Publicações que alegam que as vacinas contra febre amarela e tétano são de dose única e têm duração de dez anos, enquanto os imunizantes contra a covid-19 têm duração de apenas “dois meses”, foram compartilhadas mais de 970 vezes nas redes sociais desde 30 de dezembro de 2021. Mas essa correlação é enganosa. Além de a antitetânica ser administrada em três doses, com uma dose de reforço a cada 10 anos, os especialistas consultados pela AFP explicaram que não se deve comparar vacinas feitas para diferentes tipos de patógenos.
“A vacina Antitetânica em dose ÚNICA, tem duração de efeito de aproximadamente 10 ANOS, assim como a vacina da Febre Amarela. Já a vacina do Covid-19, tem a duração de dois meses. Será que não tem alguma coisa errada?”, questiona uma das publicações compartilhadas no Twitter e no Facebook (1, 2).
A virologista Lorena Chaves, pesquisadora da Emory University, em Atlanta, Estados Unidos, disse ao AFP Checamos que “essa comparação não faz sentido algum”.
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Vídeo antigo de protesto contra Lula em Chapecó circula como se fosse em Santa Maria e RecifeA influenza e o SARS-CoV-2 são vírus diferentes, e a gripe pode, sim, circular no verãoSequência que relaciona superlotação em hospital no Rio de Janeiro ao PT circula sem contexto"Existem alguns patógenos que desencadeiam uma resposta imunológica tão forte que o nosso sistema imune consegue lembrar deles por muito tempo após a doença, ou até mesmo para sempre, como no caso do sarampo. Ou seja, nesse caso, há um grande estímulo para a produção de células de memória, gerando anticorpos específicos de longa vida, o que impede a reinfecção”, complementou.
“Já outros patógenos não são tão capazes de estimular uma resposta imunológica tão robusta e por isso conseguem nos infectar de tempos em tempos, como o Influenza (gripe). As vacinas são sempre baseadas no patógeno que visam combater. E por isso também têm eficácias diferentes. Além disso, há várias formas de fazer vacina, o que também influencia na resposta imunológica que será gerada”, disse Chaves.
Em uma verificação da AFP sobre uma alegação semelhante, que comparava os imunizantes anticovid com as vacinas contra poliomielite, sarampo e rubéola, Alexandre Naime, chefe do departamento de Infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), indicou que “as vacinas têm diferentes objetivos de sucesso a depender do patógeno”.
Consultado pelo Checamos, Marcos Freire, assessor científico de Bio-Manguinhos, a unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) responsável pela produção de vacinas, concordou. Para ele, comparar imunizantes contra tétano e febre amarela com os que protegem contra a covid-19 “não faz sentido”. “São vacinas completamente diferentes”, disse.
Febre amarela
A febre amarela é uma doença infecciosa aguda, causada por um vírus transmitido por mosquitos vetores, sem que haja possibilidade de contágio direto de pessoa a pessoa. A maior parte dos casos da doença é registrada no Brasil entre os meses de dezembro e maio e em geral se concentra na região amazônica, embora já tenha havido casos de surtos no Centro-Oeste e no Sudeste.
O Ministério da Saúde recomenda a vacina contra a febre amarela a todos que residem nas áreas de transmissão e aos que pretendem viajar para esses locais. O imunizante é administrado em dose única, sem dose de reforço.
“No caso da vacina febre amarela ocorre uma replicação do vírus vacinal (vírus da febre amarela atenuado) conferindo uma boa resposta humoral (anticorpos neutralizantes) e celular. Esta resposta imunológica confere uma proteção duradoura com a manutenção dos anticorpos neutralizantes e uma boa memória”, disse Freire.
“O segredo dessa vacina ser super eficaz é a combinação dessa tecnologia de vírus atenuado e do patógeno (o vírus da febre amarela), que é muito ‘memorável’ pelo sistema imune, ou seja, gera uma resposta imunológica muito robusta e eficaz, protegendo contra novas infecções”, afirmou Chaves, lembrando, contudo, que a produção de vacinas com vírus atenuado “está caindo em desuso”, porque “não é tão segura para pessoas imunocomprometidas quanto as tecnologias mais atuais”.
Freire ressaltou a diferença entre os patógenos da febre amarela e da covid-19: “É importante dizer que o vírus da febre amarela é muito mais estável geneticamente que os coronavírus e, desta forma, não gera mutantes com capacidade de escapar da proteção induzida pela vacina em prazos relativamente curtos. O vírus atenuado da febre amarela foi desenvolvido há mais de 80 anos e ainda é capaz de proteger contra os vírus da febre amarela que circulam no mundo. Da mesma forma que as vacinas antitetânicas produzidas por diferentes fabricantes protegem contra as toxinas produzidas por diferentes cepas de ‘Clostridium tetani’”.
