Não é verdade que o governo do presidente Jair Bolsonaro tenha feito o Nordeste produzir trigo pela primeira vez, como sugerem publicações compartilhadas mais de 54 mil vezes desde 11 de abril passado nas redes sociais. Dados oficiais mostram que agricultores da Bahia já investiam no cultivo do grão desde meados da década de 1980. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) informa ainda que o plantio de trigo na Bahia está consolidado desde 2016, com uma área que varia entre 3 e 5 mil hectares por ano.
“Nordeste colhe trigo pela primeira vez”, afirma o texto de uma das imagens compartilhadas no Facebook (1, 2, 3), no Instagram (1, 2) e no Twitter (1, 2).
Uma alegação semelhante também circula em sites (1, 2, 3, 4).
Esses conteúdos, na verdade, distorcem informações divulgadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), em setembro de 2020. Na época, o governo federal anunciou a primeira colheita do trigo no Ceará — e não no Nordeste — com base em resultados obtidos por uma agroindústria no estado, com apoio técnico da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
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Mas apesar de a data do primeiro plantio no Ceará coincidir com o primeiro mandato de Bolsonaro, o plantio de trigo no Nordeste não é recente, de acordo com a Embrapa Trigo.
“Na Bahia, o trigo é cultivado desde meados dos anos 1980, principalmente na região Oeste”, relatou a instituição de pesquisa, por e-mail ao Comprova - projeto de verificação colaborativa do qual o AFP Checamos faz parte.
Essa informação é confirmada pelos dados oficiais de safras no Brasil. A Pesquisa Agrícola Municipal do IBGE informa a produção do cereal na Bahia nos anos de 1986 e 1987. Depois, ela é retomada por um curto período, entre os anos de 2003 a 2005, com o plantio se consolidando a partir de 2015.
A série histórica da Conab aponta a existência de produção de trigo na Bahia primeiro em 1986, 1988, 1989 e 1990; depois entre os anos de 2003 e 2005; e finalmente com um investimento contínuo a partir de 2016. A área plantada variou entre 3 e 5 mil hectares nos últimos cinco anos.
Histórico do plantio de trigo no Estado da Bahia
Infogram
Nenhuma dessas fontes aponta a existência de colheita fora da Bahia em toda a série histórica. Porém, de acordo com a Embrapa, já foram realizados plantios em nível experimental nos estados de Alagoas e Ceará. Essas lavouras representam uma novidade na medida que a produção comercial na Bahia ocorre em áreas do Cerrado, bioma que não é compartilhado por esses dois outros estados do Nordeste.
Segundo informações publicadas pela Embrapa em setembro do ano passado, o oeste baiano faz parte do Matopiba — região que integra o Cerrado do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e da Bahia. O trigo é plantado principalmente em sistema irrigado, em rotação com a soja, o milho ou o algodão, enquanto o trigo em sequeiro é pontualmente testado por alguns produtores e apresenta maior risco por conta dos solos arenosos da região, com menor capacidade de retenção de água.
De acordo com a Embrapa, o trigo da Bahia é comercializado em moinhos da região, da mesma forma que o produto oriundo de estados do Centro-Oeste.
Experimentos no CE e em AL
A Embrapa começou a fazer plantios experimentais de trigo em outras regiões do Nordeste, fora da Bahia, a partir de 2019, de acordo com sumário executivo da pesquisa encaminhado pelo órgão ao Comprova.
Esse material mostra que os testes estão inseridos em um projeto de tropicalização do trigo, que teve início na década de 1920 e foi intensificado a partir da década de 1980. A pesquisa se concentra em estudos técnicos de viabilidade da cultura e no desenvolvimento de variedades de sementes adaptadas para o Cerrado.
Ainda segundo o documento, a Embrapa instalou experimentos em Alagoas e no Ceará. O município de Anadia sediou os testes em Alagoas, em 2019 e 2020. As cultivares, nome dado aos diferentes tipos de sementes comercializadas junto aos agricultores, que mostraram melhor adaptação às condições ambientais da região foram a BRS 264 e a BRS 404.
