Um estudo que mostraria que a ivermectina reduziu em até 76% o número de hospitalizações entre casos de covid-19 na Cidade do México foi compartilhado mais de 52 mil vezes nas redes sociais desde meados de maio.
A pesquisa foi divulgada pelo governo da capital mexicana em 15 de maio, mas não comprova a segurança e a eficácia do uso do vermífugo contra o novo coronavírus. Os dados são preliminares e não foram revisados e validados por outros cientistas.
Além disso, o estudo não é um ensaio clínico, mas foi feito por meio de consulta a bancos de dados, buscando medir os resultados da entrega de um kit composto por três medicamentos, e não somente da ivermectina.
“É um crime negar tratamento precoce”, diz uma das publicações compartilhadas no Facebook (1, 2, 3), no Instagram (1, 2, 3) e no Twitter (1, 2, 3).
Pré-publicação do governo mexicano
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De acordo com o documento, pesquisadores ligados ao governo teriam identificado uma “redução significativa” na chance de hospitalização entre pacientes que receberam um kit médico baseado em ivermectina. Esse efeito variou entre 52% e 76% dependendo do modelo de análise, diz o texto — que defende a continuidade da distribuição da droga no sistema de saúde contra a covid-19, mesmo sem eficácia e segurança comprovadas cientificamente.
A pesquisa está disponível em formato de pré-publicação (quando os pesquisadores divulgam os artigos mesmo sem terem sido avaliados por outros especialistas ou publicados em revistas científicas) em uma plataforma chamada SocArXiv Papers. Isso permite que os resultados sejam difundidos mais rapidamente na área, mas também exige cautela na sua leitura e os resultados não devem ser tomados como definitivos.
A pesquisa é assinada pelo chefe da Agência Digital de Inovação Pública do México, José Merino; por um diretor do Instituto Mexicano de Seguridade Social, Victor Hugo Borja; pela titular da Secretaria de Saúde da Cidade do México, Oliva López Arellano, pelo diretor da pasta, José Alfredo Ochoa, e por outros três funcionários da agência de inovação.
A publicação repercutiu no Brasil a partir de uma publicação da rádio Jovem Pan. Depois, a informação foi replicada por políticos e páginas alinhadas com o governo federal nas redes sociais, em defesa do chamado “tratamento precoce”.
O que diz o estudo
A pesquisa divulgada pelo governo da Cidade do México é uma análise retrospectiva de dados sobre uma política pública controversa no país. Segundo o artigo, a cidade conta com cerca de 230 unidades móveis conhecidas como “quiosques”, responsáveis por atender casos suspeitos de covid-19 fora do ambiente hospitalar, incluindo a realização de testes de antígenos, entrega de kits médicos e monitoramento posterior por contato telefônico, através de um call center conhecido como Locatel.
A partir de 28 de dezembro de 2020, começaram a ser fornecidos kits médicos na cidade a pacientes com casos leves e moderados da doença. Segundo o artigo, esses kits continham ivermectina (quatro comprimidos para dois dias), ácido acetilsalicílico (conhecido popularmente como aspirina, para 14 dias) e paracetamol (10 comprimidos para o caso de sintomas). Teriam sido entregues 83 mil kits em um mês.
Um jornal local informou que também estavam sendo entregues junto ao conjunto de remédios o antibiótico azitromicina e equipamentos de apoio, como máscaras para os pacientes e seus familiares, álcool em gel e oxímetro, aparelho que mede o nível de oxigênio no sangue e é indicado para acompanhamento de doentes em cuidados domiciliares. Essa informação não é mencionada no artigo do governo da Cidade do México.
Os autores da pesquisa fizeram uma análise estatística a partir de três fontes diferentes. Eles pegaram o total de casos reportados entre 23 de novembro de 2020 a 28 de janeiro de 2021, os registros de internados em hospitais públicos até 8 de fevereiro de 2021 e as entradas no sistema de acompanhamento do Locatel. Esses dados foram cruzados por meio do código de identidade das pessoas atendidas.
Para avaliar o impacto do kit médico, eles presumiram primeiro que todas as pessoas que testaram positivo e tiveram sintomas nos 30 dias depois da data de implementação do programa, em 28 de dezembro, receberam e usaram os remédios (77.381 casos). Eles compararam então com o resultado das pessoas testadas entre 23 de novembro e o início do programa, que não receberam as drogas nos postos de saúde (156.468 pessoas).
Os dados então foram equiparados por um modelo estatístico. A pesquisa separou os casos pelo desfecho da hospitalização, a disponibilidade do tratamento e por algumas características, como sexo, idade e comorbidades.
