As pessoas não vacinadas são menos "perigosas" do que as pessoas vacinadas, que deveriam ser colocadas "em quarentena", dizem publicações compartilhadas centenas de vezes nas redes sociais desde pelo menos 19 de novembro de 2021.
Mas, segundo especialistas ouvidos pela AFP, essas alegações são infundadas e contrariam os dados científicos conhecidos até o momento. Além disso, as citações do médico israelense utilizadas no artigo são trechos enganosos de uma entrevista em que ele se pronunciou a favor da aplicação de uma terceira dose de vacina contra a covid-19 em seu país.
“VACINADOS DEVEM SER ISOLADOS E AFASTADOS DOS NÃO VACINADOS SOB RISCO DE INFECTÁ-LOS”, diz uma das publicações compartilhadas no Facebook (1, 2) e no Twitter (1, 2).
Algumas das mensagens são acompanhadas de um link para um site que reproduz as mesmas alegações, com base em trechos de uma entrevista concedida por Perronne em agosto de 2021 ao meio digital britânico UK Column, que se autodenomina como uma "fonte alternativa de informação".
Conteúdo semelhante também circulou em francês (1, 2) e espanhol (1, 2).
"Evidência" baseada em dados israelenses não rastreáveis
"Pessoas não vacinadas não são perigosas, já as pessoas vacinadas são perigosas para as outras. Isso foi comprovado em Israel”, dizem as publicações citando Perronne.No entanto, essa suposta comprovação baseada em dados israelenses não existe, disseram dois imunologistas à equipe de verificação da AFP em meados de novembro.
“Cientificamente, é um absurdo. Todos os estudos mostram o contrário. Ou é incompetência ou desonestidade”, explicou à AFP Claude-Agnès Reynaud, imunologista e diretora de pesquisas do Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica (CNRS) no último 11 de novembro.
Sandrine Sarrazin, pesquisadora do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisas Médicas (Inserm) do Centro de Imunologia de Marseille-Luminy, na França, acrescentou em 12 de novembro de 2021 que “não há nada, nenhum dado que suporte essa informação: surge do nada".
Até o aparecimento da variante delta, diferentes estudos (1, 2, 3) concluíam, ao contrário, que as vacinas contra a covid-19 reduzem a carga viral, ou seja, a presença do vírus nas narinas dos pacientes e detectada por um teste de PCR, como vários pesquisadores, incluindo Claude-Agnès Reynaud, já haviam explicado anteriormente à AFP.
No entanto, a situação se tornou mais complexa com o aparecimento da variante delta. Vários estudos têm demonstrado que a carga viral em algumas pessoas vacinadas pode ser, principalmente no início da infecção, equivalente à de pessoas não vacinadas (1, 2, 3).
Outros estudos mostraram que essa carga viral foi menor nos vacinados do que nos não vacinados (1, 2), conforme relatado neste artigo que relaciona pesquisas sobre contágio em pessoas vacinadas infectadas com a variante delta.
Mas nenhum demonstrou, como afirma Christian Perronne, que pessoas não vacinadas podem ter cargas virais mais baixas do que pessoas vacinadas.
“Em nenhum caso as pessoas vacinadas podem transmitir mais e serem mais perigosas que os não vacinados”, assegurou Frédéric Altare, imunologista e diretor de pesquisas do Inserm, em agosto à AFP.
Para Reynaud, essa alegação pode ter sido criada a partir de um mal-entendido sobre um estudo feito em Israel, publicado no início de setembro de 2021 e que concluiu que a eficácia da vacina contra a covid-19 pode diminuir com o tempo, embora possa ser reforçada com uma terceira dose.
O primeiro gráfico do artigo mostra “o número de ciclos de testes de PCR em pessoas vacinadas positivas para o vírus. Quanto mais ciclos, menor a carga viral”, apontou a imunologista, como já havia detalhado em outra verificação da AFP. “Mas se vemos sem a explicação, podemos acreditar que é uma quantidade de vírus e, portanto, que os vacinados com uma terceira dose teriam uma carga viral maior do que os outros, o que é falso”, disse.
