Publicações compartilhadas centenas de vezes em redes sociais desde o início de novembro de 2021 afirmam que a farmacêutica Pfizer adicionou uma substância utilizada para “estabilizar vítimas de ataques cardíacos” à sua vacina contra a covid-19 administrada em crianças. Segundo as publicações, a mudança estaria relacionada a efeitos colaterais raros relatados após a vacinação. Isso é enganoso. À AFP, a companhia explicou que o propósito do componente, incluído nas vacinas para crianças e adultos, é prolongar o armazenamento do imunizante - função confirmada pela Agência de Medicamentos e Alimentos dos Estados Unidos (FDA) e por especialistas.
“Pfizer adiciona um ingrediente chamado tromethamina usado para estabilizar vítimas de ataque cardíaco em injeções para crianças. Portanto, eles admitem que suas injeções experimentais causam problemas cardíacos”, diz uma das publicações compartilhadas no Facebook (1, 2, 3) e Twitter (1, 2, 3) ao menos desde o último dia 1º de novembro.
As publicações acompanham a captura de tela de um artigo em inglês com a mesma alegação, ilustrado com uma imagem de uma criança que chora ao ser vacinada.
A matéria, compartilhada também em publicações em italiano, alemão e búlgaro, afirma que a adição da substância - descrita como um “um redutor de ácido no sangue que é usado para estabilizar pessoas com ataques cardíacos” - foi “escondida na página 14” de um documento submetido pela Pfizer à FDA.
A alegação começou a circular na época em que o órgão norte-americano autorizou o uso da vacina contra a covid-19 da Pfizer-BioNTech em crianças de 5 a 11 anos no país. Em seguida, o imunizante recebeu o respaldo dos Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, abrindo caminho para a vacinação de até 28 milhões de crianças.
Um documento informativo submetido pela Pfizer à FDA em 26 de outubro de 2021 realmente menciona que a trometamina seria incluída no imunizante. A substância não estava presente na lista de ingredientes da composição original enviada à agência (que pode ser acessada na página 11 deste documento).
Melhor armazenamento
Mas o porta-voz da Pfizer Kit Longley disse à AFP que a adição da trometamina visa simplificar e prolongar o período de armazenamento da vacina.Isso “permite que o mRNA resista à degradação por um período de tempo maior antes da administração, o que significa que a vacina pediátrica pode ser armazenada entre 2ºC e 8°C em refrigeradores comumente disponíveis por até 10 semanas”, explicou, citando uma melhora significativa nos requisitos de conservação da fórmula anterior.
O objetivo das vacinas de RNA mensageiro (mRNA) é fazer com que o corpo sintetize a proteína spike do SARS-CoV-2, que o sistema imunológico reconhecerá como estranha, desenvolvendo anticorpos capazes de defender o organismo em um encontro com o vírus.
Antes da mudança, a vacina de mRNA da Pfizer-BioNTech precisava ser armazenada a temperaturas de até -112 graus Fahrenheit (cerca de -80ºC).
Além disso, a nova fórmula não será administrada apenas em crianças, já que também foi aceita pela FDA para uso em indivíduos com 12 anos ou mais. A trometamina “também será utilizada nas doses atualizadas de 30 mcg para adultos e adolescentes no devido tempo, ajudando a garantir o manuseio simplificado da vacina em todos os grupos etários”, disse Longley.
Questionado por que a dose de adultos e adolescentes não continha essa substância inicialmente, o porta-voz explicou: “Nosso principal objetivo nos primeiros dias da pandemia era conseguir uma vacina eficaz e segura para as pessoas o mais rápido possível. Ao longo do último ano, à medida que as vacinas ficaram mais disponíveis, melhorar a estabilidade tornou- se uma prioridade mais alta para os provedores que administram as vacinas”.
Alison Hunt, porta-voz da FDA, também afirmou à AFP que a trometamina “proporcionará uma vacina com um perfil de estabilidade aprimorado que pode ser mantida refrigerada por mais tempo”, acrescentando que esse componente já foi utilizado em outros imunizantes aprovados, como alguns contra a dengue, a varíola e o ebola.
Substância básica
A função da trometamina foi confirmada à AFP pela professora associada da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Wanda Pereira Almeida, que deu mais detalhes sobre o funcionamento da substância:
“Ativos farmacêuticos e vacinas precisam ser armazenadas. Entretanto, é preciso tomar alguns cuidados para que estes não sofram decomposição porque, se isso acontecer, perderão o seu efeito. Existem várias causas que podem levar à decomposição de uma substância e uma delas é a acidez do meio. Quanto mais tempo o ‘ativo’ ficar em contato com ácidos, maior é a chance de decomposição”.
Por isso, é comum que sejam adicionados componentes que possam neutralizar essa acidez, como “substâncias básicas ou duas substâncias que, juntas, são capazes de controlar a acidez do meio (tampões)”, explicou a doutora em Química.
“Trometamina ou Trometamol é uma substância química pertencente à classe das aminas. Sendo básicas, elas reagem com ácido, neutralizando o meio. A vacina Moderna contém Trometamina para estabilizar o meio, enquanto a Pfizer-BioNTech usava um sistema tampão. A empresa responsável decidiu passar a usar também a Trometamina porque estabiliza melhor, tornando o seu armazenamento ainda mais seguro e por mais tempo”, detalhou a professora.
“Assim não faz o menor sentido adicionar Trometamina para evitar problemas cardíacos”, destacou Wanda Pereira Almeida.
A função estabilizante da trometamina também foi confirmada por Nicolás Torres, do Laboratório de Imunopatologia do IBYME-CONICET de Buenos Aires, que reiterou à AFP que o componente pode ajudar a manter a vacina armazenada por mais tempo: “No geral, são feitas formulações especiais de estabilizantes para isso, esse composto é um deles, então provavelmente ajuda”.
Ataques cardíacos e miocardite
Ao mencionar supostos problemas cardíacos, a alegação viralizada parece fazer referência a efeitos colaterais raros reportados a autoridades de saúde após a vacinação com o imunizante da Pfizer.
Mas, “não há evidência de ataques cardíacos associados à vacina”, disse à AFP o porta-voz da farmacêutica. E acrescentou:
“A Pfizer está ciente de relatos raros de miocardite e pericardite, principalmente em homens jovens, após a vacinação com o mRNA. Esse é um evento raro na evidência clínica e no mundo real, e não vimos casos suficientes para tirar conclusões”.
O Comitê Assessor sobre Práticas de Imunização dos Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos examinou os casos de miocardite - uma inflamação do coração - particularmente em homens de 12 a 29 anos, e concluiu que os benefícios da vacinação continuam superando os riscos.
Em seu site, os CDC dizem: “A maioria dos pacientes com miocardite ou pericardite que foram atendidos responderam bem aos medicamentos e ao descanso e se recuperaram rapidamente”.