Segundo o levantamento final, foram identificadas 311 hospitalizações no grupo ativo (0,4%), que teriam recebido e usado os remédios, contra 1.884 (1,21%) no grupo controle, que não teriam passado pela intervenção.
Os registros do Locatel serviram para construir uma segunda planilha, em que foram contabilizadas as pessoas que informaram ao serviço de acompanhamento telefônico terem recebido o kit de remédios (18.074 pessoas) e aquelas que declararam não ter recebido (57.598 pessoas). O objetivo era verificar se a relação entre os dados se mantinha dessa maneira, o que os autores afirmaram ter acontecido.
“Em todas as especificações, encontramos um efeito negativo significativo do kit médico baseado em ivermectina na probabilidade de hospitalização entre os pacientes que o receberam versus aqueles que não receberam”, afirma o artigo. “Dependendo da sub-amostra, o efeito varia entre 50% e 76% de diferença de chance de hospitalização entre pacientes tratados e não tratados, estatisticamente significante em todos os casos”.
Críticas ao artigo
O estudo tem recebido críticas quanto ao método de avaliação e à conclusão apresentada. Um dos principais questionamentos é sobre a atribuição do resultado ao remédio ivermectina, quando na realidade os kits continham três medicamentos pelas informações do próprio artigo, além de equipamentos de apoio e outras orientações básicas de saúde.
Além disso, a pesquisa não é capaz de determinar se as pessoas efetivamente usaram as medicações, se tomaram no período correto e se receberam drogas adicionais para o tratamento dos sintomas. O mesmo vale para o grupo controle, que os autores do estudo assumem que não usou o trio de remédios apenas porque não recebeu o kit nos postos de atendimento. Em outras palavras, não se pode estabelecer uma relação de causalidade entre o uso de ivermectina isolado e a suposta baixa nas internações.
O pesquisador Omar Yaxmehen Bello-Chavolla, especialista em estatística aplicada do Instituto Nacional de Geriatria da Cidade do México e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), apontou ainda uma série de problemas metodológicos na pesquisa em um fio no Twitter. Ele sustenta que os dois períodos de coleta de dados não são comparáveis e podem ter influenciado nos resultados, ainda que os autores tenham tentando mitigar esse efeito através de modelagem estatística.
O motivo é que, antes do início do fornecimento do kit, o número de hospitalizações diárias era menor na Cidade do México, relata Bello-Chavolla. Diante da maior ocupação nos hospitais na época da intervenção, os critérios adotados pelos médicos para admitir novos pacientes podem ter sido mais rigorosos. “Saturação hospitalar reduz a probabilidade de hospitalização de casos leves”, pondera.
O pesquisador reproduziu uma das análises estatísticas mencionadas pelo estudo em cima dos dados disponibilizados no GitHub e encontrou outros problemas. Ele identificou, por exemplo, que 56% dos casos foram eliminados da amostra por não conterem dados sobre entrega ou não do kit e, nestes, havia 959 casos com registro de hospitalização. Esse fato demonstra que os autores não definiram previamente como a pesquisa seria feita.
A amostra contabilizada no estudo foi de 57.581 casos sem kit contendo 673 internados, contra 18.074 casos com kit e 56 internados. Nesse ponto, a diferença entre características dos grupos no momento do matching (por sexo, idade e comorbidades) sugere a existência de fatores confundidores prévios, segundo o cientista, o que coloca em dúvida a qualidade da comparação.
Consultado pelo Comprova - projeto de verificação colaborativa do qual o AFP Checamos faz parte - Max Igor Lopes, infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), disse que o resultado do estudo “chama a atenção”, mas destaca a presença de limitações importantes, como a presença de três remédios no kit médico e a falta de garantias de que os grupos não passaram por outro tipo de intervenção no período analisado.
“Você não consegue falar que é a ivermectina, porque a estratégia era ivermectina e AAS (e paracetamol). E eles não avaliaram se quem eventualmente ia para a linha de remédio não fazia uso de outras medicações com mais facilidade. Às vezes, quem está mais propenso a tomar um remédio também toma outros”.
Lopes esclarece que o estudo não é suficiente para comprovar eficácia do vermífugo contra a covid-19. “Você não consegue ter, em um estudo populacional, o controle das variáveis. Toda vez que analisar a população, você vai ter esse tipo de viés”, aponta. Ele também ressalta que os dados ainda não foram endossados por outros cientistas. “Para ter validade, precisa ser mais bem discutido, publicado de verdade em uma revista científica. É um sinal positivo, mas ainda precisamos entender qual o real benefício de cada droga que foi utilizada”.
