“Ainda parece ser raro que uma pessoa assintomática realmente transmita adiante”, disse a líder técnica da OMS Maria Van Kerkhove em coletiva de imprensa sobre a COVID-19 no último dia 8 de junho.
A frase, largamente reportada, foi interpretada por muitos como um sinal de que o isolamento social contra o novo coronavírus é desnecessário.
“Urgente! OMS diz que transmissão do vírus chinês a partir de assintomáticos é ‘muito rara’. Quer dizer [que] passamos os últimos três meses, trancados em casa, sem trabalhar por nada? Apenas para destruir a economia?”, diz imagem compartilhada mais de 13 mil vezes no Facebook (1, 2, 3) desde o último dia 8 de junho.
“OMS conclui que assintomáticos raramente transmitem o vírus chinês. Você, que ficou em casa, sem sintoma, sem trabalho, sem dinheiro, foi feito de bobo. Te tiraram a liberdade, o sustento em nome de pseudociência. Não foi por vidas. Foi por política. Pra lucrarem com sua tragédia”, escreveu outro usuário ao repercutir a notícia, em publicação replicada mais de 10 mil vezes no Twitter.
A frase de Van Kerkhove foi interpretada da mesma maneira pelo presidente Jair Bolsonaro, em publicações compartilhadas mais de 150 mil vezes no Facebook e no Twitter.
Em espanhol, um texto amplamente compartilhado, baseado nas declarações de Van Kerkhove, afirma que “a OMS acaba de excluir todos os argumentos para as vacinas obrigatórias ou o rastreio de contatos declarando que os portadores assintomáticos não difundem a COVID-19”. De maneira semelhante, publicações em inglês e francês utilizaram a fala da técnica da OMS para questionar o uso de máscaras.
Em transmissão ao vivo um dia depois, no entanto, a OMS esclareceu que pacientes assintomáticos podem, sim, transmitir a COVID-19 e que estratégias de isolamento social ainda são a melhor maneira de controlar a doença.
Em resposta à pergunta de uma jornalista sobre o papel de casos assintomáticos na transmissão do novo coronavírus, durante coletiva de imprensa no último dia 8 de junho, a epidemiologista Maria Van Kerkhove afirmou que é necessário acompanhar de perto estes pacientes.
“Nós temos alguns relatórios de países que estão realizando um rastreamento de contatos muito detalhado, acompanhando casos assintomáticos, acompanhando os contatos, e não estão encontrando transmissões secundárias adiante, é muito raro”, disse, em tradução livre do inglês.
“Nós estamos constantemente analisando esses dados e tentando conseguir mais informações de países para realmente responder essa pergunta. Ainda parece ser raro que um indivíduo assintomático realmente transmita adiante”, continuou.
OMS explica mal-entendido
Esta última frase teve grande repercussão, sendo reportada com destaque globalmente. Em reação, a Organização Mundial da Saúde realizou uma transmissão ao vivo com Van Kerkhove nesta terça-feira, 9 de junho, no qual a epidemiologista afirmou que houve “mal-entendidos” sobre sua afirmação no dia anterior.
“Eu estava me referindo ontem, na coletiva de imprensa, a alguns poucos estudos, dois ou três estudos publicados, que tentam acompanhar casos assintomáticos de pessoas que estão infectadas ao longo do tempo”, disse a epidemiologista.
“Eu estava respondendo a uma pergunta em uma coletiva de imprensa, eu não estava declarando uma política da OMS ou nada do tipo, estava apenas tentando articular o que nós sabemos. E para isso eu usei a expressão ‘muito raro’, e acho que foi um mal-entendido afirmar que a transmissão assintomática global é muito rara, eu estava me referindo a um grupo de estudos”, completou.
“Nós sabemos, sim, que algumas pessoas que são assintomáticas, ou algumas pessoas que não tem sintomas, podem transmitir o vírus adiante”, disse Van Kerkhove, ainda, na transmissão ao vivo. “Então o que nós precisamos entender melhor é quantas pessoas na população não têm sintomas e, separadamente, quantos desses indivíduos irão transmitir para outros”, completou.
De fato, em documento sobre o uso de máscaras emitido pela OMS no último dia 5 de junho, a entidade destacou que “algumas pessoas infectadas com o vírus da COVID-19 não desenvolvem nunca nenhum sintoma, mas podem expelir o vírus, que pode, então, ser transmitido para outros”.
Como fonte, a organização citou um estudo realizado com 63 indivíduos assintomáticos infectados com COVID-19 na China. Destes, segundo o relatório, nove, ou 14%, infectaram uma outra pessoa.
