Em um vídeo compartilhado centenas de vezes no Facebook e no Twitter desde 23 de junho de 2021, um apresentador australiano do Sky News diz que as companhias aéreas, especialmente russas e espanholas, "aconselham as pessoas que foram vacinadas a não viajar".
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Esse vídeo foi compartilhado mais de 600 vezes em português desde 23 de junho de 2021. Publicações semelhantes também viralizaram em outros idiomas, como francês e holandês.
Diversas organizações de transporte aéreo asseguraram à AFP que não há discussão alguma sobre um possível risco para as pessoas vacinadas que viajam de avião. Além disso, os trombos – como também são chamados os coágulos sanguíneos – que podem ocorrer em viagens de avião muito longas e os trombos, raros, associados à vacina contra covid-19, são problemas distintos, de acordo com o que vários especialistas explicaram à AFP.
Onde surgiu esta informação?
O vídeo compartilhado nessas postagens foi retirado de uma coluna que foi ao ar em 11 de junho de 2021 na versão australiana do Sky News, apresentada por Cory Bernardi, um ex-parlamentar. Nesse programa, o apresentador denuncia os “plutocratas sedentos pelo poder”, que teriam “ocultado fatos” e põe em questão a vacina contra a covid-19. No entanto, a versão que circula nas redes foi manipulada, o que é possível identificar a partir da comparação entre o áudio do vídeo e o conteúdo do podcast, liberado pela emissora.
“Em diferentes partes do mundo, as companhias aéreas agora aconselham pessoas que foram vacinadas a não voar”, disse ele aos 7 minutos e 16 segundos. “As companhias aéreas na Espanha e Rússia estão aconselhando as pessoas que foram vacinadas contra o coronavírus a não viajar por conta do risco de coágulos sanguíneos. Esse é um risco conhecido de voos longos, mas é aparentemente exacerbado pelos potenciais efeitos colaterais das vacinas da covid-19”, acrescentou.
A fonte em que ele se baseia é um blog alemão, “Uncut-News”, cujo artigo sobre o assunto cita várias fontes russas. A principal delas se refere a um blog em holandês verificado pela AFP no início de junho.
Viajantes vacinados
Questionada em 3 de junho de 2021, a porta-voz da associação de companhias aéreas, Airlines for Europe (A4E), que representa 70% do transporte aéreo europeu, garantiu à AFP que “não haverá tais discussões entre as companhias aéreas sobre a proibição de voar, nem para os passageiros vacinados, nem para os não vacinados”.
“A vacinação é um elemento crucial na gestão da pandemia, e o aumento dos níveis de imunização está permitindo o retorno gradual da liberdade de circulação, inclusive para viagens aéreas”, disse Jennifer Janzen em 3 de junho de 2021.
Uma porta-voz da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) também disse à AFP em maio que ela não tinha “conhecimento de nenhuma reunião entre companhias aéreas para discutir a proibição ao transporte de passageiros vacinados”. “Os passageiros vacinados devem ter permissão para cruzar as fronteiras sem a necessidade de testes ou de quarentena”, acrescentou ela.
A Iberia, companhia aérea espanhola, desmentiu as informações virais. “Nunca fizemos nenhuma recomendação ou advertimos aos nossos clientes que não voem” se estiverem vacinados, afirmou ao AFP Checamos.
Ao contrário do que alegam as publicações virais, a principal companhia aérea russa, Aeroflot, anunciou em comunicado à imprensa, publicado em 13 de maio de 2021, o lançamento da campanha “Miles for Vaccination”. A ação deve presentear 10.000 passageiros da empresa vacinados com 10.000 milhas, permitindo o acesso a certas vantagens, como descontos. “Uma campanha de vacinação em grande escala está em andamento na Rússia. Alcançar a imunidade coletiva é nossa responsabilidade comum. Promover a vacinação é nossa contribuição para a retomada total do transporte aéreo e o conforto de nossos passageiros”, disse o CEO da empresa no comunicado.
Recomendações da ANAC
Uma das publicações compartilhadas no Twitter, afirma que a recomendação para que pessoas vacinadas não viajem de avião acontece “até no Brasil”.
No entanto, a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) comunicou em nota ao AFP Checamos em 24 de junho de 2021 que “nunca afirmou que passageiros vacinados contra a Covid-19 possuem restrições para viagens de avião. Também é inverídica a afirmação, pela Agência, de que possam surgir coágulos sanguíneos em passageiros após se vacinarem e voarem de avião”.
