A professora goiana Sandra Santos, 56, enfrenta há um ano os efeitos da covid-19. "Passei por neurologista, clínico geral, infectologista, pneumologista, cardiologista, ortopedista, endocrinologista, fisioterapeuta. Já perdi as contas de exames e remédios."
Como outros milhares de brasileiros, Sandra passou meses num caminho tortuoso, tanto na busca pelo diagnóstico da doença quanto no tratamento para os sinais persistentes da chamada covid-19 longa.
Os primeiros sintomas associados à doença apareceram em junho do ano passado: dor de cabeça forte e pressão alta (despertada pela covid-19 em alguns pacientes). Da primeira ida ao pronto-socorro saiu medicada com anti-hipertensivo.
Dias depois surgiu o cansaço extremo. "Se estendesse uma roupa e caísse um prendedor, deixava caído porque não dava conta de agachar." Procurou um endocrinologista, que solicitou mais de 20 exames. Nada fora do normal. As dores de cabeça a levaram a um neurologista e a um exame de ressonância magnética. Nada foi detectado. Mas desde então passou a tomar quatro remédios, um deles para enjoo.
Em sua segunda ida ao hospital, em busca de respostas sobre a fadiga incessante, ouviu do médico que ela poderia estar com depressão e foi encaminhada para um psiquiatra. "Cada um falava uma coisa e ninguém tocava no assunto da covid." Nem Sandra, que havia cuidado de uma pessoa com covid-19 sem que tivesse apresentado sintomas mais comuns da doença, como tosse, febre e perda de olfato. Seu primeiro exame inclusive deu negativo.
Pouco tempo depois começou a sofrer com diarreia e acabou pela terceira vez no hospital. Foi diagnosticada com "alguma virose".
A partir dali, em casa e por conta própria, decidiu monitorar a oxigenação com um oxímetro. Um dia o nível estava abaixo de 90 e foi pela quarta vez ao hospital. Ali, foi submetida a uma tomografia, na qual foi detectada uma leve inflamação do tecido pulmonar. Uma médica garantiu que não se tratava de covid-19, mas receitou azitromicina (usado no tratamento precoce sem comprovação de eficácia), complementação de vitamina D e dexametasona (corticoide recomendado apenas para pacientes em estado grave porque pode inibir o sistema imunológico e agravar o quadro de pacientes mais leves).
Tomou os comprimidos e, ao acordar no dia seguinte, percebeu um zumbido no ouvido esquerdo e nova queda da saturação. Em sua quinta ida ao hospital, passaria seis dias ali, sendo três na UTI. A alta hospitalar parecia o fim, mas em poucas semanas voltaram o cansaço extremo e a falta de ar.
Em consulta com uma pneumologista, ouviria que adquiriu uma asma pós-covid que precisaria ser controlada pelo resto da vida. Perdeu também força muscular nos braços e nas pernas, ficou "meio careca", sente dores musculares e ouve o zumbido até hoje. São diversos comprimidos todos os dias.
Situações como a de Sandra são enfrentadas por 1 em cada 10 pacientes, segundo especialistas. Não há dados precisos sobre o Brasil, mas no Reino Unido, por exemplo, mais de 2 milhões de pacientes enfrentaram sintomas associados à covid-19 por mais de 12 semanas. E não há exatamente um padrão. Pode afetar pacientes assintomáticos ou que tiveram formas leves ou graves da doença, conhecida por nomes como "síndrome pós-covid", "covid longa", "covid persistente" ou "covid de longa distância".
A reportagem conversou com três pacientes com sintomas persistentes da covid-19. Em geral, passaram por mais de 10 médicos especialistas até agora. Os tratamentos prescritos incluem antiparasitário, antibiótico, corticoide, anti-histamínico, vitaminas, expectorantes, analgésicos, relaxantes musculares, broncodilatadores, anticoagulantes, antidepressivos e ansiolíticos. Do lado dos exames, foram tomografia, ressonância magnética, raio-x, ultrassom, exame de sangue e urina, ecocardiograma, endoscopia, mamografia, eletrocardiograma, espirometria e eletroneuromiografia (que avalia lesões nervosas).
Todos ainda enfrentam sintomas. Mas nos últimos meses, dois tratamentos passaram a dar sinais promissores para alguns deles: programas de reabilitação com profissionais de diversas especialidades e a vacinação. Para alguns pacientes, ambos representam até o retorno ao que chamavam de "vida normal".
