“Prender trabalhador agora é crime. Bolsonaro sanciona lei que permite processar criminalmente governadores e prefeitos tiranos”, garantem publicações amplamente compartilhadas em redes sociais desde o início de abril. As postagens se baseiam em um artigo que realmente foi sancionado, mas em uma lei contra a prática de ‘stalking’ - contatos forçados entre um agressor e a vítima - e não sobre a ação de autoridades para garantir o cumprimento das medidas de combate à covid-19.
Compartilhadas mais de 1.500 vezes no Facebook (1, 2, 3) e Twitter ao menos desde o último dia 3 de abril, as publicações citam como evidência o seguinte artigo da lei 14.132/2021:
“Constitui crime: ‘perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade’”.
Leia Mais
Imagens de banhistas expulsando guardas municipais da praia são de 2012A foto de Ivete Sangalo e marido rodeados de pessoas é anterior à pandemiaA CCJ aprovou apenas a admissibilidade da PEC sobre o voto impresso em 2019O artigo citado nas redes realmente foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro no último dia 1º de abril, mas não para coibir este tipo de ação.
Lei contra ‘stalking’
Uma busca pela lei 14.132/2021 mostra que ela foi proposta pela senadora Leila Barros (PSB) em março de 2019 - meses antes, portanto, da pandemia de coronavírus.
Em seu site, Barros explicou que o objetivo do Projeto de Lei era proibir a prática conhecida como ‘stalking’, que definiu como “tentativas persistentes de aproximações físicas, pedidos para encontros, recolhimento de informações sobre a vítima, envio repetido de mensagens, bilhetes, e-mails, perseguições e aparições ‘casuais’ nos locais frequentados pela vítima”.
Segundo a senadora, o PL foi inspirado por uma reportagem do programa dominical Fantástico, da Rede Globo, que contou a história da radialista Verlinda Robles, do Mato Grosso do Sul, que precisou mudar de cidade após começar a ser importunada por um ouvinte que se dizia apaixonado por ela. À reportagem, Robles contou ter recebido 25 ligações do homem em apenas um dia.
Em análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, no Senado, foi reforçado que o PL visava proibir a prática de ‘stalking’:
“No mérito, consideramos que a proposição é conveniente e oportuna. A perseguição é conhecida na legislação norte-americana como ‘stalking’ e foi criminalizada quando se buscou dar proteção às pessoas eram perseguidas de modo a temer por sua segurança e suportar grave sofrimento emocional. Em diversos outros países o ‘stalking’ também é crime”, diz o parecer.
Combate à violência contra a mulher
Desde 2019, o PL passou por diversas análises parlamentares, mas ainda não havia sido aprovado em março deste ano, quando a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) apresentou ao Congresso Nacional o “Pacote Basta”, documento que pedia diversas medidas para fortalecer o combate à violência contra a mulher.
Entre as providências, o documento defendia a tipificação da perseguição, citando que a medida já havia sido proposta pelo Projeto de Lei da senadora Leila Barros.
“No cenário atual de expressividade do número de ocorrências registradas de violência de gênero, torna-se imprescindível que os atos de perseguição sejam reprimidos, especialmente os praticados contra vítimas do sexo feminino e por parceiros íntimos”, justificam os autores do Pacote.
Em 9 de março, o PL foi aprovado pelo Senado e enviado ao Palácio do Planalto para sanção presidencial. No dia 23 do mesmo mês, a presidente da AMB, Renata Gil, visitou o presidente Jair Bolsonaro para pedir que o Projeto de Lei fosse sancionado. “É pela vida das mulheres”, escreveu no Twitter, no dia.
O PL foi finalmente sancionado por Bolsonaro no último dia 1º de abril, com a presença da juíza criminal Renata Gil.
Questionada pelo AFP Checamos, no último dia 12 de abril, sobre as publicações que garantem que a lei 14.132/2021 tem como objetivo punir autoridades que prenderem trabalhadores, a presidente da AMB afirmou que essa interpretação é “completamente absurda e não encontra nenhum amparo na realidade”.
“O objetivo do ‘Pacote Basta!’ é fortalecer o combate à violência contra a mulher. Todos os dispositivos sugeridos visam facilitar as denúncias por parte das vítimas e tornar mais rígidas as penas impostas aos agressores. A proposição em nenhum momento diz respeito à possibilidade de se processar criminalmente governadores ou prefeitos”, acrescentou.
Desde o início da pandemia, o governo federal tem defendido medidas menos rígidas para combater a covid-19, indo contra ações tomadas por representantes locais. O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, no entanto, que estados e municípios podem tomar as medidas que acharem necessárias para reduzir a propagação do vírus, inclusive determinando o fechamento de comércios.
No último dia 18 de março, o presidente Jair Bolsonaro chegou a entrar com uma ação de inconstitucionalidade no STF contra algumas medidas adotadas por governos estaduais para conter a pandemia. A ação foi rejeitada, contudo, pelo ministro Marco Aurélio Mello, que reforçou a competência de estados e municípios na determinação de ações de controle da crise sanitária.
Conteúdo semelhante a este também foi verificado pelos sites Agência Lupa e Fato ou Fake.