A agência também disse desconhecer estudos ou recomendações que tratem de possíveis surgimentos de coágulos em passageiros do transporte aéreo: “Em abril deste ano, a ANAC, com base em recomendações médicas internacionais, comunicou aos médicos examinadores e serviços médicos de operadores aéreos que reforcem aos pilotos a necessidade de comunicação de qualquer sintoma que possa ser relacionado a efeitos colaterais de vacina para Covid-19, conforme previsto no Regulamento Brasileiro de Aviação Civil nº 67, item 67.15(c). Esses possíveis efeitos colaterais podem alterar a capacidade cognitiva de pilotos e, por isso, se solicitou o reforço de tal comunicação, o que não se estende a nenhum outro profissional do setor ou a passageiros”.
Apesar disso, a ANAC assegurou que “não há relatos de efeitos colaterais que coloquem em questionamento a segurança das vacinas aprovadas, nem a segurança das operações aéreas, por meio do monitoramento feito com os pilotos”.
Em março de 2021, a agência emitiu um comunicado, no qual indicou que pilotos se afastassem por 48h após a vacinação, para “garantir a segurança das operações por conta de possíveis reações adversas.”
Tipos de coágulos sanguíneos
Existem dois tipos de vacinas contra a covid-19: as vacinas de RNA mensageiro (mRNA) desenvolvidas recentemente (Pfizer-BioNTech e Moderna) e as vacinas baseadas em vetores virais (AstraZeneca e Johnson, entre outras), que já estão em uso há décadas. O funcionamento das vacinas de mRNA é explicado neste vídeo da AFP.
Em abril de 2021, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) anunciou que os coágulos sanguíneos deveriam estar na lista de efeitos colaterais “muito raros” das vacinas AstraZeneca e Johnson & Johnson, contra a covid-19. Ambas vacinas são baseadas em vetores virais. No mês seguinte, a agência afirmou que não havia “nenhuma indicação até o momento” que permitisse levantar suspeitas sobre uma ligação entre as vacinas de mRNA e a trombose.
Já a trombose desencadeada por longos voos é significativamente diferente daquela associada a efeitos colaterais raros de certas vacinas contra covid-19.
“O fenômeno específico do coágulo sanguíneo denominado VITT (acrônimo do nome técnico Trombocitopenia Trombótica Imune Induzida pela Vacina em inglês), que foi considerado um efeito colateral raro para um ou talvez dois tipos de vacinas da covid, é um distúrbio diferente dos coágulos sanguíneos na perna e/ou pulmonares, que podem estar associados à imobilidade, após cirurgias, lesões nos membros, repouso prolongado na cama ou, às vezes, permanecer sentado por muito tempo durante a viagem”, explicou à AFP em maio o consultor médico da Iata, David Powell.
Ele acrescentou que “os casos relacionados a longas viagens (por via aérea, ferroviária ou rodoviária) geralmente têm fatores de risco pré-existentes”.
Marie-Antoinette Sevestre-Pietri, professora de medicina vascular do Hospital Universitário de Amiens na França e presidente da Sociedade Francesa de Medicina Vascular, também confirmou à AFP em maio que os dois tipos de trombose não têm nada em comum.
“A trombose associada a viagens aéreas é um fator de risco que conhecemos há mais de dez anos”, explicou ela. Em 2007, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma alerta sobre os riscos de trombose venosa durante viagens longas.
Já a chamada trombose “atípica” causada por certas vacinas em casos raros, é uma “trombose imunológica”. “É uma alergia a componentes da vacina que vão ativar a coagulação com o aparecimento de coágulos sanguíneos espalhados ou em locais incomuns, como nas veias cerebrais ou nas veias digestivas”, acrescentou a professora.
“Não há absolutamente nenhuma razão” para que uma viagem de avião favoreça a trombose atípica ligada à vacina, disse a professora Sevestre-Pietri, acrescentando que não tinha conhecimento de “nenhum caso descrito”.
As vacinas AstraZeneca e Janssen foram limitadas desde meados de março a maiores de 55 anos na França (41 anos na Bélgica), porque os raros casos de trombose atípica (associada a um distúrbio de coagulação ou localizada em um local incomum) têm sido vistos principalmente em pessoas mais jovens. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendou em maio de 2021 a suspensão da aplicação da vacina AstraZeneca em mulheres grávidas. A decisão se deu por conta da morte de uma gestante por acidente vascular cerebral, após ter recebido uma dose da vacina.