Sandra diz ainda não ter chegado a esse ponto, mas conseguiu vaga no programa de reabilitação da Rede Sarah e, após a primeira dose da vacina em maio, parou de ter oscilações que a levaram a passar uma semana de cama e outra de pé. "Vejo melhoras no aspecto geral. Eu parei de ter picos e alternâncias."
Covid longa e atenção multidisciplinar
O problema inicial é que não se sabe direito nem quantas pessoas no país sofrem com os sintomas de longo prazo da covid-19. O Ministério da Saúde brasileiro divulga que 17 milhões de pessoas se recuperaram da covid, mas muitas delas passaram a conviver com sintomas motores, neurológicos, cardíacos, respiratórios, entre outros. Estudos apontam que isso atinge em torno de 10% dos pacientes que tiveram covid com sintomas.
O caminho percorrido por Sandra é um entre diversos relatos de brasileiros que não sofrem apenas com sintomas persistentes e possíveis sequelas. São inúmeros remédios, exames, consultas ou mesmo ceticismo de parte dos médicos sobre a covid ser a real causa dos sintomas.
Um dos obstáculos para o diagnóstico dessa condição é que muitos pacientes, ao serem testados para covid, já não estão mais com o coronavírus no corpo. Pelo menos, não de uma forma detectável por exames adotados atualmente. Por isso, parte dos médicos avalia não ter elementos suficientes para concluir que se trata de covid longa ou acaba atribuindo os sintomas a distúrbios psicológicos, por exemplo.
Em busca de ferramentas que permitam o diagnóstico da covid longa, pesquisadores do Imperial College London divulgaram terem achado um possível indicativo da doença por meio de um exame de sangue: a presença de autoanticorpos ou anticorpos anômalos, que acabam atacando o próprio corpo.
Mas enquanto os especialistas não resolvem a questão do diagnóstico, o número de pacientes com esses sintomas não para de crescer, o que tem se mostrado um desafio enorme para o já combalido Sistema Único de Saúde (SUS).
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam falta de qualificação, pouca integração entre profissionais de diferentes especialidades (evitando que o paciente fique sendo encaminhado de um para outro sem o acompanhamento dele como um todo), além da escassez de atendimento e análise profundos do histórico médico, como doenças que poderiam estar "silenciosas" e acabaram vindo à tona depois da covid-19.
Além disso, eles falam em obstáculos estruturais como burocracia excessiva e falta de recursos, de ambulatórios e centros de reabilitação especializados e também de estrutura para a telemedicina como forma de acompanhar pacientes à distância.
Existem atualmente duas grandes linhas na rede pública brasileira para reverter esse quadro de escassez ante a crise da síndrome-pós-covid: capacitação dos profissionais e reestruturação das unidades de saúde.
"A covid longa trouxe à tona a importância dos pacientes que lidam com doenças crônicas no país", afirma Amanda Santos Pereira, coordenadora médica da equipe do Hospital Sírio Libanês que executa a iniciativa "Reabilitação pós-covid", com o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde, do Ministério da Saúde (PROADI-SUS).
Esse e outros profissionais treinam equipes de saúde pelo país utilizando a metodologia Lean, a qual visa promover a organização e otimização dos serviços hospitalares, como diminuição de desperdícios, capacitação de equipes, determinar plano de retomada hospitalar segura, entre outros.
"O ideal é uma abordagem integral do paciente, que pode incluir médico especialista em reabilitação, fisioterapeuta, nutricionista, psicologia e outras especialidades. O cuidado centrado no paciente é fundamental, e uma visão holística importante, o que permite uma comunicação mais assertiva entre os profissionais de saúde, visando a recuperação dos pacientes."
O projeto oferecido no Sistema Único de Saúde (SUS) começou em fase experimental com treinamentos de equipes de cinco hospitais da rede pública que já atuam com reabilitação física e intelectual e pretende abranger até 10 hospitais. O SUS conta com 266 centros especializados nessa área, mas poucos deles têm estrutura ou treinamento para os pacientes pós-covid.
As diretrizes do "Reabilitação pós-covid" orientam uma intervenção, que dura quatro meses. Os resultados promissores na recuperação motora e funcional de pacientes infectados por covid levaram a uma ampliação dos treinamentos. Entre os resultados apresentados, destacam-se o aumento de 26% na independência funcional dos pacientes, mais de 500 profissionais capacitados em visitas presenciais, evolução média de 81% de aplicabilidade de protocolo de alta segura, entre outros.
