Jornal Estado de Minas

REPERCUSSÃO

Falas de Bolsonaro sobre Amazônia na ONU não condizem com realidade, dizem pesquisadores

Em seu discurso na 76ª Assembleia Geral da ONU em Nova York nesta terça (21/09), o presidente Jair Bolsonaro usou um tom para falar sobre as florestas brasileiras e o meio ambiente bastante diferente do que usa internamente e até mesmo do que teve em seu discurso do ano passado.



 

Em 2020 na ONU, Bolsonaro atribuiu os incêndios florestais a "índios e caboclos", disse que eles aconteceram em áreas já desmatadas e baseou o discurso em elogios ao setor agropecuário.

Internamente, Bolsonaro já minimizou incêndios florestais, prometeu que os indígenas não teriam "nem mais um centímetro de terra", diminuiu a fiscalização ambiental e o combate ao desmatamento e enfraqueceu entidades ambientais do governo federal. Chegou a dizer que o presidente americano, Joe Biden, era "obcecado" com o meio-ambiente e que isso "atrapalha um pouquinho" a relação.

 

Já em seu discurso na ONU em 2021, o presidente elogiou a legislação ambiental brasileira e o Código Florestal; enalteceu a Amazônia e nossas reservas indígenas; falou sobre neutralidade climática e afirmou que o "futuro do emprego verde está no Brasil" com "energia renovável, agricultura sustentável e indústria de baixa emissão".

 

Também fez diversas afirmações inverídicas sobre a área ambiental: disse que o desmatamento caiu e que 84% da Amazônia está intacta.


A agropecuária avança sobre a Amazônia (foto: Reuters)

Para pesquisadores ambientais e de ciência política, a distância entre o atual discurso e quase três anos de gestão com péssimos índices de preservação ambiental é tão grande que falas como a feita na ONU são totalmente inócuas.



 

"Não é um discurso de dez minutos que muda uma realidade devastada", diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (entidade que reúne 43 organizações ambientalistas). "Ele fala que o Brasil tem uma legislação ambiental para proteger o ambiente, ele elogia a vegetação da Amazônia. Tudo isso é verdade, mas nada foi feito por ele. A legislação não foi feita pela base dele no Congresso, não foi ele que plantou a Amazônia. O problema não é o que o Brasil tem, é o que ele quer destruir."

 

"Bolsonaro faz propaganda justamente daquilo que ele está destruindo", afirma Astrini.

O cientista político Creomar de Souza, professor da Fundação Dom Cabral e fundador da consultoria política Dharma, com essa diferença em relação aos discursos anteriores, Bolsonaro tenta fazer acenos para investidores internacionais, pois percebeu as consequências negativas de um discurso agressivo em relação ao ambiente no cenário mundial. No entanto, seu discurso só atinge seus próprios seguidores.

 

"Ele faz uso extremo de eufemismos e usa informações que não tem relação nenhuma com a realidade. Quando ele tenta vender uma realidade que não existe, acaba falando apenas a um grupo pequeno de apoiadores", analisa Souza. "Ele fala para um grupo cada vez menor de pessoas."



 

Astrini diz que é impossível para Bolsonaro conseguir recuperar sua imagem internacionalmente no quesito ambiental.

 

"A única coisa que ele poderia dizer para mudar a imagem do Brasil é 'aqui está minha carta de renúncia'", afirma o pesquisador do Observatório do Clima

Mentiras na tribuna


O desmatamento aumentou substancialmente na floresta (foto: Getty Images)

Astrini aponta para o grande número de dados distorcidos sobre meio-ambiente usados pelo presidente em seu discurso.

 

Bolsonaro afirmou que "somente no bioma amazônico, 84% da floresta está intacta".

 

"É uma mentira enorme, um dado produzido por negacionistas a pedido do governo", aponta Astrini.

 

Imagens registradas pelos satélites

 

Landsat desde 1985 mostram que o Brasil perdeu 18% da Amazônia entre 1985 e 2017, segundo análise do projeto Mapbiomas - parceria entre universidades, ONGs e instituições nacionais.



 

Além disso, pelo menos outros 20% da floresta estão degradados, com presença da garimpo, grileiros e madeireiros ilegais, aponta o Observatório do Clima.