Diminuição da eficácia das vacinas e terceira dose
Ter medido uma carga viral equivalente em pessoas vacinadas e em pessoas não vacinadas infectadas com a variante delta não significa que as vacinas sejam ineficazes, ressalta Sandrine Sarrazin.“Quando essa pesquisa foi feita, as pessoas já estavam vacinadas há cinco, seis meses, mas agora sabemos que a proteção diminui com o tempo. A variante delta também é muito mais contagiosa: a fase primária da infecção é muito mais rápida; ou seja, o vírus entra nas nossas células mais rapidamente”, explicou. “As cargas virais dos vacinados também caíram em 48 horas, muito mais rapidamente do que as dos não vacinados”, acrescentou.
De acordo com dados divulgados em 24 de agosto pelas autoridades americanas, a eficácia das vacinas Pfizer e Moderna contra a infecção caiu de 91% para 66% desde que a delta se tornou dominante nos Estados Unidos. Além das características da variante delta, essa redução pode estar relacionada ao fato de que a eficácia das vacinas diminui com o tempo: cai de 88% para 74% após cinco ou seis meses para a Pfizer e de 77% para 67% depois de quatro ou cinco meses para a AstraZeneca, de acordo com um estudo britânico divulgado em 25 de agosto de 2021.
Assim, os especialistas entrevistados apoiam a aplicação de uma terceira dose, como o previsto em cada vez mais países.
No Brasil, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou em 16 de novembro de 2021 que a terceira dose dos imunizantes será disponibilizada para toda a população acima de 18 anos.
“Os primeiros dados mostram a eficácia da terceira dose: a proteção geralmente é ainda melhor do que depois da segunda. Se isso for confirmado, poderá eventualmente ser considerado como parte da vacinação inicial, que consistiria em três aplicações”, afirma Sarrazin.
Especialistas também insistem que as vacinas são essenciais para combater a variante delta. "O que os cientistas defendem é que devemos ter o máximo de pessoas protegidas", disse à AFP o epidemiologista Antoine Flahault no final de agosto de 2021.
Mesmo que as vacinas anticovid não previnam a transmissão ou infecção pelo vírus, elas permanecem muito eficazes na prevenção de formas graves da doença e hospitalizações. Um estudo publicado em 21 de julho de 2021 concluiu que duas doses da vacina Pfizer são 88% eficazes na proteção contra as formas graves da doença causada pela variante delta e uma dose, 35%.
"Existem muitas evidências da eficácia da vacinação na prevenção de formas graves de doença e morte por covid-19. Apoiamos fortemente que a vacinação é uma ferramenta essencial na luta contra a covid e as terríveis consequências da doença", ressaltaram os autores do estudo.
Claude-Agnès Reynaud e Sandrine Sarrazin também observam que o número de casos de covid-19 no Reino Unido nas últimas semanas foi “tão alto” quanto na época em que a rede hospitalar estava sobrecarregada com pacientes. No entanto, os hospitais não estão mais tão lotados quanto antes, o que sugere que a vacinação pode prevenir os casos graves, que exigem internação.
Em sua entrevista citada no site viralizado, Christian Perronne afirma ainda que “todos os vacinados devem ser colocados em quarentena durante os meses de inverno” ou correriam o risco de serem expostos a "variantes" mais perigosas do que para os não vacinados.
Essa afirmação também é infundada. “Isso é falso. O inverno está começando [na Europa], ainda não pode haver um estudo que demonstre isso. É uma mentira”, lamenta Reynaud.
Especialistas já explicaram à AFP que mutações potencialmente mais perigosas podem se multiplicar na medida em que o vírus SARS-CoV-2 circula maciçamente pelo mundo. Uma nova variante da covid-19 detectada pela primeira vez na África do Sul, a B.1.1.529 e conhecida com o nome de ômicron, foi classificada em 26 novembro de 2021 como "preocupante" pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Se uma "má vacinação" durante uma epidemia pode levar ao desenvolvimento de variantes, isso se deve principalmente ao fato de o vírus poder circular na população se a vacina tiver uma baixa eficácia, acrescenta Sarrazin. "Até agora, as vacinas mal tinham 50% de eficácia, então poderíamos falar sobre um risco maior de desenvolver variantes com a vacinação durante uma epidemia. Mas este não é o caso. Para Sars-CoV-2: as vacinas são muito eficazes, bem acima desses 50%", esclareceu.
Quem é Christian Perronne?
