Publicações afirmando que o presidente Jair Bolsonaro se baseou em uma matéria da revista Exame ao dizer em sua live de 21 de outubro de 2021 que as vacinas contra a covid-19 causam aids foram compartilhadas mais de 24,5 mil vezes desde o último 24 de outubro.
“A própria revista Exame fala da relação de HIV com a vacina e 2 dias depois a Exame acusa o presidente de fake news por ler a revista em uma live. O mundo está louco, as pessoas estão perdendo o controle da sanidade e lamentavelmente os insanos estão influenciando os leigos” , indica uma das publicações compartilhadas no Facebook .
Carlos e Eduardo Bolsonaro ( 1 , 2 ), filhos do presidente e que também são vereador e deputado federal, respectivamente, repercutiram o tema em suas redes sociais, alegando se tratar de um ataque da imprensa ao mandatário.
Essas alegações também circularam no Twitter ( 1 , 2 ) e no Instagram ( 1 , 2 , 3 ), inclusive com uma captura de tela do site da Forbes ( 1 ), cujo título era semelhante ao da Exame.
Na transmissão ao vivo de 21 de outubro, Bolsonaro disse: “Outra coisa grave aqui, só vou dar a notícia, não vou comentar. (...) Relatórios oficiais do governo do Reino Unido sugerem que os totalmente vacinados - quem são os totalmente vacinados? Aqueles que depois da segunda dose, 15 dias depois, 15 dias após a segunda dose - estão desenvolvendo a síndrome de imunodeficiência adquirida muito mais rápido que o previsto” . Essa alegação é falsa , informaram autoridades de saúde britânicas à AFP.
A live do presidente foi removida ( 1 , 2 ) do Facebook, Instagram e YouTube sob o argumento de que viola as diretrizes das plataformas sobre desinformação em relação às vacinas e à covid-19.
Mas uma busca no Twitter por trechos da transmissão no momento em que Bolsonaro lê o texto que associa a imunização contra o novo coronavírus à possibilidade de “desenvolver” aids permitiu identificar a fonte usada pelo presidente: o site Before it’s news .
Com data de 15 de outubro de 2021, o artigo é intitulado, em tradução livre do inglês: “Uma comparação de relatórios oficiais do governo sugere que os totalmente vacinados estão desenvolvendo a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida muito mais rapidamente do que o previsto”. Além desse texto, o Checamos encontrou outros três artigos do mesmo site que relacionam a imunização contra a covid-19 e o “desenvolvimento” de aids ( 1 , 2 , 3 ).
Mas a matéria da Exame vista nas postagens, intitulada “Algumas vacinas contra a covid-19 podem aumentar o risco de HIV”, não menciona qualquer relatório oficial do governo do Reino Unido e foi publicada em outubro de 2020, quando a vacinação contra a covid-19 nem sequer havia começado .
Vacinas contra a covid-19 e HIV
Assim como no caso anterior, a reportagem da Forbes - “Pesquisadores alertam que algumas vacinas contra a Covid-19 podem aumentar o risco de infecção por HIV” - não assinalava a existência de documentos oficiais britânicos e foi publicada também em outubro de 2020.
Os dois textos noticiavam a publicação de uma carta na revista The Lancet, em que cientistas expressaram preocupação com o fato de que alguns dos imunizantes contra a covid-19 utilizavam o adenovírus de número 5 (Ad5), que, em um estudo de uma vacina contra a aids, pareceu aumentar o risco de infecção pelo HIV.
O Checamos entrou em contato com Susan Buchbinder , uma das autoras da carta enviada à revista The Lancet e diretora de Pesquisa de Prevenção ao HIV no Departamento de Saúde Pública de San Francisco, que explicou: “Há mais de uma década, realizamos dois estudos de uma vacina contra o HIV (usando o adenovírus tipo 5 ou vetor Ad5) que parecia aumentar o risco de infecção por HIV em pessoas que foram expostas através de práticas sexuais. (...) Esse aumento de risco era transitório. Não fomos capazes de encontrar o mecanismo exato pelo qual isso ocorreu” . E continuou:
“Nossa recomendação se aplica apenas às vacinas Ad5 (como Sputnik V e CanSinoBio), e é apenas um risco teórico de que, se uma pessoa recebesse essa vacina e depois fosse exposta ao HIV, ela poderia ter o risco de infecção pelo HIV aumentado. Isso não se aplica à grande maioria das vacinas que estão sendo usadas internacionalmente” .
No Brasil, tanto as vacinas Sputnik V quanto a CanSino não são utilizadas, por não terem sido autorizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Ao AFP Checamos, Rafael Larocca , imunologista e pós-doutor pelo Centro de Virologia e Vacinas de Harvard, que em 2017 publicou um artigo sobre o tema , disse ter verificado que esse adenovírus “induz um fenótipo nas células T CD4 (células-alvo do HIV)” aumentando alguns receptores, “o que ajudaria na entrada do vírus” .
Mas o imunologista apontou que não há como assegurar que a presença desse adenovírus nas vacinas contra a covid-19 aumente a chance de uma pessoa “desenvolver aids” : “É somente uma possibilidade, pois nunca se confirmaram esses dados” . Além disso, completou, “só se adquire HIV se a pessoa se expuser ao vírus, uma vacina jamais causaria isso” .
Diante das alegações feitas por Bolsonaro em sua live, a Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) se manifestou em seu site, em 25 de outubro de 2021, assinalando que “nenhuma vacina desenvolvida contra a covid-19 pode causar aids” ou “tem o potencial de transmitir o vírus do HIV” . E ressaltou que os imunizantes “protegem contra a gravidade da doença, inclusive pacientes imunossuprimidos e portadores de HIV” .
Em julho de 2021, a Organização Mundial da Saúde publicou em sua página algumas informações sobre a vacinação contra a covid-19 para as pessoas que vivem com HIV. Dentre os imunizantes recomendados pelo órgão estão os da AstraZeneca/Oxford, Johnson e Johnson, Moderna, Pfizer/BioNTech, Sinopharm e Sinovac.
Após a viralização de capturas de tela dos sites da Exame e da Forbes , ambos modificaram seus títulos e textos para acrescentar a data em que foram publicados e o contexto do estudo que originou a carta enviada à revista The Lancet.