Tétano
O tétano é uma infecção aguda e grave, causada pela toxina do bacilo tetânico, que entra no organismo através de ferimentos ou lesões de pele. A doença não é transmitida de um indivíduo para o outro, e mesmo aqueles que já contraíram a doença não adquirem anticorpos para evitá-la novamente. A vacinação é a única forma de proteção.Diferentemente do que alegam as publicações viralizadas, a vacina antitetânica não é administrada em dose única. No Brasil, o Ministério da Saúde estabelece que o esquema vacinal completo da antitetânica é de três doses administradas no primeiro ano de vida, com doses de reforço aos 15 meses e aos 4 anos. A partir dessa idade, recomenda-se um novo reforço a cada dez anos após a última dose administrada.
“No caso da vacina antitetânica, a toxina tetânica inativada (toxóide tetânico) é extremamente imunogênica e confere uma proteção duradoura a partir de implementação de esquemas de vacinação”, apontou Freire.
E as vacinas contra a covid-19?
Segundo os especialistas ouvidos pela AFP, as vacinas podem ter diferentes objetivos. As de covid-19, transmitida por um vírus altamente mutável, têm como objetivo evitar hospitalizações e mortes.“No caso das vacinas disponíveis (licenciadas) até o momento contra a covid-19, foram desenvolvidas e formuladas em diferentes plataformas com o objetivo principal de proteger contra casos graves da doença e a consequente redução das hospitalizações”, comparou Freire, acrescentando que “tem se observado que a chamada imunidade estéril (bloqueio da infecção) não é atingida na maioria dos vacinados”. No entanto, “a efetividade destas vacinas foi avaliada e comprovada na redução de formas sintomáticas e graves da doença, reduzindo, desta forma, as internações e mortalidade provocadas pelo SARS-CoV-2”.
Um estudo publicado em 10 de dezembro de 2021 pela Fiocruz sobre a efetividade das vacinas no Brasil mostrou que todas conferem grande redução do risco de infecção, internações e óbito por covid-19. Considerando os desfechos graves (internação ou óbito) em indivíduos com idade entre 20 e 80 anos, a proteção variou entre 83% e 99% para todos os imunizantes. “Na população abaixo de 60 anos, todas as vacinas apresentam proteção acima de 85% contra risco de hospitalização e acima de 89% para risco de óbito”, indica o estudo.
Sobre a alegação das publicações virais de que as vacinas anticovid-19 têm “duração de dois meses”, Chaves explicou que, em geral, “após seis meses da vacinação há uma diminuição de anticorpos circulantes no sangue do vacinado”, mas que “isso não é surpresa e não é algo incomum”.
“Com o tempo, normalmente acontece a diminuição de anticorpos circulantes e ocorre o que chamamos de maturação da afinidade. A maturação da afinidade é a diminuição de anticorpos circulantes, mas com a produção de anticorpos mais específicos e eficazes. Então, não ter anticorpos bombando no sangue não significa falta de proteção, mas o curso da resposta imunológica comum. Além disso, sempre é bom lembrar que não é somente de anticorpos que o nosso sistema imunológico é feito. Tem toda uma resposta imunológica celular que também tem seu papel na proteção”, complementou Chaves.
“Então, as pessoas que dizem que a vacina contra a covid-19 tem eficácia (ou duração) de dois meses, não estão olhando a resposta imunológica de uma forma geral e se baseando em pequenos recortes dessa resposta”.
Para Freire, “não é possível generalizar a duração da imunidade dessas vacinas” e “ainda é cedo para afirmarmos qual é a duração da imunidade desta ou daquela vacina, assim como dos diferentes esquemas de imunizações e reforços”.
“Assim como a efetividade, a duração da imunidade varia com a abordagem vacinal, formulação, adjuvantes e esquema vacinal”, acrescentou, citando que os estudos de acompanhamento de vacinados com imunizantes da Pfizer/BioNTech e da AstraZeneca apontaram a sua efetividade por períodos que variam de seis meses a um ano quando os esquemas vacinais são implementados de forma correta, reduzindo os casos de doenças sintomáticas, internações e mortes causadas pelo SARS-CoV-2.
Além da questão imunológica, Chaves atribuiu a necessidade da dose de reforço a um cenário epidemiológico: “Estamos em uma pandemia, com alta circulação viral. Na verdade, com a ômicron, vivemos o pior momento da pandemia em relação ao números de casos no mundo. Nesse momento, manter os anticorpos circulantes faz toda a diferença na tentativa de prevenir a infecção, principalmente nos grupos de risco”.
“Pode ser que lá na frente, quando a pandemia estiver mais controlada, que o esquema vacinal contra a covid-19 seja diferente e não exija doses de reforço com um intervalo tão curto”, acrescentou.
A AFP já verificou outras desinformações sobre a eficácia das vacinas contra a covid-19 (1, 2, 3).
*Esta verificação foi realizada com base em informações científicas e oficiais sobre o novo coronavírus disponíveis na data desta publicação.