Circula nas redes sociais desde 16 de março um vídeo no qual um homem que não se identifica denuncia que os infectologistas brasileiros assinaram um documento em que se comprometeram a não prescrever o chamado “tratamento precoce” contra a covid-19. Essa alegação, compartilhada mais de 1.300 vezes, é falsa. Apesar de alertarem para a falta de evidência científica desse tipo de medicação, o Ministério da Saúde e a Sociedade Brasileira de Infectologia negaram a existência da proibição.
“Denúncia grave. A Associação Brasileira de Infectologia, ABI, a qual tem apenas 4 integrantes e como presidente o pai do Boulos, isso mesmo o pai do Boulos, e bancada pela Pfizer e por meio dessa pseudoassociação proíbe que infectologistas possam dar parecer em favor”, diz uma das publicações compartilhadas no Twitter (1, 2, 3) e no Facebook (1, 2).
“tratamento precoce”, composto por medicamentos sem comprovação científica, como cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina. A denúncia principal do vídeo, que tem a duração de 2 minutos e 17 segundos, é a de que médicos teriam assinado um documento de uma suposta Associação Brasileira de Infectologistas que os proibiria de prescrever o chamado
“A Associação Brasileira de Infectologistas fez com que todos os infectologistas assinassem um documento onde eles ficam proibidos de medicar o tratamento precoce”, diz o homem no vídeo.
No entanto, em uma busca no Google pelo termo “Associação Brasileira de Infectologistas” não foi encontrado qualquer resultado. A entidade que reúne os médicos da área é a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Procurada pela AFP, a SBI negou que tenha formulado um documento que proíba qualquer conduta médica. “Isso não procede e não caberia à entidade propor esse tipo de ação”, esclareceu por e-mail a assessoria de imprensa da SBI.
No site da sociedade também não há menções a esse suposto documento.
No último 24 de janeiro, o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, afirmou em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo que a instituição não mudará o parecer nº 4/2020, de abril de 2020, sobre a autonomia dos médicos brasileiros na prescrição do tratamento precoce para covid-19.
Ribeiro argumenta que “a ciência ainda não concluiu de maneira definitiva se existe algum benefício ou não com o uso desses fármacos” e ressalta que “é decisão do médico assistente realizar o tratamento que julgar adequado, desde que com a concordância do paciente infectado —elucidando que não existe benefício comprovado no tratamento farmacológico dessa doença e obtendo o consentimento livre e esclarecido”.
Dias antes, entretanto, a Anvisa já havia ressaltado a inexistência de tratamento terapêutico específico para a doença.
Procurado pela AFP, o Ministério da Saúde garantiu que “os médicos têm autonomia para receitar a medicação adequada ao quadro de cada paciente, para que o tratamento seja o mais efetivo possível”.
A Anvisa informa que os medicamentos atualmente aprovados são os usados para tratar os principais sintomas da doença, como antitérmicos e analgésicos. Para casos em que há infecções associadas, são recomendados antibióticos.
Orientações da SBI sobre o “tratamento precoce”
Apesar de não ter proibido o tratamento precoce, a SBI não recomenda sua prescrição para o tratamento de covid-19.
Em 19 de janeiro deste ano, a SBI publicou uma nota com a Associação Médica Brasileira (AMB) na qual menciona a importância das vacinas e alerta que as melhores evidências científicas demonstram que até o momento nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no “tratamento precoce” para covid-19.
“Pesquisas clínicas com medicações antigas indicadas para outras doenças e novos medicamentos estão em curso. Atualmente, as principais sociedades médicas e organismos internacionais de saúde pública não recomendam o tratamento preventivo ou precoce com medicamentos, incluindo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”, apontam.
Dias antes, em seu perfil no Twitter, a SBI afirmou que não recomenda o tratamento precoce com qualquer medicamento porque estudos clínicos randomizados com grupo controle existentes até o momento não mostraram benefício e por alguns desses medicamentos causarem efeitos colaterais.
“Essa orientação da SBI está alinhada com as recomendações das seguintes sociedades médicas científicas e outros organismos sanitários nacionais e internacionais, como: Sociedade de Infectologia dos EUA (IDSA) e da Europa (ESCMID), Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH), Centros Norte-Americanos de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), Organização Mundial da Saúde (OMS) e Agência Nacional de Vigilância do Ministério da Saúde do Brasil (ANVISA)”, afirmou a sociedade, que anexou na rede social um documento com explicações mais detalhadas.
A AMB ressaltou em um boletim divulgado em 23 de março que, “infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina,ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da covid-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida”.
Apesar dos alertas sobre os medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, o presidente Jair Bolsonaro tem insistido nesse tipo de tratamento.
Antialérgicos e antitérmicos
Em outro trecho do vídeo, o homem fala que no estado de São Paulo os médicos “indicam um antitérmico e um antialérgico” e relaciona o procedimento ao aumento no número de mortes.
“Isso possivelmente faz com que a pessoa entre em crise e chegue aos hospitais tarde demais. Por isso esses números tão elevados. E assim como acontece em São Paulo, acontece em outros estados, porque os governadores têm essa atitude genocida com a população. Estão matando brasileiros”, completa.
O governo de São Paulo afirmou à AFP por e-mail que “todos os medicamentos prescritos por serviços estaduais de saúde estão baseados nos protocolos vigentes no SUS e são indicados após análise médica individualizada, de acordo com o quadro clínico do paciente”.
Ressaltou também que “é responsabilidade do médico prescrever remédios adequados para sinais e sintomas e, neste sentido, é perfeitamente cabível que antitérmicos sejam indicados para um paciente que apresenta febre, por exemplo”.
Para o infectologista Evaldo Stanislau Araújo, do Hospital das Clínicas, em São Paulo, essa alegação de que o tratamento com esses dois tipos de medicamento agrava o quadro dos pacientes, fazendo com que cheguem tarde demais aos hospitais, não procede.
“Não existe nada disso. Antitérmico e antialérgico não modificam em nada o desfecho (do caso)”, disse o médico em entrevista por telefone à AFP.
Araújo explicou que os antitérmicos são “absolutamente necessários” para os pacientes sintomáticos e que os antialérgicos anti-histamínicos podem ser indicados como um antigripal. Há, ainda, os antialérgicos com corticoides, que, segundo o infectologista, só podem ser usados para pacientes com algum grau de insuficiência respiratória.
Essa medicação, portanto, não piora a doença. “O que agrava a doença é não ter um monitoramento médico adequado”, com a medição de temperatura e da saturação de oxigênio no sangue, garantiu.
“O pai de Boulos”
Outra afirmação, que não aparece no vídeo, mas no texto das publicações viralizadas, é a de que “o pai de Boulos” seria o presidente dessa associação de infectologistas.
Marcos Boulos, pai do político Guilherme Boulos, do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), é infectologista e professor titular do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Ele não é presidente de nenhuma associação, mas integra o Centro de Contingência contra Covid-19, criado pelo governo do estado de São Paulo em fevereiro de 2020, e que, de acordo com a assessoria de imprensa do governo, continua atuante.
Esse conteúdo também foi checado pelo Fato ou Fake e pelo Estadão Verifica.
Em resumo, não é verdade que médicos tenham sido proibidos de prescrever o chamado “tratamento precoce” contra a covid-19. Apesar de alertar para a falta de evidência científica desse tipo de medicação, o Ministério da Saúde e a Sociedade Brasileira de Infectologia negaram a existência da proibição.