"A gente só tem a outra metade da floresta preservada porque o Bolsonaro só tem um mandato. Se ele estivesse há 20 anos no poder, a gente não tinha mais nada da Amazônia", afirma Astrini.

 

Bolsonaro também usou de dados distorcidos para afirmar que o desmatamento caiu, o que não é verdade.

 

"Na Amazônia, tivemos uma redução de 32% do desmatamento no mês de agosto, quando comparado a agosto do ano anterior", disse ele.

 

A comparação de um mês com outro do ano anterior não dá a dimensão correta. O desmatamento aumentou por dois anos consecutivos de governo Bolsonaro (2019 e 2020), e deve se manter alta em 2021, cujos dados só serão consolidados no fim do ano.



Segundo o Inpe (Instituto de Pesquisas Espaciais), a média de desmatamento na Amazônia foi de 6.719 km² por mês nos cinco anos anteriores ao governo Bolsonaro e de 10.490 km² por mês nos dois primeiros anos de seu governo, um aumento de 56%. O próprio vice-presidente Hamilton Mourão já admitiu que o patamar deve se manter o mesmo em 2021.

 

O presidente também enalteceu as reservas indígenas - nenhuma criada ou favorecida de alguma forma durante seu governo, que diminuiu a fiscalização sobre invasões e durante o qual o garimpo avançou como nunca para dentro da floresta.

 

Bolsonaro disse na ONU que os "índios vivem em liberdade e cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades", algo que contradiz totalmente a manifestação da grande maioria das entidades indígenas organizadas.




Governo Bolsonaro tem sido alvo de protestos por sua política ambiental (foto: Reuters)

 

"O que ele vem tentando fazer é forçar a abertura das terras indígenas para a agricultura de terceiro, e não para a agricultura dos próprios índios e para as atividades tradicionais que mantém a floresta", afirma Adriana Ramos, coordenadora de Política e Direito do Instituto Socioambiental (ISA).

 

"As grandes mobilizações das articulações indígenas justamente contrapõem essa ideia de que a agricultura tem que produzir para quem está fora", afirma. "A exceção são duas dezenas de indígenas bancados pelo próprio governo para defender isso."

 

O presidente também afirmou que "antecipamos, de 2060 para 2050, o objetivo de alcançar a neutralidade climática. Os recursos humanos e financeiros, destinados ao fortalecimento dos órgãos ambientais, foram dobrados, com vistas a zerar o desmatamento ilegal."



 

"Isso é uma falácia, o governo não tem ação nenhuma para neutralizar transmissões. Eles protocolaram na ONU o objetivo de alcançar até 2060 a depender de investimento internacional, mas não têm tomado nenhuma atitude em relação ", aponta Astrini. "Se depender do seu governo, as transmissões vão dobrar."

 

O governo Bolsonaro também não fortaleceu os órgãos ambientais, pelo contrário: em sua gestão as verbas para entidades como o Ibama e o ICMBio caíram, as multas do Ibama foram praticamente nulas e a fiscalização ambiental e as operações de campo foram paralisadas. O Fundo Amazônia, com quase R$ 3 bilhões para a proteção florestal em caixa, está parado desde 2019.


Os direitos de povos indígenas estão no centro do debate no STF (foto: Getty Images)

Adriana Ramos, do ISA, afirma que o governo também manipula dados para favorecer o que eles querem mostrar. "O esforço do governo é alterar a legislação para que mais modalidades de desmatamento sejam consideradas legais. Ou seja, ele pode até reduzir o desmatamento ilegal até 2030, mas vai ser porque ele legalizou o desmatamento."



 

Ramos também aponta que o Código Florestal (uma legislação para proteger matas nativas), elogiado por Bolsonaro no discurso, se dependesse dele e de sua base, já teria sido totalmente flexibilizado.

 

Apesar de elogiar a legislação - inclusive considerada insuficiente por muitos ambientalistas, incluindo o ISA - o governo tem fragilizado sua implementação.

"E a base de Bolsonaro no Congresso apresenta muitas propostas para mudá-lo, o esforço de alteração é enorme", diz Ramos.

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