Jornal Estado de Minas

CHECAMOS

Estado de sítio: entenda porque Bolsonaro não poderia tê-lo decretado sozinho


 

Vídeos em que apoiadores do presidente Jair Bolsonaro comemoram a suposta declaração de um estado de sítio no Brasil foram visualizados centenas de milhares de vezes em redes sociais durante a madrugada de 9 de setembro. “Ficamos sabendo que o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, resolveu agir e que, a partir de agora, o Brasil está em estado de sítio”, diz um homem em uma das gravações. Mas o presidente não tomou essa medida e nem poderia tê-lo feito sozinho, como dão a entender os registros viralizados. Entenda no que consiste o estado de sítio e o que é necessário para decretá-lo. 





Nas gravações compartilhadas no Facebook, YouTube e Twitter, pessoas reunidas em um ambiente com barracas de acampamento comemoram a suposta medida do mandatário. “Presidente acaba de decretar estado de sítio no Brasil. Em primeira mão aí pra todo mundo”, diz um homem em um dos vídeos, enquanto outras pessoas são ouvidas gritando ao fundo. 

Em outra gravação, que parece ter sido feita no mesmo local, um homem detalha que está falando de Brasília e assegura: “O Exército acaba de tomar conta do nosso Brasil. Bolsonaro acaba de decretar estado de sítio, agora foi”.  

Os vídeos ganharam força nas redes na noite de 8 de setembro, um dia após os atos pró-governo convocados por Bolsonaro no feriado da Independência do Brasil. 

Em discurso durante manifestação em Brasília, o mandatário disse que se reuniria no dia seguinte com o Conselho da República, órgão de assessoramento que deve ser consultado para a declaração de estado de sítio. 



No entanto, após o pronunciamento do presidente, interlocutores do governo garantiram que Bolsonaro havia se “equivocado”. Em 8 de setembro, o mandatário se encontrou, na verdade, com o Conselho de Governo, que reúne ministros para discutir ações da gestão federal. 

Porém, mesmo que o Conselho da República tivesse sido convocado nessa data, isso não resultaria automaticamente na declaração de estado de sítio, segundo especialistas consultados pela AFP. 

O que é o estado de sítio?


Previsto pelo artigo 137 da Constituição, o estado de sítio é uma das três medidas excepcionais estabelecidas para “retomar a normalidade constitucional” quando há um “desequilíbrio momentâneo”, como resumiu ao Checamos o professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF) Gustavo Sampaio

As outras duas medidas excepcionais são a intervenção federal e o estado de defesa. “A medida mais grave de todas é o estado de sítio. Se eu comparar a remédios na farmácia, eu diria que o estado de sítio é aquela medicação de tarja preta, que exige uma prescrição médica especial”, exemplificou o especialista. 



Por isso, durante a sua vigência, “poderão ser tomadas algumas medidas contra as pessoas que não podem ser tomadas fora do estado de sítio por conta dos direitos fundamentais”, acrescentou Sampaio. 

Entre essas ações estão, como detalhado na Constituição: “a obrigação de permanência em localidade determinada, a detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns e restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa”

Durante o estado de sítio também pode ser suspensa a liberdade de reunião e determinada a busca e apreensão em domicílio, a intervenção em empresas de serviços públicos e a requisição de bens.

Wallace Corbo, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro, explicou ao Checamos o efeito de um decreto desse tipo: 

“A lógica do estado de sítio é uma lógica de situação excepcional na vida do estado de direito, em que se permite excepcionalmente a restrição a alguns direitos fundamentais, tudo com o objetivo específico de superar aquela situação”. 



Quando pode ser decretado?


Essa medida pode ser tomada em três situações, como detalhado na Constituição: em resposta a uma “comoção grave de repercussão nacional”, em caso de declaração de estado de guerra ou quando já foi decretado o estado de defesa sem que tenham sido solucionadas as questões que desencadearam sua determinação.  

Para o professor Gustavo Sampaio, nenhuma dessas condições foi atingida atualmente. “Nós não temos nem grave comoção nacional para repercutir no sentido da decretação de estado de sítio, e nem estado de defesa em curso que possa ser convertido em estado de sítio. Não temos nenhuma hipótese material hoje de estado de sítio em voga”, opinou.

Uma comoção grave pode ser, segundo Wallace Corbo, “algum cenário de comprometimento da ordem pública nacional, alguma grande catástrofe da natureza, alguma situação climática, natural ou não, algum atentado. Algo que efetivamente desregule a organização da sociedade”. 

Como pode ser decretado? 


Mesmo assim, se o presidente tivesse a intenção de decretar estado de sítio, ele não poderia tê-lo feito sozinho, como dão a entender os vídeos compartilhados nas redes.



Primeiro, ele precisaria convocar tanto o Conselho da República quanto o Conselho de Defesa Nacional para debater o tema, como determinado no artigo 137 da Constituição. 

Esse primeiro órgão é formado pelo vice-presidente da República, pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, pelos líderes da maioria e da minoria na Câmara e no Senado, pelo ministro da Justiça e por seis cidadãos brasileiros natos com mais de 35 anos, sendo dois nomeados pelo presidente, dois pelo Senado e dois pela Câmara. 

o segundo é composto pelo vice-presidente, pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, e pelos ministros da Justiça, da Defesa, das Relações Exteriores e do Planejamento, assim como pelos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.

Após reunião, os conselhos emitem um parecer ao presidente recomendando, ou não, o pedido do estado de sítio. 

“Nesse caso, ele não é obrigado a seguir o parecer do conselho. Os conselhos podem até emitir um parecer contrário e, ainda assim, o presidente decretar o estado de sítio, porque os conselhos são meramente opinativos. Mas a Constituição diz que o presidente não pode decretar o estado de sítio sem antes ouvir os conselhos”, explicou Gustavo Sampaio.  

Apenas após ouvir esses grupos, o presidente poderia encaminhar um pedido de declaração de estado de sítio ao Congresso Nacional, composto pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. 



“E, no caso do Congresso Nacional, a autorização é vinculante. Se o Congresso Nacional negar autorização, o presidente não pode decretar estado de sítio, sob pena de ter cometido crime de responsabilidade”, acrescentou o professor da UFF. 

Após a viralização do conteúdo, o AFP Checamos perguntou à assessoria de imprensa do Senado e da Câmara dos Deputados se os órgãos haviam recebido um pedido para declaração de estado de sítio. 

Em 9 de setembro, a Câmara negou a informação. No mesmo dia, a assessoria do Senado respondeu de forma semelhante, indicando que “nenhum pedido de autorização de estado de sítio foi recebido”



O professor Wallace Corbo resumiu: 

“Qualquer informação no sentido de que o presidente decretou estado de sítio é uma informação falsa, porque a nossa Constituição não permite ao presidente por si só decretar estado de sítio”. 

“O presidente da República pode tão somente solicitar ao Congresso Nacional uma autorização para decretar estado de sítio, e o Congresso Nacional vai permanecer em funcionamento, inclusive, para fiscalizar se esse estado de sítio foi executado completamente pelo presidente”, finalizou. 

Gustavo Sampaio destacou, por fim, que durante o estado de sítio o presidente deve continuar respeitando os poderes Judiciário e Legislativo, e que esse último pode, inclusive, suspender a medida se entender “que o presidente está se excedendo, ou que o estado de sítio não é mais necessário”

“Mesmo em estado de sítio, o presidente não é um monocrata absolutista que pode fazer tudo, ele encontrará medidas limitadas”, acrescentou o professor de Direito da UFF.

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