Em conversa por telefone com o Comprova, a pesquisadora da Embrapa Lizz Kezzy de Morais mencionou ainda experimentos no município alagoano de Porto Calvo. Essa cidade também é citada em um artigo da Embrapa sobre o plantio no Estado em 2020, mas não foi incluída no sumário.
No Ceará, as pesquisas foram conduzidas primeiro em áreas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). As parcelas foram desenvolvidas nos campi localizados nas cidades de Limoeiro do Norte e Tianguá. Foram avaliadas três cultivares: BRS 254, BRS 264 e BR 18.
O sumário executivo mostra ainda que, em 2020, a Embrapa acompanhou outro experimento no município de Tianguá, em uma área de cinco hectares, implantada pela empresa Santa Lúcia Alimentos. Após a colheita, em setembro de 2020, o Ministério da Agricultura soltou uma nota sobre o evento, com o título “Ceará planta trigo pela primeira vez e colheita surpreende”. O texto menciona os testes anteriores como pequenos ensaios exploratórios.
Esse é o texto que serve de base para as peças publicadas por sites (1, 2, 3, 4) com a falsa afirmação de que esta seria a primeira colheita de trigo no Nordeste. É possível notar que são reproduzidos os mesmos números publicados pelo Mapa e até uma declaração na íntegra da ministra Tereza Cristina. Os sites alteraram o título para “Governo Bolsonaro faz com que Nordeste produza trigo pela 1ª vez e colheita é surpreendente”.
Ação de longo prazo
Mesmo que o experimento no Ceará fosse realmente a primeira colheita de trigo no Nordeste, ignorando o histórico de cultivo na Bahia, não seria correto atribuir esse fato unicamente ao governo Bolsonaro. A introdução do cultivo nessas novas regiões foi possível após anos de desenvolvimento e pesquisa da Embrapa para a tropicalização da cultura.
Todas as variedades de sementes citadas pela Embrapa e pelo Ministério da Agricultura em seus materiais de divulgação sobre os plantios de Anadia, Porto Calvo, Limoeiro do Norte e Tianguá estão no mercado, no mínimo, há seis anos. A instituição informa as seguintes datas de lançamento dos produtos: BRS 264 e BRS 254 (2005), BRS 404 (2014), BRS 394 (2015) e BR 18 (1986).
O Comprova perguntou à Embrapa de qual projeto especificamente fazem parte as pesquisas em Alagoas e no Ceará. A instituição respondeu que “as pesquisas são custeadas por projetos da Embrapa que trabalham o desenvolvimento do trigo em todo o Brasil” e encaminhou uma página em que estão listados todos os seus projetos.
Um dos materiais publicados pela instituição aponta que os experimentos em Anadia e Porto Calvo integraram o projeto “Melhoramento genético de trigo para o Brasil 2017-2021”. A equipe do Comprova encontrou outro projeto com o nome praticamente idêntico, “Melhoramento genético de trigo para o Brasil 2012-2016”, relativo aos cinco anos anteriores.
O Comprova perguntou novamente para a Embrapa se esse seria o principal projeto relacionado aos testes nas novas áreas do Nordeste fora da Bahia. A instituição respondeu que as pesquisas de melhoramento genético de trigo são contínuas, renovadas periodicamente, e que não existe um projeto específico para a região do Nordeste: “Tudo é trigo tropical para nós”.
A Embrapa afirmou ainda que busca parceiros para ampliar os cultivos experimentais em novas áreas nos estados de Pernambuco, Maranhão e Piauí e que não recomenda o investimento dos agricultores enquanto as análises de viabilidade do grão não forem concluídas e as localidades não estiverem contempladas no zoneamento agrícola de risco climático do trigo.
Procurado pelo Comprova, o Ministério da Agricultura não respondeu se divulgou em algum momento que o Nordeste teria plantado trigo pela primeira vez, nem se as informações foram retiradas de contexto pelas postagens na internet.
Esse texto faz parte do Projeto Comprova. Participaram jornalistas do Estadão, do Uol e do jornal O Povo. O material foi adaptado pelo AFP Checamos.