Também procurado pelo Comprova, Alexandre Zavascki, infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) afirmou encarar o estudo com “ceticismo total”. Ele contesta o fato de os autores apresentarem a pesquisa como um quase-experimento. “O quase experimento é um ensaio clínico em que se apresenta uma intervenção ao paciente, só que o seu controle normalmente é histórico. Esse é o desenho clássico. Eles teriam que ter convocado pacientes e dito que eles entrariam em um estudo, que iriam aplicar a ivermectina para ver o desfecho”.
Mas, para Zavascki, não é o caso desse estudo. “Não tem nenhum critério para avaliar se os pacientes realmente tomaram aquilo, em que momento eles tomaram, não tem avaliação de efeito adverso. Não é uma pesquisa de excelência, um estudo sério, pelo menos da forma como está apresentado. E colocam ainda no início do segundo parágrafo da discussão que seria um ‘grande ensaio de intervenção não randomizado’. Não é um ensaio, eles pegaram uma base de dados”.
O professor da UFRGS entende ainda que faltou transparência na apresentação dos métodos e dos resultados no artigo, como quando os autores dizem ter pareado os casos por meio de um método computacional e balanceado variáveis para checar a existência de fatores de confusão na amostra. “Em pesquisa científica, não basta citar o método, precisa mostrar como fez aquela seleção, aquele controle das variáveis”.
Outro aspecto apontado é que os pesquisadores não mencionam a aprovação por um comitê de ética, necessária para o teste de qualquer terapia médica em humanos.
Ivermectina
A ivermectina é um medicamento recomendado para o tratamento de doenças causadas por parasitas, como sarna e piolho, segundo registros do bulário eletrônico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O fármaco entrou no panorama da covid-19 depois que uma pesquisa na Austrália identificou que a droga era capaz de eliminar o novo coronavírus in vitro, ou seja, em uma cultura de células em laboratório.
A professora do Departamento de Farmácia da Universidade de Brasília (UnB), Djane Braz, lembra que esse tipo de resultado in vitro não garante que o remédio funcione nos seres humanos. “Existe um princípio básico da ação de qualquer fármaco no nosso organismo, chamado de farmacocinética”, explica. “É estudar o que o nosso corpo faz com um fármaco, como ele é absorvido e chega até o local onde ele deve fazer o efeito esperado. Para que qualquer fármaco tenha efeito é preciso que ele chegue no local de ação e na dose certa”.
No caso da ivermectina, a questão é saber se a dose que as pessoas ingerem é suficiente para que chegue ao pulmão e demonstre efeito antiviral sobre o SARS-CoV-2. “Respondendo a essa questão, já foram publicados dois artigos mostrando que a dose máxima já testada nos seres humanos não atinge a dose necessária para ter efeito antiviral”, relata. “Mesmo usando uma dose 10 vezes maior do que a aprovada hoje para tratar verminoses, não conseguimos chegar na dose necessária para ter efeito antiviral nos pulmões”.
Braz acredita que a dose utilizada no kit analisado pelo estudo mexicano provavelmente não produziu efeitos adversos significativos, como anunciaram as autoridades porque a dosagem se assemelha com aquelas recomendadas para tratar verminoses. “O problema é que temos visto um uso indiscriminado deste fármaco, com o objetivo de prevenção da covid-19, com pessoas utilizando ivermectina a cada 15 dias. Este sim pode causar toxicidade. No tratamento antiparasitário, as doses são anuais, e não quinzenais”, alerta.
Existem diversos estudos clínicos em pacientes com covid-19 avaliando a eficácia e a segurança do tratamento com ivermectina atualmente. Os principais órgãos mundiais de saúde não recomendam a utilização da droga fora desse tipo de pesquisa. É o caso da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), por exemplo. A Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) também contraindicam a utilização do remédio para a covid-19 fora de ensaios clínicos randomizados.
No Brasil, o chamado “tratamento precoce”, que inclui a ivermectina, foi repudiado por entidades médicas. A atualização mais recente da Anvisa, publicada em julho do ano passado, diz que “não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da covid-19, bem como não existem estudos que refutem esse uso”.
O AFP Checamos verificou outros conteúdos (1, 2) sobre a suposta eficácia da ivermectina que circularam nas redes sociais em meio à pandemia.
O México soma mais de 220.800 mortes desde o início da pandemia. Com esses números, o país ocupa o 15º lugar no mundo em número de infecções e o quarto como o país com mais mortes por pandemia, atrás de Estados Unidos, Brasil e Índia, de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins.
Esse texto faz parte do Projeto Comprova. Participaram jornalistas do Estadão e do Correio. O material foi adaptado pelo AFP Checamos.