Após duas semanas de recesso parlamentar, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid retoma os trabalhos com foco inicial em concluir as investigações sobre negociações suspeitas para compra de vacinas pelo Ministério da Saúde.
O primeiro a prestar depoimento, na terça-feira (03/08), é o reverendo Amilton Gomes de Paula, que atuou numa negociação para intermediar a suposta venda de vacinas da AstraZeneca em que há suspeita de tentativa de superfaturamento e cobrança de propina. No entanto, ele obteve uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) que o autoriza a ficar em silêncio no caso de perguntas que possam incriminá-lo.
Gomes de Paula é fundador e presidente de uma organização não governamental (ONG) sem qualquer atuação prévia no ramo de vacinas, que foi criada em 1999 como Secretaria Nacional de Assuntos Religiosos (Senar) e renomeada em 2020 para Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah).
As acusações sobre a participação do reverendo em possíveis ilegalidades na negociação de imunizantes foram levantadas pelo policial militar de Minas Gerais Luiz Paulo Dominghetti, que ofereceu 400 milhões de doses da AstraZeneca ao Ministério da Saúde em nome da empresa americana Davati, muito embora ela não tivesse qualquer autorização do laboratório para ofertar e fornecer a vacina.
Ainda assim, Dominghetti foi recebido no Ministério da Saúde e acusa o ex-diretor de logística do Ministério da Saúde Roberto Dias de ter solicitado propina para o fechamento do contrato. Dias nega a acusação.
E qual o papel do reverendo nessa história? Segundo Dominghetti disse à CPI, foi Gomes de Paula quem o ajudou a conseguir marcar reuniões no Ministério da Saúde para apresentar a proposta de milhões de doses de vacina em fevereiro deste ano.
Há inclusive fotos do encontro que o próprio reverendo publicou em março nas redes sociais, conforme revelado em reportagem da Agência Pública. Em uma dessas imagens, Gomes está ao lado de Dominghetti, de Lauricio Monteiro Cruz (diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis) e de Hardaleson Araújo de Oliveira (major da Força Aérea Brasileira).
Além de ter participado da tentativa de venda da AstraZeneca para o governo federal, a ONG do reverendo também ofereceu doses para algumas prefeituras e Estados. Segundo carta da ONG enviada a governos estaduais e municipais obtida pela Agência Pública, foram ofertadas doses por US$ 11 a unidade, valor acima aos pagos pelo governo federal na compra da AstraZeneca de dois fornecedores autorizados — a Fiocruz (US$ 3,16) e o Instituto Sérum (US$ 5,25).
No documento, também foram oferecidas pelo mesmo valor (US$ 11) doses da Janssen, vacina que foi adquirida pelo Ministério da Saúde diretamente do laboratório americano por US$ 10.
O portal G1 teve acesso a e-mails enviados por Monteiro Cruz, do Ministério da Saúde, em fevereiro e março ao reverendo e a Herman Cardenas, presidente da Davati nos Estados Unidos, em que se confirma o envolvimento da ONG do reverendo nas negociações do governo federal.
eReportagem publicada em julho mostra ainda email de Gomes de Paula a Cardenas, em 10 de março, solicitando um novo documento de oferta (Full Corporate Offer - FCO) ao Ministério da Saúde, elevando ainda mais o valor a ser cobrado pela dose de Astrazenca.
"Eu cordialmente venho agradecer pela confiança depositada em nossa instituição em conduzir negociações com o Ministério da Saúde do Brasil. As negociações estão em estágio final e a expectativa é que o contrato seja assinado em 12 de março de 2021", diz também a correspondência entre o reverendo e o presidente da Davati.
O programa Jornal Nacional, da TV Globo, por sua vez, teve acesso a documentos da negociação presentes no sistema eletrônico de informações do Ministério da Saúde. Eles mostram que um representante da ONG do reverendo indicou para a Davati duas empresas nos Estados Unidos que deveriam receber eventuais pagamentos de comissão, caso a venda das 400 milhões de doses fosse concretizada.
O e-mail e o nome de Amilton Gomes de Paula aparecem associados às duas empresas, com os respectivos dados bancários, segundo a reportagem, assim como o nome de Daniel Fernandes Rojo Filho, brasileiro que em 2015 "chegou a ser preso nos Estados Unidos acusado de envolvimento numa fraude multimilionária".
