Publicações nas redes sociais têm afirmado desde 1º de dezembro de 2021 que a taxa de incidência geral de miocardite em crianças e adolescentes passaria de 1,95 a 18,25 a cada 100.000 imunizados contra a covid-19.
Agências e instituições sanitárias do Brasil e de outros países afirmam que os efeitos adversos são raros e que os benefícios da vacinação superam os riscos.
“1. Em crianças e adolescentes, a incidência geral de miocardite é de 1,95/100.000. Fonte: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5721735/”, dizem as publicações compartilhadas no Twitter (1, 2).
E continuam: “2. Em crianças e adolescentes, a incidência de miocardite após 2 doses de Pfizer é de 18,25/100.000, chegando a 37,32/100.000 entre meninos. Fonte: https://academic.oup.com/cid/advance-article-abstract/doi/10.1093/cid/ciab989/6445179?redirectedFrom=fulltext”. “3. Espero que o @minsaude e a @anvisa_oficial tenham a DECÊNCIA de avaliar estes dados com a atenção que eles merecem”, elas concluem.
Alegações semelhantes circularam também no Facebook (1, 2).
A publicação viralizada compara dois estudos a respeito da incidência de miocardite em crianças e adolescentes. O primeiro deles, publicado em 18 novembro de 2017, foi feito na Finlândia com pacientes de até 15 anos e constata que a taxa de incidência de miocardite geral no país foi de 1,95 para 100 mil.
O segundo estudo, publicado em 28 de novembro de 2021, foi feito em Hong Kong e monitorou adolescentes entre 12 e 17 anos que foram vacinados com a Pfizer, dos quais 33 desenvolveram miocardite/pericardite aguda. O texto ressalta que todos os casos foram leves e demandaram apenas “tratamento conservador”. Segundo o artigo, a taxa de incidência geral de miocardite e pericardite foi de 18,52 por 100 mil vacinados e em adolescentes do sexo masculino chegou a 37,32 a cada 100 mil após a segunda dose.
A miocardite é uma inflamação no músculo cardíaco, e a pericardite é uma inflamação no revestimento externo do coração. Essas condições podem se desenvolver por conta de uma resposta imune a uma infecção ou a algum outro fator.
Amostras insuficientes
Contudo, ambos estudos analisam uma “amostra pequena”, afirmou ao AFP Checamos Alexandre Naime, chefe do departamento de infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Não desconfiando da seriedade dos artigos nem da metodologia aplicada”, ressaltou.Naime explicou que “quando você vai avaliar a incidência de um evento adverso ou de uma doença na população precisa ser uma amostra que chamamos %u23BC do ponto de vista da metodologia científica %u23BC de uma amostra significativa”.
O estudo feito na Finlândia utilizou uma amostra de 213 crianças e adolescentes com menos de 15 anos, que foram internados no país com miocardite entre 2004 e 2014.
O artigo de Hong Kong analisou todos os casos reportados de miocardite/pericardite, após a vacinação com Pfizer, em adolescentes entre 12 e 17 anos. Foram 33 casos ao total, ocorridos entre 14 de junho de 2021 e 4 de setembro de 2021.
Para Aluísio Barros, epidemiologista e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), ouvido pelo Checamos, metodologicamente não faz sentido comparar os dois estudos citados pelas publicações virais: “Os dois estudos não são comparáveis”. Dentre as razões enumeradas por Barros, estão o fato de tratarem de “países diferentes, faixas etárias diferentes e desfechos diferentes (miocardite na Finlândia e miocardite/pericardite na China)”.
“O resultado do estudo da China sugere realmente um aumento dos casos de pericardite após a segunda dose, mas tem que ver a magnitude”, afirmou. “E como diz o artigo casos leves e requerendo apenas tratamento simples”, destacou.
Também para Jorge Afiune, presidente do Departamento Científico de Cardiologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), “do ponto de vista científico, não há a mínima chance de comparar [os dois estudos]. São completa e metodologicamente diferentes”. O médico afirmou que, entre os principais problemas, está o fato de que o estudo feito em Hong Kong nem sequer está disponível na íntegra. E que nenhum estudo pode ser analisado somente pelo seu resumo, pois seria como tirar “uma conclusão apenas com a manchete de uma notícia”.
No Brasil
Em junho de 2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a aplicação da vacina Pfizer em crianças de 12 anos ou mais. O imunizante foi o primeiro a receber o registro definitivo para vacinas contra a covid-19 no Brasil.Em setembro de 2021, o Ministério da Saúde indicou que suspenderia a vacinação dessa faixa etária após o falecimento de uma adolescente de 16 anos que havia tomado uma dose da Pfizer no interior de São Paulo. Concluiu-se, no entanto, que a morte foi provavelmente causada por uma doença autoimune, e não pela vacina.
