O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito afirma que a postura do CFM é "temerária, criminosa e antiética" porque há cada vez mais evidências científicas de que os medicamentos não funcionam contra a covid e podem inclusive ser danosos aos pacientes.
O próprio CFM já reconheceu o fato de que a cloroquina e a hidroxicloroquina não são eficazes contra a covid-19. No entanto, a justificativa para essa decisão, segundo o conselho, seria "respeito à autonomia médica".
A CPI apontou também que o parecer 4/2020 - onde o CFM afirma que médicos que receitarem os medicamentos para pacientes com covid não estão cometendo infração ética - foi usado como embasamento para uma série de atos do Poder Executivo e como argumento do presidente Jair Bolsonaro para defender a cloroquina. A CPI também pede o indiciamento do presidente.
A BBC procurou o CFM para falar sobre o assunto, mas a entidade não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Após a apresentação oficial do relatório, o presidente da República se defendeu afirmando que não cometeu nenhuma irregularidade na condução do combate à pandemia.
A postura do conselho gerou muitas reações, com o posicionamento de centenas de médicos, pesquisadores e entidades médicas e científicas. Uma ação civil pública iniciada pela Defensoria Pública da União pede a responsabilização do conselho pela decisão e a sua imediata revogação.
Um abaixo-assinado criado pelo cardiologista e professor da USP Bruno Caramelli pedindo a mudança de postura do CFM se tornou um dos maiores do site Change.Org, com 75 mil assinaturas.
No entanto - e como resultado da não-condenação pelo CFM - a prescrição dos medicamentos para pacientes com covid-19 continuou ao longo da pandemia, e ainda há médicos que defendem a decisão do CFM, que é apoiada também pelos conselhos regionais, como o Cremesp (SP), o Cremeb (BA), o CRM-DF, entre outros.
Como a situação chegou a esse ponto e o que dizem as críticas feitas à entidade? Entenda o caso.
O parecer da discórdia
O "racha" entre médicos gerado pela postura do CFM é apontado pela própria comunidade médica como resultado de um crescente processo de polarização política.
O parecer do CFM que gerou tamanha comoção foi a nota 4/2020, publicada em abril de 2020 e não revogada até hoje. Nela, o conselho reconhece as evidências da ineficácia da cloroquina contra covid, mas diz que médicos que receitam a droga não cometem infração ética por causa da "autonomia médica".
Se no início da pandemia chegou a haver dúvidas sobre a utilidades desses medicamentos para combater a pandemia, desde então só se somam evidências de que os medicamentos não apenas não são eficazes como podem ser danosos aos pacientes.
Em um evento online em maio do ano passado, o presidente do CFM, Marco Ribeiro, reconheceu que a liberação do conselho foi "fora das normas" da entidade. O CFM não respondeu aos questionamentos da BBC sobre a afirmação.
Em uma nota publicada após o início da CPI, o CFM diz "repudiar" "excessos e abusos ocorridos na CPI da Pandemia em relação aos depoentes e convidados, em especial médicos e médicas" e diz falar em nome dos 530 mil médicos brasileiros.
O conselho, no entanto, não é originalmente um sindicato ou uma associação de classe. Trata-se de uma autarquia federal que tem como papel regular a aplicação do Código de Ética Médica e os registros de medicina.
Autonomia médica e seguir a ciência
Apesar do que diz o CFM na nota, sua postura quanto à não-condenação do uso de cloroquina e sua nota de repúdio à CPI não são representativos da maioria dos médicos do país.
A Associação Médica Brasileira (AMB), que no ano passado havia defendido a "autonomia do médico" como o CFM, neste ano, após relatório de um comitê designado especialmente para essa avaliação, passou a pedir que a cloroquina, a ivermectina, a azitromicina e outros remédios sem eficácia sejam "banidos" do tratamento contra a covid.
Diferentes médicos ouvidos pela BBC News Brasil disseram que a AMB tem maior representatividade que o CFM onde a direção é indireta - os conselheiros são escolhidos por votos dos conselheiros estaduais e o voto é por estado, não por número de médicos.
A médica infectologista Ceuci Nunes, da direção da Associação dos Médicos e Médicas pela Democracia, afirma que o CFM não condenar o uso desses medicamentos contra covid "é uma postura escandalosa".
"A autonomia do médico é extremamente importante, mas não pode ficar acima da ciência", diz Nunes.
"O médico pode indicar um medicamento off label, ou seja, para uma indicação ou uma dosagem que não esteja na bula, mas somente houver indícios de que isso pode beneficiar o paciente", diz Nunes, que também é diretora do hospital Instituto Couto Maia, referência em doenças infecciosas na Bahia, e foi conselheira suplente do CFM em dois mandatos.
"O médico tem autonomia para tratar o seu paciente dentro da boa prática e da ciência. Uma vez estabelecido que um tratamento não é benéfico, o médico que o prescreve está cometendo uma falta ética", defende o médico e pesquisador Walter Cintra Ferreira Junior, coordenador do curso de Administração Hospitalar e Sistemas de Saúde da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), ex-diretor de hospitais públicos e privados e ex-gestor público nas Secretarias Estadual e Municipal de Saúde de São Paulo.
O infectologista Marcos Boulos, ex-diretor da Faculdade de Medicina da USP, explica que a autonomia não significa que o médico tem "liberdade para fazer o que quer", mas apenas pode agir dentro da ética médica e precisa mostrar os benefícios dos procedimentos.
"Um médico não tem autonomia para desligar um aparelho e matar um paciente. Não pode fazer uma cirurgia não preconizada. Usar o argumento de autonomia para defender um tratamento sem base científica é um absurdo", diz Boulos, que também foi membro da diretoria do Cremesp em duas gestões, parte do conselho deliberativo do Hospital das Clínicas da FMUSP e atua em gestão de saúde pública há décadas.
