Um vídeo no qual um médico norte-americano faz várias afirmações sobre vacinas de mRNA contra a covid-19, como que elas teriam efeitos negativos no corpo humano, foi compartilhado mais de 1.300 vezes nas redes sociais desde o último dia 21 de agosto.
Mas essas alegações são falsas, disseram especialistas à equipe de checagem da AFP. As vacinas Pfizer/BioNTech e Moderna, que usam tecnologia de mRNA, são consideradas seguras e milhões de doses já foram administradas.“DR. RYAN COLE, patologista e PhD em Imunologia e Virologia :A VACINA É A TOXINA. A proteína spike é quem desencadeia a doença, mas ela, sozinha, também lesa tecidos de forma igual em necropsia animal e humana- tanto após a [vacina] como após doença”, diz uma das publicações compartilhadas no Twitter (1, 2, 3) e no Facebook (1, 2)
A maioria das publicações nas redes apresenta um link para um vídeo de 17 minutos de um médico norte-americano chamado Ryan Cole, que faz várias afirmações falsas sobre vacinas de mRNA, incluindo que elas são tóxicas, que a proteína spike na vacina causa “a mesma doença que a covid-19” e danos a órgãos vitais.
Essa alegação também foi compartilhada em amárico e inglês.
Este último vídeo viral de Cole foi gravado durante uma conferência da American Frontline Doctors (AFLD), realizada no Texas em 27 de julho de 2021. O grupo afirma ser uma organização imparcial sem fins lucrativos, mas é conhecido por espalhar informações incorretas sobre a covid-19.
O mesmo vídeo também foi compartilhado com legendas em sérvio e verificado pela AFP.
Especialistas disseram à equipe de checagem da AFP que as alegações de Cole são falsas e baseadas em interpretações errôneas de estudos científicos.
Confira as alegações de Cole checadas pela AFP a seguir.
Proteína spike em vacinas de mRNA
No vídeo, Cole fala sobre as vacinas de mRNA, como as desenvolvidas pela Pfizer/BioNTech e Moderna.Sua tecnologia difere das vacinas tradicionais. Ao invés de injetar formas enfraquecidas ou mortas de um vírus, fazendo com que o sistema imunológico o reconheça e crie anticorpos, as vacinas de mRNA entregam instruções às células para construir uma parte inofensiva da "proteína spike" encontrada na superfície do vírus que causa covid -19. Depois de criar essa proteína spike, as células podem reconhecer e combater o vírus real.
Em seu discurso, Cole afirma que depois que uma vacina de mRNA é injetada “a proteína spike não fica apenas no deltóide, a spike circula no seu sangue e se aloja em vários órgãos”.
Citando um estudo não nomeado em animais de laboratório, Cole afirma, ainda, que a proteína spike criada na vacina de mRNA causa as mesmas doenças que a covid-19.
“A mesma doença pulmonar, a mesma doença vascular, a mesma doença cardíaca, a mesma doença cerebral. Spike é um veneno”, declarou.
No entanto, essas afirmações são falsas.
“A proteína S[pike] não ‘circula’ no corpo”, disse à equipe de checagem da AFP Oliver Stojkovic, geneticista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Belgrado. “Algumas quantidades extremamente pequenas dessa proteína podem ser encontradas (nos primeiros dias) no sangue, mas será decomposta ao passar pelo fígado e eliminada pelos rins através da urina”, completou.
Milos Babic, biólogo molecular, neurobiologista e diretor de pesquisa da BioSpyder Technologies, empresa com sede em Carlsbad, na Califórnia, concordou com Stojkovic.
“Quantidades extremamente pequenas de proteína spike podem entrar na circulação (picogramas, que só podem ser detectados pelos métodos mais sensíveis que temos). Mas não, não pode provocar os problemas causados pela covid, nem perto disso”, disse à AFP.
“Mesmo se imaginarmos alguma toxicidade da própria proteína spike, os níveis e a disseminação por todo o corpo são muito maiores durante a infecção (mesmo infecções leves) do que com a vacina. Mesmo assim, seria muito mais sensato ser vacinado do que ser infectado”, acrescentou Stojkovic.
As proteínas spike não "circulam" por semanas
Para embasar suas afirmações, Cole se refere a um estudo publicado pela Oxford University Press com 13 profissionais de saúde que receberam ambas as doses de vacinas de mRNA. O estudo descobriu que 11 dos participantes tinham “níveis detectáveis de proteína SARS-CoV-2” após receberem a primeira dose.No entanto, um dos autores da análise, o pesquisador David Walt, disse à AFP que os resultados do estudo foram mal interpretados.
O objetivo era coletar dados científicos sobre a circulação de antígenos, que são proteínas spike específicas do SARS-CoV-2 que permitem a produção de anticorpos.
No pequeno estudo, a concentração das proteínas do SARS-CoV-2 diminuiu progressivamente com o aumento da quantidade de anticorpos. Os fragmentos de spike desapareceram do plasma de todos os indivíduos vacinados após 14 dias.
“Nossa conclusão foi que a vacina funciona conforme o planejado”, assinalou Walt.
