Publicações que afirmam que aviões e pássaros não sobrevoam a Kaaba, local sagrado dentro da Grande Mesquita de Meca, por esta ser "um centro de atração magnética", foram compartilhadas mais de 1,7 mil vezes desde 2019 e voltaram a circular em 2021. O texto acrescenta que esse magnetismo é "confirmado pela ciência". No entanto, o local de peregrinação para muçulmanos tem seu espaço aéreo fechado não por atração magnética, mas por motivos religiosos, segundo geofísicos e funcionários da aviação civil.
“Você sabe por que é proibido voar sobre Kaaba”, questionam as publicações, que circulam há pelo menos três anos (2019, 2020, 2021). “A Kaaba é o centro da terra. Está no meio da terra”, afirma o texto. “E por ser o centro de gravidade, naturalmente atrai cargas magnéticas para esse local”, acrescenta. Segundo os usuários, “é impossível sobrevoar a Ka'abah, seja por pássaros ou mesmo por aviões” e “isso é confirmado pela ciência”.
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As anomalias magnéticas
Segundo cientistas consultados pela AFP, a atração magnética em Meca é uma hipótese geofísica infundada, que mistura dois elementos não relacionados: magnetismo e gravidade. O primeiro é um "campo de força" que "se aplica a qualquer objeto magnetizado", explicou Vincent Lesur, chefe dos Observatórios Magnéticos do Instituto de Física do Globo de Paris (IPGP). Quanto à gravidade, esta “é a atração de uma massa pela outra”. "Para ser um centro de gravidade, tem que ser uma massa, e a massa da Kaaba em relação à massa da Terra é insignificante", disse este especialista em geomagnetismo.
Pesquisador do Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica (CNRS), Julien Aubert, especialista em dinâmica de fluidos, explicou à AFP que a Terra possui um campo magnético “que se origina de seu núcleo fluido”, no centro da Terra, e “não em Meca”.
O núcleo terrestre, girando sobre si mesmo, gera uma corrente elétrica que, "circulando em meio condutor cria campo magnético", explicou François Daviaud, do Instituto de Raios Múltiplos de Saclay, em um artigo para uma revista científica. Há um "efeito dínamo", resumiu Lesur.
Por exemplo, "quando você tem uma bússola, a agulha é magnetizada e se alinha com os campos magnéticos, na direção do campo local", disse Lesur. Na Terra, a agulha se alinha automaticamente em direção ao norte magnético, onde as linhas do campo magnético da Terra convergem. Entretanto, o Polo Norte magnético não é o mesmo que o geográfico, uma vez que o primeiro se move.
Por outro lado, na superfície da Terra existem anomalias magnéticas, "variações do campo magnético em relação ao campo magnético global geral devido às rochas magnetizadas", detalhou o geofísico Lesur. São “bem mapeadas por satélites geomagnéticos e estudos aeromagnéticos", que medem o campo magnético da Terra para detectar variações locais, e "nada de particular aparece em Meca", completou Julien Aubert.
Existem anomalias magnéticas, em estudo permanente, em várias partes do globo, como na Suécia, no Atlântico Sul, no Canadá, em Bangui, capital da República Centro-Africana, e em Kursk, ao sul de Moscou.
Além disso, uma anomalia magnética terrestre não representa um problema para o voo de pássaros ou aviões, ao contrário do que afirmam as publicações virais. "Perturbações magnéticas não impedem um avião de voar", confirmou o geofísico Aubert. "Eles podem, em qualquer caso, confundir a bússola, mas os aviões obviamente usam sistemas de geolocalização mais modernos". E os animais "sensíveis ao biomagnetismo", por exemplo, não terão problemas, usando seus olhos para se direcionar.
Há fiéis que colocam bússolas ao seu lado para rezar, para que deem a direção de Meca quando estiverem alinhadas para o Norte geomagnético e calibradas de acordo com o país, observou Julien Aubert, que supõe que esse fato pode ser a origem da desinformação. "Um mal-entendido de como o dispositivo funciona pode levar algumas pessoas a acreditar que a agulha indica diretamente Meca".
Mas pode-se sobrevoar Meca?
Sobrevoar este lugar sagrado na Arábia Saudita é proibido por motivos religiosos.
A União Nacional Francesa de Pilotos de Linha (SNPL) e a companhia aérea Air France, que entre seus destinos inclui a Arábia Saudita, confirmaram à AFP: "O voo sobre Meca está proibido".
A proibição se deve a uma "razão ideológica (...) de respeito à Kaaba", especificou a assessoria de imprensa do sindicato. Como este guia turístico indica, "o acesso a Meca é estritamente proibido (...) para não muçulmanos". Isso inclui o espaço aéreo sobre o local. Além disso, não há aeroporto em Meca. Os peregrinos muçulmanos geralmente chegam pelos aeroportos de Jidá ou Medina.
A proibição de voar aparece nas imagens de um programa de computador que permite ver os mapas de navegação utilizados pelos pilotos, informou o sindicato à AFP: na primeira imagem, a área de Meca "está marcada como P01", e o "P" significa "proibido". Na segunda imagem, não há limite para essa restrição, nem em termos de altitude (“GND” é “ground”, “solo” em português, como limite de base, e “UNL”, “unlimited” ou “ilimitado” em termos de altura) nem em termos temporais (“tempo de atividade” é “H24”). Essas condições foram confirmadas à AFP por um porta-voz da Air France.
Pelo site FlightRadar, que permite o monitoramento em tempo real de voos (principalmente comerciais) ao redor do mundo, pode-se observar que nenhum avião sobrevoa a área sagrada.
Há exceções a essa proibição: os helicópteros de proteção civil, por exemplo, podem sobrevoar Meca e pousar. Em 2006, helicópteros chegaram à área para resgatar peregrinos após o desabamento de um edifício na cidade, onde pelo menos 76 pessoas morreram e cerca de 60 ficaram feridas.
Vários hotéis em Meca têm heliporto, como pode ser visto no Google Maps, incluindo o Fairmont Makkah Clock Royal Tower e o Al Shohada Hotel, ambos a menos de 15 minutos a pé de Kaaba.
A Autoridade Geral de Aviação Civil Saudita (Gaca) e o Ministério de Assuntos Islâmicos da Arábia Saudita, da Dawah e da Orientação Religiosa não respondeu às perguntas da AFP até a publicação deste artigo.
Outros espaços aéreos fechados
A proibição de sobrevoar uma área específica, como em Meca, não é incomum. Existem outros locais na mesma situação, especialmente “certos locais em Israel onde o sobrevoo também é proibido por religiosos”, frisou o sindicato dos pilotos franceses, acrescentando que existem “procedimentos de aproximação e descolagem para circundar” estes locais.As decisões de proibição de voo sobre uma área, que podem ser limitadas no tempo ou em termos de altitude, podem ser aplicadas a muitas situações que não têm a ver com a presença de um local ou objeto sagrado. "Pode haver uma usina nuclear", exemplificou um porta-voz da Air France. Um espaço aéreo pode ser fechado "temporariamente" para manobras militares, algo estabelecido por "cada Estado soberano, que emite Aviso aos Aviadores (Notam)", segundo o porta-voz. Esses documentos, classificados na Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO, na sigla em inglês), indicam às empresas aéreas os locais que não podem ser voados e as condições dessa proibição.