Ainda durante a transmissão ao vivo da última terça-feira, 9 de junho, o diretor do programa de emergências da OMS, Mike Ryan, explicou como isso acontece, uma vez que pacientes sem sintomas não costumam espirrar ou tossir, métodos mais frequentes de transmissão do vírus.
“Cantando, falando alto, exortando, talvez em uma academia onde você está respirando excessivamente, ou em qualquer situação na qual é provável que você projete ar sob pressão”, listou.
Considerando a dificuldade de identificar esses casos assintomáticos, Ryan julgou “correta” a decisão de muitos países de implementar medidas de isolamento mais amplas.
“Uma vez que muitos países não podiam ver onde o vírus estava, havia tantas pessoas potencialmente doentes, pessoas com sintomas leves, potencialmente pessoas com nenhum sintoma, a decisão foi tomada - e eu acho que corretamente - de tentar distanciar todo mundo de todo mundo, colocar todo mundo em suas casas por um período de tempo para que as chamas da epidemia pudessem diminuir”, disse, na transmissão.
Indivíduos pré-sintomáticos
Ainda que a transmissão por pacientes verdadeiramente assintomáticos seja inferior, as medidas de isolamento continuam necessárias, uma vez que é impossível prever quais desses indivíduos eventualmente desenvolverão sintomas, explicou ao AFP Checamos a infectologista do Hospital Sírio-Libanês Glória Selegatto.
“Pacientes assintomáticos exclusivamente, que nunca desenvolvem sintomas, podem ser pouco transmissores, mas aqueles assintomáticos que têm sintomas leves, que não fazem identificação da doença, que não procuram serviço médico e assintomáticos que daqui a alguns dias vão desenvolver sintomas clássicos, eles são potenciais transmissores”, disse a médica, em conversa telefônica.
À AFP, Selegatto explicou a diferença entre indivíduos verdadeiramente assintomáticos e os chamados pré-sintomáticos. “A gente tem pessoas que pegam o vírus, mas que não apresentam nenhum sintoma durante todo esse tempo e param de transmitir o vírus”, disse a infectologista.
“E a gente tem pessoas que pegam, se infectam com o vírus, o vírus fica na pessoa até desenvolver os sintomas. (...) Nesse período que ela ainda não desenvolveu os sintomas, ela transmite o vírus, é a fase pré-sintomática”, afirmou.
Esta distinção foi feita, também, pelo diretor do Instituto de Saúde Global da Universidade de Harvard, Ashish Jha, em publicações no Twitter comentando a declaração da OMS.
“Em primeiro lugar, cerca de 20% das pessoas infectadas provavelmente nunca desenvolvem nenhum sintoma. Elas são verdadeiramente assintomáticas”, escreveu o pesquisador, citando a prévia de um estudo. “E os outros 80% que têm sintomas? Muitos deles estão expelindo o vírus antes de desenvolver os sintomas. Tecnicamente, eles são pré-sintomáticos, não assintomáticos. Mas são assintomáticos no momento em que estão expelindo o vírus”, escreveu.
Essa dificuldade de distinguir entre assintomáticos e pré-sintomáticos justifica, para Selegatto, a implementação de medidas amplas de prevenção.
“O uso de prevenção para essas pessoas assintomáticas é para prevenir justamente a transmissão naquele momento que a gente não sabe se a pessoa está doente, se ela vai ficar doente, se ela vai desenvolver sintomas”, disse. “Então isso é uma coisa que a gente não consegue prever, por isso essa recomendação de que qualquer pessoa assintomática mantenha as medidas de prevenção”, completou.
Van Kerkhove, durante a transmissão de 9 de junho, compartilhou argumento semelhante, dando como exemplo o uso de máscaras. “Quando você coloca uma máscara e você está infectado, e você pode não saber disso ainda, porque há a possibilidade de transmissão assintomática ou de transmissão pré-sintomática, você reduz a oportunidade de transmitir [o vírus] para outra pessoa”.
Para a infectologista do Hospital Sírio-Libanês, este tipo de medida de prevenção é responsável por “interromper a cadeia de transmissão”, prevenindo, provavelmente, muitos casos de infecção, óbitos e hospitalização.
Até este dia 10 de junho, foram registrados mais de 7,2 milhões de casos do novo coronavírus no mundo, dos quais mais de 411 mil faleceram. Apenas no Brasil, são cerca de 739 mil casos e de 38 mil óbitos - o terceiro maior número total de mortes no mundo.
Em resumo, a OMS esclareceu a declaração de uma técnica da entidade, segundo a qual pacientes assintomáticos “raramente” transmitem a COVID-19: estes pacientes podem, sim, passar o coronavírus adiante. Tanto a organização como especialistas afirmaram que é difícil distingui-los de indivíduos pré-sintomáticos, tornando essenciais as ações de prevenção, como o isolamento social e o uso de máscaras.
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