Gomes de Paula diz que agiu por "questões humanitárias"
A BBC News Brasil tentou ouvir o reverendo para a reportagem por meio do seu advogado, Daniel Sampaio. Ele disse, porém, que seu cliente só voltará a falar com a imprensa após o depoimento na CPI.
Em nota disponível em seu site, a Senah afirma que são "fatos totalmente inverídicos" as denúncias de que "participou em esquema fraudulento de vacinas".
"Ressaltamos que nossa atuação prendeu-se à apresentação de uma empresa através de uma pessoa que se dizia representante legal e que no momento oportuno apresentaria toda documentação exigida. Todas as denúncias serão devidamente esclarecidas no foro competente", diz ainda a nota.
Em entrevista ao canal CNN Brasil no início de julho, Gomes de Paula disse que foi "usado" e que se envolveu nas negociações por "razões humanitárias". Ele reconheceu, porém, que Cardenas ofertou "doações" à Senah caso a venda das 400 milhões de doses ao governo brasileiro se concretizasse.
Na mesma entrevista, ele negou ter relação com o presidente Jair Bolsonaro e seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (Patriotas). Ele foi questionado sobre isso porque na página do Facebook da Senah há uma foto do reverendo ao lado do senador, postada em 2019.
Currículo do reverendo traz informações falsas, aponta checagem
O portal da Senah traz um longo currículo do seu presidente. No entanto, uma extensa checagem do Coletivo Bereia, grupo de jornalistas que verifica a veracidade de conteúdos divulgados em ambientes digitais religiosos, identificou que boa parte delas é falsa.
A BBC News Brasil também questionou a defesa do reverendo se ele gostaria de se pronunciar sobre isso, mas foi mantida a decisão de não falar com a imprensa antes do depoimento à CPI.
O currículo do reverendo indica, por exemplo, que ele é reitor da Faculdade Batista do Brasil. Consulta feita pela BBC News Brasil no site do Ministério da Educação, porém, não localiza registro de instituição de ensino superior com esse nome no país.
Ele diz também ser membro de diversas instituições, como a Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNP), o Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP), a Associação de Neurologia Infantil e Psiquiatria e Profissões Afins (ABENEPI), da Associação de Medicina Psicossomática (ABMP) e da Convenção Batista Nacional do Brasil.
O nome do reverendo, porém, não consta na lista de credenciados da SBNp e da IBAP. Já a ABENEPI e a ABMP não reconheceram ter Gomes de Paula como filiado, ao serem consultados pelo Coletivo Bereia.
O coletivo também descobriu que o reverendo chegou a obter um registro para atuar como psicólogo no Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP-DF), em janeiro de 2013. No entanto, o registro foi cancelado após o conselho obter uma denúncia de fraude na documentação em 2017 envolvendo o diploma apresentado, da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde de Patos de Minas (SESPA).
"Após a denúncia e todos os levantamentos que fizemos, a fiscalização chegou a conclusão que essas pessoas não cursaram o curso de psicologia, pois a faculdade já tinha fechado. Então, o CRP reabriu esse processo de inscrição, dando a todos os profissionais que apresentaram diplomas da SESPA a oportunidade de apresentarem novos documentos, mas nenhum deles apresentou. Por isso, todas as inscrições foram canceladas, excluídas do sistema e o processo encaminhado ao Ministério Público e à delegacia onde entregamos a denúncia", contou ao Coletivo Bereia a presidente do CRP-DF, Thessa Guimarães.
Nem mesmo a filiação religiosa do reverendo é livre de questionamentos.
Embora o site da Senah diga que ele é membro da Convenção Batista Nacional do Brasil, o presidente da Convenção Batista Nacional do Distrito Federal, Pastor José Carlos da Silva, disse não ter informações sobre Gomes de Paula.
"A informação que tive, do secretário da Ordem de Ministros Batistas Nacionais, é que ele não consta no rol de filiados. Realmente, não faz parte de nossa denominação. Sou o presidente da CBN-DF e desconheço a igreja e o Pastor Amilton", disse Silva ao coletivo.
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