Em resposta, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendou que a pasta mantivesse a vacinação de pessoas de 12 a 17 anos. O documento define a imunização como “a melhor evidência para que seja conferida a redução de casos e óbitos decorrentes da covid-19”.
A Anvisa também se opôs à decisão e afirmou que as vacinas utilizadas no Brasil são monitoradas por meio de notificações de suspeitas de eventos adversos e que “até o momento (...) os benefícios da vacinação excedem significativamente os seus potenciais riscos”. Segundo a agência, os casos observados são “muito raros” e não são graves:
“Geralmente, são casos leves e os indivíduos tendem a se recuperar dentro de um curto período após o tratamento padrão e repouso”.
Em um Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de novembro de 2021, a pasta informa que os dados apresentados pelos imunizantes “denotam o excelente perfil de benefício versus risco da vacinação contra a covid-19. Ressalta-se, ainda, que estas são estimativas conservadoras, tendo em vista que parte expressiva dos EAG [eventos adversos graves] notificados não possuem qualquer relação causal com a vacinação”.
E lembra que “o impacto da covid-19 vai muito além do risco de morte ou internações, levando ainda a complicações tais como: tromboses venosas, miocardite e pericardite, síndromes neurológicas como a síndrome de Guillain-Barré, encefalite e doenças desmielinizantes, hemorragias cerebrais, arritmia, infarto agudo do miocárdio, embolia pulmonar, entre outros”.
As sociedades brasileiras de Cardiologia e de Pediatria também afirmam em seus sites que os casos reportados de miocardite têm sido leves e incentivam a vacinação (1, 2).
Afiune ressaltou ao Checamos que %u23BC balanceando os riscos e benefícios da vacinação, com base nos dados sobre a incidência de miocardite em crianças e adolescentes %u23BC “a Sociedade Brasileira de Pediatria” não tem dúvida “em recomendar a vacinação para os adolescentes e crianças. Não temos dúvida alguma”.
Ele destacou que a entidade considera a vacina segura, embora não exista “nenhuma vacina na história humana que não possa ter efeitos colaterais”.
No entanto, ele pontua que “esse efeito colateral chamado miocardite (...) é a forma mais leve da miocardite. Não deixa sequelas, não há nenhum relato de morte no mundo em relação a esse tipo de miocardite”. Segundo o especialista, esse tipo da doença é muito diferente da miocardite que pode ser causada como uma das sequelas da covid-19 ou por outros fatores.
Miocardite como efeito adverso
Casos raros de miocardite também foram reportados pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.Dariouch Dolatabadi, cardiologista do Hospital Universitário de Charleroi, na Bélgica, entrevistado pela equipe de checagem da AFP em outubro de 2021, explicou que os casos detectados %u23BC especialmente em adolescentes e jovens adultos do sexo masculino %u23BC são muito raros e que há mais chances de desenvolver complicações devido à doença:
“O risco de miocardite devido à infecção por covid-19 é muito maior do que devido à vacina. Portanto, a relação benefício-risco da vacinação anticovid em um país onde o vírus continua circulando se mantém positiva”.
Um estudo publicado pelos CDC em agosto de 2021 demonstrou que os pacientes infectados por covid-19 entre março de 2020 e janeiro de 2021 tinham em média 16 vezes mais chance de desenvolver miocardite do que aqueles que não contraíram o vírus.
Afiune informou que a miocardite aguda, existente antes das vacinas contra a covid-19, “costuma ser uma miocardite mais grave”. Nessa modalidade, a mortalidade entre crianças varia de 4% a 7% e pode levar a transplante cardíaco entre 4% e 9% dos casos, conforme citam os CDC. Já a miocardite causada pela covid-19 é ainda “mais grave” do que a miocardite “clássica”, ressalta o especialista.
A análise da OMS sobre o efeito adverso é de que os benefícios das vacinas de mRNA superam os riscos, mesmo entre os jovens: “Embora [a miocardite e a pericardite] possam evoluir para quadros graves, em sua maioria são leves e respondem bem ao tratamento conservador”. A instituição também “incentiva os profissionais de saúde a relatarem todos os eventos de miocardite e outros eventos adversos observados com essas e outras vacinas”.
Outras alegações envolvendo o desenvolvimento de miocardite e vacinas contra a covid-19 já foram checadas pela AFP (1, 2, 3).
Esta verificação foi realizada com base em informações científicas e oficiais sobre o novo coronavírus disponíveis na data desta publicação.
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