"Essa é uma carga de trabalho que o SUS não estava preparado para absorver. Considerando todas as outras demandas que não deixaram de existir. As equipes de saúde da família não deixaram de cuidar dos diabéticos, dos hipertensos e dos pacientes com tuberculose. E agora estão enfrentando esse desafio de receber uma nova carga de doentes. Alguns deles eram plenamente saudáveis, que sequer faziam acompanhamento de saúde", afirma o médico infectologista Fernando Bellissimo-Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto.
Bellissimo-Rodrigues coordena o ambulatório pós-covid do Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto, criado no início da pandemia, quando a instituição percebeu que "os pacientes que sobreviviam à fase aguda da doença não estavam prontos para ter alta", porque precisavam de assistência e orientação para lidar com sintomas persistentes e limitações dali em diante.
Além do ambulatório, foi desenvolvido pela fisioterapeuta Lívia Bonifácio o projeto de pesquisa Recovida, no qual coleta dados do ambulatório desde maio de 2020 para sua pesquisa de pós-doutorado. São acompanhados cerca de 200 pacientes, com casos de apresentação leve, moderada e grave da covid-19. Dados preliminares apontam que dos pacientes atendidos no ambulatório pós-covid, 64% têm algum sintoma persistente seis meses depois do início dos sintomas.
Bellissimo-Rodrigues conta que o foco inicial do ambulatório eram os pacientes graves que foram hospitalizados, mas com o tempo foram incorporadas pacientes que eram profissionais da saúde, e que tinham tido formas leves e moderadas da doença, ou seja, não chegaram a ser internados, mas desenvolveram sintomas de longo prazo da covid-19.
"A gente então procura manejar esses problemas de modo integrado. No mesmo momento e na mesma consulta. É um privilégio ter uma equipe tão diversa e ampla como essa", diz o professor.
Sinais promissores após vacina contra covid
Outro caminho promissor para alguns pacientes com covid longa tem sido a vacinação. A professora gaúcha Priscila Alves, 44, está entre aqueles que relataram melhoras depois de serem imunizados.
Ao longo de meses, ela passou por diversos exames e consultas e enfrentou dor de cabeça, fadiga, tontura, falta de apetite, paladar afetado, dor no estômago, episódios de ânsia e vômito, asma e hemorragia vaginal. Dos remédios, apenas alguns funcionavam para sintomas específicos. A única mudança concreta se deu quando ela foi vacinada.
"Os sintomas melhoraram bastante desde então. A hemorragia parou e agora só estou em tratamento com o gastroenterologista para tratar gastrite, esofagite e pedra na vesícula", relata à BBC News Brasil.
Ainda não se sabe bem por que os imunizantes têm sido benéficos para alguns pacientes com covid longa, mas o número de relatos tem crescido à medida que os programas de vacinação avançam pelo mundo.
Um levantamento no Reino Unido sobre esse tópico, o mais amplo até agora, mostrou que 57% dos participantes apresentaram uma melhora geral dos sintomas. O estudo, ainda não revisado por outros cientistas, foi liderado pelo grupo de apoio britânico LongCovidSOS e conta com a colaboração das universidades britânicas de Exeter e Kent.
Há diversas limitações na metodologia, como a escolha da amostra de pessoas ouvidas, mas o trabalho aponta algumas pistas sobre os mecanismos por trás da vacinação.
A imunologista Akiko Iwasaki, da Universidade Medicina de Yale (EUA), vem se dedicando ao tema com outros cientistas e aponta três possíveis explicações para o papel da vacina contra a covid longa.
A primeira hipótese aponta que haveria um reservatório de coronavírus em algum lugar do corpo que continua afetando o paciente sem ser detectado por exames. Na segunda, o combate ao coronavírus desencadeou um mecanismo autoimune no qual o sistema de defesa ataca o próprio corpo. A terceira fala em fragmentos do coronavírus continuariam no corpo como "fantasmas virais" que estimulam o sistema imunológico e provocam inflamação constante.
"Nossa (principal) hipótese é de que a covid longa é causada por uma infecção viral persistente e/ou doença autoimune", disse ela à BBC News Brasil em junho.
Para os cientistas, provavelmente não haverá uma explicação ou solução única para todos os atingidos por um problema de saúde tão complexo. Mas os benefícios trazidos tanto pela vacinação quanto pelos programas de tratamento e reabilitação multidisciplinares, têm apontado caminhos promissores para outras milhares de pessoas com covid longa.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!