ela estiver válida, o recurso está reservado para isso", afirmou Loureiro à Folha de S.Paulo.
3. Suspeitas sobre empresa ligada à intermediária
Como dito acima, a Global Gestão em Saúde, que tem sócio em comum com a Precisa Medicamentos, tem suspeitas prévias de irregularidade em contrato com o Ministério da Saúde.
Em 2017, quando o ministro da Saúde era o deputado federal Ricardo Barros (PP-RS), hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara, a Global Gestão em Saúde venceu um processo de compra emergencial para fornecer medicamentos à pasta, mas não entregou os remédios, mesmo tendo recebido o pagamento antecipado de R$ 19,9 milhões.
O Ministério Público Federal denunciou representantes da empresa e o ex-ministro. Segundo o MPF, a empresa ganhou o processo de compra mesmo sem atender a todos os requisitos, como ter registro para importação dos medicamentos na Anvisa.
A denúncia tramita atualmente na Justiça Federal em Brasília. Barros negou ao jornal O Globo qualquer irregularidade no caso e que passou a ser alvo por ter enfrentado monopólios farmacêuticos. A Global não se manifestou sobre a investigação.
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