Jornal Estado de Minas

CHECAMOS

Paulo Freire foi professor e doutor honoris causa de diversas universidades no Brasil e exterior


 

Publicações que circulam nas redes sociais, com mais de 40 mil interações, desde 19 de setembro de 2021, afirmam que o educador brasileiro Paulo Freire “nunca foi professor”, que seu único diploma era o de bacharel em Direito, que ele “nunca alfabetizou um criança” e que sua experiência de alfabetização teria sido adquirida em acampamentos do Movimento Sem Terra (MST). Mas as publicações são enganosas, de acordo com documentos sobre a  trajetória do educador e com cinco especialistas consultados pela AFP.





“Duas verdades que nunca te contaram sobre Paulo Freire: 1 - Ele NUNCA foi professor, o único diploma que Paulo Freire tinha era de bacharel em direito. 2 - Ele NUNCA alfabetizou uma criança, sua experiência em alfabetização foi de adultos no MST”, diz a publicação compartilhada no Facebook (1, 2, 3), no Instagram e no Twitter (1, 2).

No último 19 de setembro de 2021, foi comemorado o centenário do educador Paulo Freire, que faleceu em 1997. O marco motivou uma série de eventos em universidades e em outras instituições como o Senado Federal. Nesse contexto, alguns críticos de sua metodologia e obra compartilharam publicações questionando sua trajetória e atuação como professor.

De bacharel em Direito a professor

Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 19 de setembro de 1921 em Recife, Pernambuco. Freire, reconhecido em 2012 como “Patrono da Educação Brasileira”, foi um educador e filósofo premiado em todo o mundo por seus trabalhos na área da educação. Foi contemplado, por exemplo, com o Prêmio Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) da Educação para a Paz em 1986; e com o Prêmio Andres Bello como Educador do Continente da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1992.



O educador, de fato, graduou-se em Direito em 1947 pela Escola de Direito de Recife - transformada no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) -, mas não chegou a exercer a profissão. A informação foi confirmada pelo Instituto Paulo Freire, que enviou ao Checamos uma declaração da UFPE sobre a graduação de Freire. Sua primeira experiência com o ensino foi como professor de língua portuguesa no Colégio Oswaldo Cruz, em sua cidade natal, onde havia estudado na sua adolescência.

Ao contrário do que diz a publicação viral, Freire lecionou em diversas universidades dentro e fora do Brasil, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e a Universidade de Genebra, Suíça. Também fez parte do corpo docente da Escola de Belas Artes de Recife, onde apresentou uma tese para a cátedra de Filosofia e História da Educação, publicada posteriormente como um livro.

 

Pessoas usam máscaras com o rosto de Paulo Freire em uma manifestação em defesa da educação pública, no Rio de Janeiro, em 30 de maio de 2019 ( AFP / Mauro Pimentel)

Títulos

Usuários também afirmam, nas publicações viralizadas, que o "único diploma que Paulo Freire tinha era de bacharel em direito".“Ele não fez o doutorado, não defendeu a tese, mas ele é doutor honoris causa, então isso é muito além de defender uma tese de doutorado”, afirmou Maurilane de Souza Biccas professora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em declaração ao Checamos.



Freire recebeu mais de 40 títulos como doutor “honoris causa” de universidades nacionais, como a Unicamp, e estrangeiras, como a Universidade de Genebra; a Complutense, de Madri; e a de Lisboa.

O título é concedido pelas universidades a personalidades que se destacam por sua contribuição à cultura, à educação ou à humanidade. Walter Kohan, professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em filosofia da educação e infância, disse ao Checamos:

“Sua formação e seu compromisso, sua coerência em fazer de sua vida dedicação completa à alfabetização e libertação das classes oprimidas, é inquestionável, é reconhecida no mundo inteiro. Paulo Freire sempre foi muito sensível à injustiça e à opressão”.

Alfabetização de adultos

Segundo as publicações virais, Freire “NUNCA alfabetizou uma criança”, o que é verdadeiro. Seu projeto foi direcionado a adultos dos setores mais pobres do Brasil, que não haviam sido alfabetizados antes, como afirmou ao Checamos Pablo Martinis, professor titular do Departamento de Pedagogia, Política e Sociedade da Universidade da República, no Uruguai. 



Sobre a relação de Freire com o ensino infantil, Kohan explicou que, embora o educador não tenha atuado diretamente com a educação infantil, algumas de suas ideias inspiram profissionais dedicados a esse nível de educação. “Ele não escreve sobre educação infantil no sentido de educação de crianças pequenas, mas ele trabalha ideias sobre a criança e a infância que inspiram educadores da educação infantil”, assegurou. 

No entanto, diferentemente do que afirmam as publicações virais, Freire jamais alfabetizou adultos em acampamentos do Movimento Sem Terra (MST). Ele começou a trabalhar com a alfabetização de adultos ainda em 1947, quando dirigiu o Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (Sesi). Nesse período o MST ainda não havia sido criado, o que viria a ocorrer apenas em 1984. Nesse ano, Freire já havia retornado ao Brasil de seu exílio de 16 anos, por conta da ditadura militar. 

Ao voltar ao Brasil, em 1980, ele lecionou na Unicamp, na PUC-SP, foi secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo e já não mais coordenava programas de alfabetização.



“Toda essa experiência de educação com adultos é muito anterior ao surgimento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra”, confirmou ao Checamos Federico Brugaletta, especialista em Paulo Freire e professor de Ciências da Educação na Universidade Nacional de La Plata, na Argentina. No mesmo sentido afirmou Pablo Martinis: “Esse trabalho foi desenvolvido em várias comunidades do Brasil em uma época em que ainda não existia o MST, demorou mais de uma década para a fundação do Movimento Sem Terra. Portanto, não se pode afirmar que Freire trabalhou exclusivamente com a alfabetização nesse movimento”.

Walter Kohan destaca que a atuação de Freire nos projetos de alfabetização de adultos ocorria, sobretudo, no nível de coordenação, tanto no Brasil quanto nos países em que atuou, como Guiné-Bissau, Tanzânia, Nicarágua, Cabo Verde. Kohan afirma que:

“Paulo Freire de fato não alfabetizava. Ele era coordenador dos cursos, dos programas, fazia alguma intervenção ou outra. Por exemplo, naquele primeiro curso de Angicos de 1963, não era Paulo Freire quem alfabetizava, eram estudantes formados por ele”. 

Em 1964, seu projeto “alfabetizaria 6 milhões de pessoas em um ano. Isso significava 6 milhões de novos votantes, porque os analfabetos não votavam. Imagina o efeito político disso”, aponta Kohan.

“O compromisso, a dedicação de Paulo Freire à alfabetização de jovens adultos, essa sua militância tem a ver também com seu compromisso com a infância, mas não a infância como uma idade, a infância como um tempo. De certo modo, Paulo Freire era um grande apaixonado pela infância e por isso a sua dedicação com a educação tem a ver com recuperar a infância”, diz ele.

Conteúdo semelhante foi checado pelo G1 e Aos Fatos.



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