O professor Christian Perronne foi chefe do departamento de doenças infecciosas e tropicais do hospital Raymond-Poincaré em Garches até dezembro de 2020, quando foi demitido do cargo pela Diretoria de Assistência Pública - Hospitais de Paris (AP-HP).No início de dezembro de 2020, ele também havia sido alvo, junto com outros cinco médicos, de uma denúncia do Conselho Nacional da Ordem dos Médicos (Cnom) da França.
Essa denúncia foi feita depois que Perronne afirmou que os pacientes da covid-19 representavam uma vantagem financeira para os médicos e promoveu a hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19, mesmo que a eficácia do medicamento contra a doença não seja comprovada cientificamente, como o Checamos já mostrou (1, 2).
Desde o início de 2020, seus comentários sobre a pandemia foram assunto de vários artigos verificados pela AFP na França (1, 2).
Comentários indiretos do médico israelense Kobi Haviv
As publicações nas redes sociais também mencionam o "médico israelense Kobi Haviv", que supostamente "disse ao Channel 13 News" que "95% dos pacientes gravemente enfermos são vacinados. Pessoas totalmente vacinadas respondem por 85 a 90% das hospitalizações. Estamos abrindo cada vez mais leitos para vacinados e agências de dados. A eficácia das supostas vacinas diminui, não existe ou desaparece".São citações distorcidas ou totalmente errôneas de uma entrevista com o médico Jacob Haviv, também conhecido como "Kobi", diretor do Hospital Herzog em Jerusalém, a uma rede de televisão local. Na verdade, ele convocou os israelenses a irem tomar a terceira dose da vacina contra covid-19.
De fato, Haviv disse: "A maioria dos idosos é vacinada, a maioria da população está vacinada e é por isso que cerca de 90%, 85-90% dos pacientes hospitalizados aqui são pacientes que foram vacinados. Totalmente vacinados".
Em locais onde as taxas de vacinação são altas, é consistente e esperado que uma alta proporção de pessoas internadas no hospital devido à covid-19 tenham sido vacinadas, pois há sempre um risco, ainda que menor, de infecção, disseram especialistas à AFP (1, 2, 3, 4).
Além disso, as publicações sugerem que Haviv descreve a situação geral, embora tenha comentado apenas sobre o hospital em que trabalha.
A última citação atribuída a Haviv, de que a eficácia das vacinas contra a covid-19 "diminui" no decorrer do tempo, está correta, mas fora de contexto.
Na entrevista completa, o médico explica: “Infelizmente, pelo que entendemos, a eficácia das vacinas está diminuindo. É por isso que espero que as pessoas ouçam o apelo para [que tomem] a terceira dose”.
Esse "apelo" para que os israelenses tomem a dose de reforço não foi incluído nas publicações.
Ao contrário do que as publicações que citam Perronne descrevem, a maioria dos pacientes com covid-19 grave em Israel não foi vacinada, indicou uma notícia publicada em 1º de outubro de 2021 no jornal israelense Haaretz.
De acordo com dados do Ministério da Saúde israelense citados na época, 73% dos pacientes com covid-19 grave não foram vacinados.
O ministério informou em julho de 2021 ter observado um "declínio acentuado na eficácia da vacina" na prevenção de infecções e doenças sintomáticas. "Este declínio foi observado simultaneamente com a propagação da variante delta em Israel", afirmou o órgão, acrescentando que, "no entanto, a vacina mantém uma taxa de eficácia de cerca de 93% na prevenção de doenças graves e casos de hospitalização".
A partir de 30 de julho, Israel lançou uma campanha com o objetivo de oferecer uma terceira dose do imunizante para pessoas com mais de 60 anos. No final de agosto, a convocação foi ampliada para toda a população elegível para a vacinação, ou seja, todos os israelenses com mais de 12 anos.
Em uma mensagem de vídeo postada em 18 de agosto de 2021 na página do Facebook de seu hospital, Haviv disse que o número de pacientes com covid-19 admitidos estava diminuindo, e atribuiu essa redução nos casos à campanha de reforço da vacina.
"No fim de semana começamos a ver uma diminuição e realmente esperávamos que fosse relacionado aos idosos recebendo a terceira dose da vacina. Hoje, não há dúvida, a terceira dose funciona", disse.
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