Circula nas redes sociais a alegação de que, independentemente do avanço da vacinação contra a covid-19 no Brasil, 72% da população já está imunizada naturalmente e, por isso, os casos da doença caíram no país.
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É falso que uma enfermeira revelou código secreto para vacinas contra COVIDDados de casos e mortes globais de covid-19 não indicam ineficácia das vacinas, dizem especialistasDizer que vacinados contra covid 'são perigosos' não tem base na Ciência“Por que caem novos casos de Covid no Brasil?Pela letalidade (óbitos no total de infectados)calculada p UfPel para RS (0,4%),estimamos no Brasil,hoje,72% da pop. imunizada naturalmente,independente das vacinas.Assim c qualquer eficácia destas,estaríamos c grande imunidade coletiva”, indica um tuíte publicado no último 5 de dezembro, compartilhado centenas de vezes e replicado no Facebook.
O tuíte viral menciona um cálculo feito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) de que a letalidade da covid-19 no Rio Grande do Sul, estado onde a instituição está localizada, seria de 0,4% e, além disso, inclui a captura de tela de uma matéria publicada pela Folha de S.Paulo, a respeito do mesmo estudo, parte do projeto de pesquisa EpiCovid19. Uma busca no Google pelo título indicou que o texto publicado pela Folha é de 13 de maio de 2020.
Uma nova busca no Google pelo site do projeto, coordenado pela UFPel e pelo governo do Rio Grande do Sul, levou à análise mencionada tanto na reportagem quanto no tuíte, intitulada “Epidemiologia da covid-19 no Rio Grande do Sul”.
De acordo com a apresentação, a fase 3 dessa avaliação ocorreu entre os dias 9 e 11 de maio de 2020.
O tuíte, contudo, afirma que 72% da população tem imunidade natural contra a covid-19 baseado em um dado de 2020 e restrito apenas ao estado do Rio Grande do Sul.
“Ele usa algumas informações antigas e outras não sei de onde saíram”, disse à AFP um dos integrantes do comitê científico do Epicovid19, Pedro Hallal, epidemiologista da UFPel e professor visitante da Universidade da Califórnia em San Diego. E acrescentou que a porcentagem indicada da “população imunizada naturalmente” não tem qualquer relação com os dados contidos no estudo da universidade: “Ele usa um dado de letalidade sem explicar como fez essa matemática para chegar a esses 72%”.
Uma consulta feita em 9 de dezembro de 2021, com dados atualizados até 8 de dezembro, no painel de coronavírus do Ministério da Saúde mostra que a taxa de letalidade no Brasil em relação à covid-19 está em 2,8%, número superior ao indicado na publicação viral.
Além disso, no mesmo painel pode-se observar que mais de 22 milhões de pessoas foram infectadas pelo novo coronavírus, ou seja, 10,3% da população, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De acordo com Alexandre Naime, chefe do departamento de Infectologia da Unesp e consultor para covid-19 da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Associação Médica Brasileira, esses valores “inviabilizam completamente a tese de imunidade natural”, apesar da subnotificação de casos.
“Essa conta não fecha porque 0,4% de óbitos seria uma população exposta ainda menor, não faz o menor sentido”, disse à AFP. “Geralmente essas contas de estimativa de pessoas que tiveram contato com a covid superestimam o número de óbitos para tentar dizer que uma grande parcela da população já entrou em contato”, e, por consequência, teria obtido a proteção natural alegada nas publicações.
A imunidade natural
A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) apontou em um informe científico que “a força e a duração das respostas imunes ao SARS-CoV-2 ainda não foram totalmente elucidadas, e os dados atualmente disponíveis sugerem que podem variar de acordo com a idade e a gravidade dos sintomas”.Especialistas indicaram à equipe de checagem da AFP não haver ainda um consenso sobre o tema. Em outubro de 2021, Ricardo Rabagliati, infectologista do Hospital Clínico da Universidade Católica do Chile, afirmou que “na realidade, não existem estudos ou dados concretos que mostrem que a melhor imunidade que se pode obter é com a infecção natural (...). Não se pode concluir que a infecção natural pode gerar melhor proteção”.
Na mesma oportunidade, a virologista chilena Vivian Luchsinger assinalou à AFP que a imunidade natural adquirida após a infecção pelo vírus é “mais completa, porque o vírus expõe todos os seus antígenos ao se replicar no infectado, gerando uma resposta imune frente a eles. Já com as vacinas, a exposição de antígenos é limitada”. Contudo, “não é possível saber se a infecção natural vai ser grave, leve, moderada etc. O risco é altíssimo”, acrescentou.
Naime ponderou que “a imunidade híbrida com certeza é a que mais protege, mas vai ter um excesso de mortalidade, é um preço que não se quer pagar”.
“Do ponto de vista epidemiológico não há como dizer que a imunidade natural é mais protetora porque ela é a que menos conta quando você compara as três imunidades. A híbrida com certeza seria melhor, mas aí você expõe a pessoa ao vírus e ela pode ir a óbito. A segunda é só a vacinação, que é o ideal, porque você protege a pessoa desses desfechos mais duros, que é a internação e o óbito. E a última, infelizmente, além de expor a pessoa - a imunidade pelo vírus -, expõe ao risco de internação e óbito, e, ainda por cima, tem mais chance de reinfecção, então é a que menos tem, vamos dizer assim, benefício.”
O infectologista da Unesp assinalou ainda que é “impossível” determinar um número tão preciso de pessoas apenas com a imunidade natural, como aponta a publicação viral, em um momento em que a vacinação está tão avançada no país.
“A imunidade híbrida protege melhor do que só a vacinação, que, por sua vez, protege muito mais do que só a infecção”.
Vacinação
O Ministério da Saúde tem feito uma intensa campanha (1, 2) de estímulo à vacinação contra a covid-19, uma delas com a frase “Para vencer o coronavírus a premissa é uma só: Brasil unido por uma pátria vacinada”.Até 9 de dezembro de 2021, mais de 134 milhões de pessoas haviam completado o esquema vacinal de duas doses ou dose única no país.
Para Naime, a diminuição no número de óbitos diários e a queda nos casos (1, 2, 3) se devem justamente à vacinação em massa. “Não há a menor dúvida. A única variável que se associou à redução de óbitos e internações no Brasil, e também de casos. Nossa média móvel de casos nunca esteve tão baixa.”
Outros órgãos governamentais e organizações internacionais também recomendam a vacinação como estratégia para conter a pandemia.
Os Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos destacam que a população deve tomar a vacina contra a covid-19, mesmo os que já se infectaram, pois “estão surgindo evidências de que as pessoas desenvolvem melhor proteção com o esquema vacinal completo em comparação à proteção gerada pela covid-19”.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) vê o acesso equitativo a vacinas seguras e eficazes como fundamental para acabar com a pandemia de covid-19: “Não são vacinas que vão parar a pandemia, é a vacinação”.
Esta verificação foi realizada com base em informações científicas e oficiais sobre o novo coronavírus disponíveis na data desta publicação.