Publicações que promovem a nebulização com hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 circulam nas redes sociais desde 25 de fevereiro passado, com mais de 33 mil compartilhamentos. No entanto, não há nenhum estudo científico que comprove a eficácia do procedimento e, segundo especialistas consultados pela AFP, o procedimento pode agravar o quadro da doença.
“Hidroxicloroquina sendo aspirada na nebulização. A melhora é imediata. Maldito todos que impedem as pessoas de se curarem. Melhora Imediata”, diz uma das publicações compartilhadas em diferentes formatos no Facebook (1, 2, 3), no Instagram (1, 2) e no Twitter (1, 2).
Muitas postagens são acompanhadas por vídeos do que seria o procedimento de nebulização de hidroxicloroquina, mas sem que seja demonstrado claramente qual é a substância administrada aos pacientes. Também não foi possível identificar pelas imagens os locais onde esses procedimentos foram feitos.
Em comum às postagens há as afirmações sobre a melhora nos sintomas respiratórios da covid-19 após a nebulização com hidroxicloroquina.
No entanto, em uma pesquisa no Google não foi encontrado qualquer ensaio clínico que comprove a eficácia desse tipo nebulização para o tratamento da covid-19.
Sobre o suposto tratamento, há um relatório de autoria do médico Vladimir Zelenko e publicado no site da University of Texas Rio Grande Valley em 24 de janeiro deste ano.
No texto, Zalenko afirma que hidroxicloroquina nebulizada nos primeiros cinco dias de sintomas da doença resultou em melhora na respiração em pacientes infectados com a covid-19 e que a medicação usada por inalação tem vantagens em comparação com o comprimido de hidroxicloroquina ou em combinação com ivermectina.
Esse relatório, entretanto, em nada se assemelha a uma pesquisa científica. Não é informado o número de pacientes que foram submetidos ao suposto tratamento, nem há qualquer referência no texto a um grupo de controle com placebo para que seja feita uma comparação de resultados.
No final do texto, pode-se constatar uma afirmação esclarecendo que não se trata de um estudo clínico: “Este relatório é apenas para fins informativos de profissionais médicos”.
Zelenko tem defendido o uso da hidroxicloroquina desde o começo da pandemia do novo coronavírus, contando com a simpatia do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e de Jair Bolsonaro.
A cloroquina e a hidroxicloroquina são medicamentos de uso controlado e indicados no tratamento de algumas doenças autoimunes, como lúpus e artrite reumatoide, e da malária.
Essas medicações foram testadas para o tratamento de covid-19, mas sua eficácia nunca foi cientificamente comprovada, como já foi mostrado em outras verificações do AFP Checamos (1, 2).
Além disso, no começo deste mês, a Organização Mundial de Saúde (OMS), reforçou em seu guia de cuidados clínicos que a hidroxicloroquina não deve ser utilizada de maneira preventiva contra a covid-19.
Riscos
À AFP a presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, Irma De Godoy, ressaltou que, além de a hidroxicloroquina não ter eficácia comprovada contra a covid-19, o fato de um comprimido sólido ser usado para a nebulização torna esse procedimento ainda mais arriscado para pacientes.
“As medicações consagradas para uso em casos de asma e doença pulmonar crônica foram testadas para serem nebulizadas”, compara.
“O que aconteceu [no caso da nebulização de hidroxicloroquina] foi um experimento com seres humanos, sem avaliação de um comitê de ética local - dos hospitais, por exemplo - ou do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Não há nenhum projeto de pesquisa aprovado, não há nenhum trabalho publicado, nenhuma confirmação, nenhuma evidência de qualquer benefício. Pelo contrário, o que temos é esse experimento que possivelmente contribuiu para a morte de três pessoas”.
“Isso é totalmente ilegal, antiético, um charlatanismo”, denuncia Godoy.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul investiga a conduta da médica Eliane Scherer, que receitou por conta própria a nebulização com hidroxicloroquina para pacientes com covid-de do Hospital Nossa Senhora Aparecida, na cidade de Camaquã, na região sul do estado. A investigação foi aberta depois que três pacientes com covid-19 tratados com a nebulização morreram entre os dias 22 e 24 de março.
Depois de ser afastada do hospital, a médica que realizou a nebulização em pelo menos seis pacientes recebeu apoio do presidente Jair Bolsonaro, defensor frequente do chamado “tratamento precoce” da doença.
Para José David Urbanéz, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia, nebulizar partículas sólidas “pode agravar em muito a árvore respiratória do paciente, aumentando a inflamação”.
“É como se fosse uma poeira de local de indústria. Isso deveria ser punido exemplarmente. É mais um tipo de charlatanismo”, observa.
Godoy concorda e chama a atenção para outros efeitos adversos que podem ser desencadeados pela prática: “Essas substâncias não foram feitas para serem inaladas e podem resultar em laringite, traqueíte e broncoespasmos”.
Em nota, a Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia também alertou para os riscos do procedimento: “Em nenhuma diretriz para tratamento de nenhuma doença é recomendado o uso de comprimidos por via inalatória. O acúmulo desse material pode, inclusive, causar consequências a longo prazo como insuficiência respiratória crônica”.
Procuradas pela AFP, as fabricantes de hidroxicloroquina no Brasil EMS e Apsen reforçaram que o uso da medicação deve estar de acordo com as indicações previstas na bula.
“Não há estudos dos efeitos do Reuquinol [nome da medicação feito de sulfato de hidroxicloroquina] administrado por vias não recomendadas. Portanto, por segurança e para garantir a eficácia desse medicamento, a administração deve ser feita somente por via oral, conforme indicado em bula. Reforçando que não há aprovação de nenhum órgão regulador da saúde, nem da OMS, para sua utilização no tratamento da covid-19”, esclareceu a Apsen.
“A EMS orienta que a hidroxicloroquina, medicamento de uso oral, seja utilizada conforme as indicações da bula – para tratamento de malária, artrite reumatoide e lúpus – e sob prescrição médica”, reforçou a EMS.
Esse conteúdo também foi checado pelo Estadão Verifica e pelo Aos Fatos.