Christian Münz, professor de imunobiologia viral da Universidade de Zurique, na Suíça, disse anteriormente à AFP que “apenas uma concentração muito alta de proteína spike pode causar danos ao corpo, mas não é o caso após a vacinação”.
Stojkovic concordou: “Nem a vacina nem a proteína sintetizada com base na vacina causa doenças semelhantes à covid-19”.
Vacinas contra o SARS-CoV-2
Para embasar suas afirmações sobre os supostos perigos da proteína spike, Cole se refere a um estudo de uma equipe de cientistas do Instituto Salk para Estudos Biológicos, publicado na revista Circulation Research.No entanto, de acordo com Stojkovic, Cole interpretou mal os resultados dessa pesquisa.
Stojkovic explicou que, no estudo, os pesquisadores descobriram que se uma grande quantidade de proteína spike for injetada em hamsters, ela causará alguns danos aos pulmões e às mitocôndrias nas células da artéria pulmonar.
A quantidade de proteína spike criada por vacinas de mRNA, porém, é muito baixa para causar danos, disse Stojkovic à equipe de checagem da AFP.
“Quando falamos sobre vacinas e proteínas spike sintetizadas com base na vacina, a quantidade de proteína spike no músculo e nódulos linfáticos vizinhos permanece extremamente pequena”, afirmou.
W. Glen Pyle, professor do Departamento de Ciências Biomédicas da Universidade de Guelph, no Canadá, escreveu sobre a desinformação que circula sobre os perigos das proteínas spike nas vacinas.
“As alegações de uma iminente catástrofe vacinal provocada por proteínas spike induzidas por vacina não levam em consideração que a proteína spike das vacinas é diferente da forma natural; que sua forma projetada impede a ativação e que vários elementos limitam a manifestação da proteína spike a um grupo altamente localizada de células cujo objetivo é ativar a imunidade que as vacinas são projetadas para produzir”, apontou em um artigo escrito para a Covid19 Resources Canada.
Barreira hematoencefálica
No vídeo, Cole também afirma que as proteínas spike podem “romper a barreira hematoencefálica e causar danos cerebrais”. A AFP já verificou essa afirmação em inglês.Daniel Dunia, diretor de pesquisa do Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica (CNRS), disse no último mês de maio que a vacina de mRNA era injetada localmente no músculo e que o efeito das proteínas spike seria limitado às células iniciais nas quais a vacina se direciona para provocar uma resposta imunológica. O mRNA é instável e se degrada rapidamente.
“Mesmo quando uma pessoa sofre de uma infecção grave de covid, não há evidência direta de que o dano à BBB (barreira hematoencefálica) esteja diretamente relacionado ao vírus”, acrescentou.
Contatado novamente em 13 de agosto de 2021, Dunia confirmou à equipe de checagem da AFP que não há evidências científicas para afirmar que as vacinas de mRNA causam doenças neurodegenerativas.
“Além disso, não há efeitos colaterais neurológicos relatados associados à vacina de mRNA, apesar da temperatura clássica que muitas vacinas produzem”, disse.
Casos raros de miocardite são investigados
Sem fornecer nenhuma fonte, Cole afirma no final do vídeo que “a proteína spike [da vacina] ataca os tecidos do coração, causando miocardite e pericardite”.Embora seja verdade que as vacinas de mRNA tenham sido associadas a notificações de inflamações em membranas no coração %u23BC chamadas miocardite e pericardite %u23BC esses casos permanecem raros, de acordo com os Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos e com a Agência Europeia de Medicamentos (EMA).
Em nota divulgada em 9 de julho de 2021, a EMA afirmou que “recomenda listar miocardite e pericardite como novos efeitos colaterais nas bulas dessas vacinas, juntamente com um aviso para alertar os profissionais de saúde e as pessoas que tomam essas vacinas”.
Os CDC recomendam a vacinação contra covid-19, pois os riscos associados à doença permanecem muito maiores do que o risco de contrair miocardite. A miocardite também pode ocorrer com infecção por SARS-CoV-2.
Das mais 355,5 milhões de vacinas administradas nos Estados Unidos em 18 de agosto de 2021, os CDC receberam “1.253 notificações de miocardite e pericardite entre pessoas na faixa dos 30 [anos] e mais jovens que receberam a vacina da covid-19”.
No Brasil, foram notificados 17 casos de pericardite e miocardite relacionados à vacina Pfizer (Comirnaty) até o dia 26 de agosto de 2021, de acordo com as notificações de farmacovigilância da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Até o momento, o imunizante da Moderna não está sendo aplicado no Brasil.
Em uma carta de pesquisa publicada em 4 de agosto de 2021, cientistas do Providence Regional Medical Center Everett, em Washington, estudaram os casos de pacientes de 40 hospitais diagnosticados com miocardite e pericardite após receberem a vacina contra a covid-19.
O estudo descobriu que todos eles se recuperaram dos sintomas e que nenhuma morte foi reportada. A carta observa um aumento no relato de miocardite e pericardite.
Em 23 de agosto de 2021, mais de 4,6 bilhões de doses de vacina haviam sido administradas globalmente.
Esta verificação foi realizada com base em informações científicas e oficiais sobre o novo coronavírus disponíveis na data desta publicação.
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