Publicações compartilhadas mais de 3 mil vezes nas redes sociais em vários idiomas desde, pelo menos, fevereiro de 2020 afirmam que as mulheres negras têm um DNA mitocondrial com “todas as variações possíveis para cada tipo de ser humano”, devido à existência do chamado “Eve Gene”.
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Conteúdo similar circulou em espanhol, francês, e inglês.
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DNA mitocondrial
As mitocôndrias são “elementos do citoplasma da célula animal ou vegetal cuja função essencial é assegurar a oxidação, a respiração celular, o armazenamento de energia por parte da célula e o armazenamento de certas substâncias”, segundo a definição do Larousse Médical.Laurent Duret, diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França e membro do laboratório de biometria e biologia evolutiva da Universidade de Lyon 1, explicou à equipe de verificação da AFP que, assim como o núcleo de nossas células, as mitocôndrias contêm ácido desoxirribonucleico (DNA), o portador da informação genética. O estudo das mitocôndrias, transmitidas exclusivamente pelas mães, de geração em geração, permite “traçar a genealogia dos indivíduos por meio da comparação de seu DNA”, detalhou.
Mas as publicações viralizadas dão uma interpretação errada, “uma mistura de coisas verdadeiras e falsas”, segundo Evelyn Heyer, professora de antropologia genética no Museu Nacional de História Natural (MNHN) de Paris e autora do livro “L'Odyssée des Gènes” (“A odisseia dos genes”, em tradução livre do francês).
O “Eve gene” ou “gene Eva” mencionado nas publicações não existe, mas parece se referir à noção de “Eva mitocondrial”. “O DNA mitocondrial de todos os humanos do planeta descende de uma única mitocôndria: é o que é chamado de Eva mitocondrial”, explicou Heyer.
A existência dessa mulher negra, que provavelmente viveu na África há cerca de 200 mil anos, foi estabelecida em 1987 por Rebecca Louise Cann, Mark Stoneking e Allan Charles Wilson em um artigo publicado na revista científica norte-americana Nature.
Os autores chegaram a essa conclusão após analisar amostras de DNA mitocondrial de 147 pessoas de cinco regiões diferentes do mundo: África, Ásia, Austrália, Europa e Nova Guiné, no Oceano Pacífico.
“Hoje em dia, ninguém carrega as mitocôndrias desse ancestral, que sim existia”, disse Duret, do CNRS. “O que carregamos são descendentes dessas mitocôndrias, que, entretanto, acumularam mutações”, acrescentou.
Confusão
O termo “Eva mitocondrial” não aparece no artigo de Cann, Stoneking e Wilson. Essa denominação, “enganosa” segundo Laurent Duret, nasceu após a publicação de sua obra.“Foi um erro chamá-lo assim”, disse Heyer. “Se você olhar para as mitocôndrias de todo o mundo (...), nosso DNA mitocondrial pode se remontar a um ancestral comum, mas isso não significa que não havia outras pessoas naquela época”, acrescentou.
Essa mulher é “certamente a única que desde então transmitiu suas mitocôndrias a todos os demais”, mas o nome de Eva sugere a ideia de um berço da humanidade, “sendo que não é assim”, resume a cientista.
Os dois cientistas consultados pela AFP destacaram também que cada fragmento dos nossos cromossomos tem sua própria história e genealogia. “Cada um de nós não tem apenas um ancestral, mas milhares de ancestrais”, explicou Duret. “Se olhássemos outros cromossomos, encontraríamos outros ancestrais comuns”, por exemplo um “Adão Y”, se estivéssemos interessados no cromossomo sexual Y, disse.
Raízes africanas
Porém, para Duret, “a intenção da mensagem é correta, no sentido de que o que está claramente estabelecido é que a nossa espécie se originou na África”.“Quando se observa o DNA mitocondrial de todos os seres humanos do planeta, procedentes de muitos lugares diferentes, percebe-se que a África tem a maior diversidade ”, explicou Heyer. Os tipos de DNA mitocondrial observados fora do continente representam “um subconjunto daqueles encontrados na África”.
“A mitocôndria que carregava essa ‘Eva mitocondrial’, cada vez que era transmitida de geração em geração, adquiria mutações e diversidade genética”, disse Duret. “No primeiro período, nossa espécie estava essencialmente confinada na África, onde se acumulou a diversidade genética no genoma mitocondrial”, acrescentou.
Em seguida, os humanos migraram para outras partes do mundo, “de forma progressiva; entre 60 mil e 40 mil anos atrás e, mais recentemente, há 15 mil anos, para a América”, explicou Duret.
Portanto, as publicações viralizadas são enganosas: ainda que o DNA das mulheres negras de hoje não tenha “todas as variações possíveis para cada tipo de ser humano” na Terra e que o “Eve gene” não exista, o DNA mitocondrial de cada ser humano descende de uma mulher africana que viveu há cerca de 200 mil anos. Além disso, como a espécie se originou na África antes de migrar para outras regiões, as populações desse continente têm a maior diversidade genética.