Além da AMB e da AMMBD, diversas outras entidades médicas condenam a prescrição de cloroquina para pacientes com covid.
"A categoria está começando a se posicionar muito fortemente", diz Nunes. "As sociedades de especialidade, que são técnicas e não políticas, já se posicionaram."
A SBI não recomenda tratamento precoce para COVID-19 com qualquer medicamento (cloroquina,
hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, nitazoxanida, corticoide, zinco, vitaminas, anticoagulante, ozônio por via retal, dióxido de cloro), porque os estudos clínicos (segue)
— Sociedade Brasileira de Infectologia (@SBInfectologia) January 14, 2021
A Sociedade Brasileira de Infectologia se posicionou contra o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina contra covid-19 em janeiro deste ano. A SBI afirmou em nota que "estudos clínicos randomizados com grupo controle existentes até o momento não mostraram benefício (destes medicamentos contra covid) e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais."
A entidade lembrou que a orientação está alinhada com recomendações de entidades internacionais como as sociedades de infectologia dos EUA (IDSA) e da Europa (ESCMID), o Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH), os Centos Norte-Americanos de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Polarização política
Apesar do CFM justificar a sua postura - que gerou não desde divisão na classe até indiciamento do presidente da entidade pela CPI - com base no princípio da autonomia, críticos afirmam que o posicionamento foi resultado de uma polarização política e ideológica. O uso de cloroquina e ivermectina é defendido desde o início da pandemia pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores.
A Comissão Arns de Direitos Humanos publicou uma nota pedindo pela responsabilização do CFM pela postura e afirmando que o parecer da entidade tem "ausência de rigor científico e motivação política".
"O próprio presidente do CFM admitiu que o parecer não tem base científica e foi aprovado fora da curva da normalidade do conselho", afirma o advogado Belisário dos Santos Jr, representante da Comissão Arns. "O CFM, com a importante que a entidade tem de regular a ética médica, não poderia jamais aceitar prescrição de tratamentos sem nenhuma comprovação."
O CFM não respondeu aos questionamentos da BBC sobre o assunto.
Nunes, da AMMBD, lembra que a postura do próprio CFM diante da polêmica da fosfoetanolamina foi completamente diversa da que o conselho está tendo agora. O conselho condenou a prescrição de fosfoetanolamina, uma substância que estava sendo usada como remédio contra vários tipos de câncer sem ter nenhuma eficácia contra as doenças. "Corretamente, eles não defenderam 'autonomia', nesse caso, para um médico prescrever um medicamento que não funciona", diz a infectologista.
A representante da AMMBD diz que a não-condenação de médicos que prescrevem os medicamentos pelo CFM não tem a ver com a defesa da autonomia, mas é resultado de uma polarização política que "contaminou" parte da categoria e levou o conselho a "agir por ideologia".
"Se o objetivo é defender a autonomia, por que o CFM não defendeu a autonomia médica quando instituições obrigaram médicos a prescrever os medicamentos sem eficácia durante a pandemia?", questiona Nunes.
Os planos de saúde Prevent Senior e Hapvida estão sendo investigados por forçar médicos a prescrever o chamado "kit-covid". A Hapvida chegou a ser multada . Médicos acusam a Prevent Senior de chegar a demitir profissionais por se recusarem a prescrever os medicamentos.
"A classe médica, assim como todas as categorias, passou por um processo de uma polarização muito violenta. O combate à pandemia virou um cavalo de batalha política e contaminou decisões que deveriam ser técnicas, levando a um número de mortos muito maior do que deveríamos ter", diz Walter Cintra.
A polarização não começou na pandemia. Eleições dos CRM (Conselhos Regionais de Medicina) já haviam sido fortemente afetadas pelo clima político no país nas eleições dos conselhos em 2018.
Nas eleições do Cremesp, em São Paulo, uma série de informações falsas foram distribuídas aos médicos durante o processo, incluindo difamação de candidatos e montagens de fotos. Como as postagens foram distribuídas por WhatsApp, não foi possível apurar os responsáveis e não houve nenhuma responsabilização.
Responsabilização
Nunes, afirma que a postura do CFM e o consequente indiciamento pela CPI têm um impacto negativo sobre a imagem da categoria. "O médico é um formador de opinião muito importante, então quando as pessoas veem que há algo errado em uma entidade importante, gera uma mancha", diz ela.
"Por isso é preciso ter cuidado para que a responsabilização seja individual (sobre os conselheiros do CFM e eventuais casos de conduta antiética de médicos) e não recaia sobre a categoria", afirma a representante da AMMBD.
Apesar de ser uma autarquia, as verbas do CFM são provenientes das contribuições obrigatórias dos médicos. Uma eventual multa determinada pela Justiça sobre a entidade - e não sobre a gestão atual - recairia sobre médicos que estão fazendo seu dever, defende Nunes.
"Inclusive os médicos foram a linha de frente do combate à pandemia, muitos deram a vida", afirma.
Segundo Walter Cintra, a decisão do CFM deixou muitos médicos "sem parâmetro" e deixou muitos desamparados diante de instituições que colocavam a
"Muitos médicos podem ter sido levados a erro. Mas também há os que têm posição (em defesa do uso dos remédios) por questão ideológica. Nesse caso, deve haver responsabilização", defende Cintra.
A BBC enviou uma série de perguntas para o Conselho Federal de Medicina, que não respondeu até a publicação desta reportagem. A entidade também não se manifestou sobre a divulgação do relatório da CPI com o indiciamento do presidente do conselho, Marcos Ribeiro.
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